Na liturgia deste décimo nono
domingo do tempo comum, continuamos a leitura do capítulo sexto do Evangelho
segundo João. No texto proposto para hoje – Jo 6,41-51 – Jesus continua seu
discurso de auto apresentação como pão descido do céu e alimento para a vida.
Esse discurso é a resposta de Jesus à multidão que, alimentada pelo pão partilhado
na outra margem do mar (ou do lago), e maravilhada com o sinal cumprido, quis logo
proclamá-lo rei, imaginando tirar cada vez mais proveito de suas ações
prodigiosas. Jesus refugiou-se, percebendo a interpretação equivocada, mas a
multidão o encontrou novamente querendo pão gratuito com fartura. Jesus
percebeu tais intenções e, aproveitando a oportunidade, chamou a atenção para a
importância de um alimento duradouro e essencial: a sua própria pessoa, pão vivo
descido do céu, enviado pelo Pai para dar vida ao mundo.
A auto apresentação de Jesus
como pão descido do céu e alimento para a vida eterna foi duramente criticada e
questionada pelos seus ouvintes, praticantes da religião tradicional. Para
esses, a única referência de pão descido céu era o maná do deserto, mas aquele
era um alimento perecível, tanto que os antepassados que dele se alimentaram,
morreram todos. Portanto, a afirmação de Jesus soava como pretensão e afronta.
Por isso, o questionamento: “Os judeus começaram a murmurar a respeito de
Jesus, porque havia dito: ‘Eu sou o pão que desceu do céu” (v. 41). Quando
João menciona “os judeus”, não se refere a todo o povo, mas às autoridades
religiosas, quem mais se incomodava com as afirmações de Jesus. De fato, as
declarações de Jesus eram verdadeiras ameaças para aquela religião, pois abriam
caminho para a humanidade encontrar-se diretamente com Deus, através da sua
pessoa, dispensando a mediação dos líderes religiosos.
O murmúrio, mais que um simples
lamento, é uma contestação da graça e do poder de Deus, por isso, é um pecado. É
a atitude de um povo rebelde e fechado que rejeita a libertação oferecida por
Deus, como acontecera no deserto: “Murmuraram contra Moisés e contra Aarão
todos os filhos de Israel, dizendo consigo toda a assembleia: antes tivéssemos
morrido na terra do Egito! Estamos morrendo neste deserto!” (Nm 14,2). O
murmúrio das autoridades religiosas contra Jesus é, portanto, a confirmação do
fechamento de Israel, desde o antigo êxodo, à proposta libertadora de Deus,
levada a cumprimento em Jesus de Nazaré.
Para desqualificar Jesus e
negar a sua condição divina, alegam a sua origem humana e simples: “Eles
comentavam: ‘Não é este Jesus, o filho de José? Não conhecemos seu pai e sua
mãe? Como então pode dizer que desceu do céu?” (v. 42). Como a religião
oficial tinha caricaturado Deus como um soberano distante da terra, inacessível
ao ser humano, as afirmações de Jesus soavam como absurdas. Segundo aquela
mentalidade, era impossível que aquele Deus pudesse ser manifestar através de
um simples carpinteiro. Sendo habitante da região, com pai e mãe conhecidos,
Jesus não tinha credencial de revelador de Deus, segundo a imagem de Deus
criada por aquela religião. Como ser imensamente superior, Deus só poderia se
manifestar através de sinais extraordinários, jamais em um homem pobre e ousado
como Jesus. Se aceitassem Jesus como revelador do Pai, estariam desconstruindo
um discurso sustentado há séculos e colocando em risco seus privilégios. Ao
associar Jesus a seus pais terrenos, os judeus afirmavam que ele não poderia
ter descido do céu.
Jesus não entra diretamente na
discussão, pois não sente necessidade de reafirmar a sua origem divina para
aquele povo duro de coração. Apenas interrompe o comentário, repreendendo as
murmurações: “Jesus respondeu: Não murmureis entre vós” (v. 43). Jesus
não quer a perpetuação dos erros de Israel que, historicamente, tem
interpretado mal a presença de Deus em seu meio, rejeitando-o inúmeras vezes.
Com muita tranquilidade e consciência, Jesus deixa claro que é preciso
deixar-se atrair pelo Pai para chegar até ele: “Ninguém pode vir a mim, se o
Pai que me enviou não o atrai. E eu o ressuscitarei no último dia” (v. 44).
Não obstante as rejeições sofridas, Jesus reforça sua confiança no Pai e a
relação intrínseca entre os dois. Se foi o Pai que o enviou, é também o Pai que
atrairá cada um a si. Na história da salvação, a iniciativa é sempre de Deus,
cuja expressão máxima é a ressurreição. Quem se deixa atrair pelo Pai e vai a
Jesus, terá a plenitude da vida, não como prêmio, mas como consequência.
Em Jesus, toda a humanidade tem
a oportunidade de unir-se a Deus, através do discipulado gerado pela escuta do
Pai (cf. v 45). Ora, escuta o Pai quem se deixa conduzir pela sua Palavra eterna,
o seu filho Jesus, cujo convite já ressoava desde os tempos dos profetas. O Evangelho
de Jesus é a voz do Pai ecoante no mundo e acessível a toda a humanidade. Ainda
como resposta ao murmúrio dos seus adversários, Jesus reforça sua condição de único
mediador entre o Pai e a humanidade: “Só aquele que vem de junto de Deus viu
o Pai” (v. 46). Somente pode revelar com clareza o rosto amoroso do Pai
quem vive em comunhão plena com ele e dele foi gerado. Enquanto a religião oficial
comercializava um personagem distante, violento e vingativo, caricaturado de
Deus, Jesus em sua simples condição humana revelava de modo claro a identidade
do Pai, o qual não exige sacrifícios nem ofertas, mas apenas uma adesão de fé.
De fato, disse Jesus: “Em verdade, em
verdade, vos digo, quem crê, possui a vida eterna” (v. 47). Crer (em grego:
pisteu,wn – pistêuo), aqui, significa deixar-se
conduzir pelo Evangelho, aceitando-o como único programa de vida. Como consequência,
quem faz essa adesão se torna possuidor da vida eterna, a qual não é uma vida
no além, como prêmio para quem praticou boas obras, mas um dom oferecido já
nesta vida a quem conduz a sua existência de acordo com o Evangelho. O evangelista
faz questão empregar o verbo possuir no tempo presente: quem crê já é possuidor da vida eterna. Essa, a
vida eterna (em grego: zwh.n aivw,nion – zoén aiónion) é a vida conduzida conforme a de
Jesus, a qual nem a morte é capaz de destruí-la.
Mais
uma vez se apresentando como pão da vida e alimento perene (cf. v. 48), Jesus
põe em questão o maná comido pelos antepassados no deserto, mostrando a ineficácia
daquele alimento: “Os vossos pais comeram o maná no deserto e, no entanto,
morreram” (v. 49). Jesus dá mais um sinal de rompimento com aquela tradição
ao falar “vossos pais” ao invés de “nossos pais”, pois ele também era judeu de
origem; ele quer se distanciar de uma tradição ultrapassada, fechada em seus
próprios conceitos e incapaz de abrir-se ao novo. Todos os que foram
alimentados pelo maná no deserto, morreram sem entrar na terra prometida. Mesmo
assim, os judeus continuavam “devotos” do maná, considerando-o como o único
alimento descido do céu. Jesus quer se contrapor: está sendo dada a
oportunidade de provarem um alimento verdadeiramente descido do céu, ele mesmo,
como disse: “Eis aqui o pão que desce do céu: quem dele comer, nunca morrerá”
(v. 50).
Apresentando-se
como pão, Jesus garante a sua eficácia como alimento e deixa ainda mais clara a
oferta total de si para a vida do mundo: “Eu sou o pão vivo descido do céu.
Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que eu darei é a minha carne
dada para a vida do mundo” (v. 51). Ora, o maná no deserto fora dado a um
povo específico e privilegiado que, mesmo assim, murmurava constantemente. A
oferta de Jesus é universal, não é mais para a vida de um povo, mas para a vida
do mundo. A sua oferta é universal, porque tem a humanidade toda como
destinatária, e total, porque é a inteireza do seu ser, é carne e espírito. Aceitar
essa oferta é condição para viver eternamente. Se é pelo dom da sua carne que é
dada vida ao mundo, também é na condição carnal que o ser humano é chamado a acolher
a salvação, quer dizer, nas contradições da existência terrena. Do pão enquanto
palavra, passa-se ao pão enquanto carne, abrindo assim o discurso para uma
perspectiva eucarística. Porém, a leitura do discurso será interrompida no
próximo domingo para a solenidade da assunção de Nossa Senhora.
Acolher
Jesus como pão descido do céu é aceita-lo como único mediador e revelador do
Pai. Recebe-lo como alimento perene é aceitar o Evangelho como único programa
de vida. A insuficiência e ineficácia do maná está ficando cada vez mais clara
no discurso de Jesus, assim como o pão partilhado para a multidão no outro lado
do mar. Com isso, se torna cada vez mais necessário e urgente que o único
alimento, realmente duradouro e capaz de gerar vida eterna é o próprio Jesus na
inteireza do seu ser.
Pe.
Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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