Com a chegada da fase final do ano litúrgico, a
liturgia nos aproxima de textos do gênero literário apocalíptico, como o
evangelho de hoje: Marcos 13,24-32. Com esse texto encerramos a leitura
dominical do Evangelho segundo Marcos, por este ano, já que o texto evangélico
do próximo domingo, solenidade de Cristo Rei, será tirado do Evangelho segundo
João. Ao longo de todo este ano litúrgico em curso fizemos a leitura quase completa
do Evangelho segundo Marcos, e hoje nos despedimos dele. Como mencionamos
acima, o texto proposto para hoje, o trigésimo terceiro domingo do tempo comum,
pertence ao gênero literário apocalíptico, e faz parte do discurso escatológico
de Jesus no Evangelho de Marcos. Antes de entrarmos propriamente no conteúdo do
texto, é necessário contextualizarmos e fazer alguns esclarecimentos, como
faremos agora.
A primeira observação diz respeito ao gênero
literário ao qual pertence o texto: o gênero apocalíptico. Derivado da palavra
apocalipse (em grego: αποκαλυψις = apoclípisis),
cujo significado é “revelação”, “manifestação da verdade” ou “tornar conhecido
algo que estava escondido”, o gênero apocalíptico foi bastante distorcido ao
longo da história, principalmente pelo cristianismo, passando a ser sinônimo de
catástrofes e desastres, passando a causar medo, quando, na verdade, é um
gênero literário usado pelos autores bíblicos para transmitir mensagens de
esperança e resistência. Portanto, ao invés de causar terror e medo, a mensagem
do Evangelho de hoje deve nos animar, como veremos no decorrer da reflexão.
Quanto ao discurso escatológico, esse está presente nas últimas partes dos três
evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), antecedendo os relatos da paixão,
morte e ressurreição de Jesus. Os evangelistas fazem questão de situá-los no
curto ministério de Jesus em Jerusalém. O adjetivo “escatológico” deriva da palavra
grega “escatón” (εσχατον), que significa fim. Ao falar de fim, os
evangelistas pensam em dois sentidos: fim como extermínio de tudo o que impede
a realização plena do Reino de Deus, e como finalidade da criação, sobretudo do
gênero humano, alcançando seu verdadeiro destino.
No Evangelho segundo Marcos, o discurso
escatológico surgiu como resposta de Jesus à admiração dos discípulos com a
beleza e esplendor do templo de Jerusalém (cf. Mc 13,1). À admiração dos
discípulos, Jesus respondeu que de tudo aquilo não restaria “pedra sobre pedra”
(cf. Mc 13,2); os discípulos, curiosos, perguntaram a Jesus quando aconteceria
a destruição do templo (cf. Mc 13,4); a essa pergunta, Jesus respondeu com um
longo discurso (cf. Mc 13,5-37), do qual o evangelho desse domingo faz parte. É
um discurso dirigido essencialmente aos discípulos, os mais necessitados de
respostas, o que se reflete também na comunidade de Marcos. Ora, mais de trinta
anos separam a ressurreição de Jesus da redação do Evangelho segundo Marcos.
Muitos cristãos da sua comunidade começavam a levantar dúvidas sobre a
veracidade das palavras anunciadas como se fossem de Jesus, enquanto surgiam
dificuldades com perseguições de todas as partes: tanto do poder imperial
romano, quanto da sinagoga que não aceitava mais continuar perdendo adeptos
para a comunidade cristã. Diante disso, além de levantar questionamentos,
muitos cristãos desanimaram perdendo a esperança e a motivação para continuar
acreditando no projeto de Jesus. Por isso, o evangelista recorda o que Jesus
disse e convida a comunidade a resistir diante das dificuldades.
O texto de hoje começa com uma afirmação
importante de Jesus: “Naqueles dias, depois da grande tribulação, o sol vai
se escurecer, e a lua não brilhará mais, As estrelas começarão a cair do céu e
as forças do céu serão abaladas” (vv. 24-25). Percebemos que essas palavras
ainda fazem parte da resposta de Jesus à pergunta dos discípulos a respeito de
“quando” aconteceria a destruição do templo, que significa a “grande
tribulação” aqui mencionada. Ora, para Jesus, o templo de Jerusalém, que já não
era casa de oração, mas casa de comércio, era a primeira das estruturas de
poder e dominação a ser destruída. A realização plena do Reino de Deus depende
da derrocada das forças opressoras deste mundo, das quais, para Jesus, a mais
cruel era a instituição religiosa que oprimia em nome de Deus; depois que essa
desmoronasse, também as outras forças malignas desmoronariam, como aqui ele
anuncia, ao usar as imagens dos astros sol, lua e estrelas. Aqui, ele não se
refere a uma catástrofe da natureza, mas usa uma linguagem simbólica, típica
das literaturas de resistência, como a apocalíptica. Os astros aqui
mencionados, sol, lua e estrelas, representam os poderes opressores e as
divindades pagãs destes poderes. Esses astros eram divindades adoradas pelos
romanos e egípcios, os quais acreditavam que seus imperadores fossem imagens e
representantes dessas divindades.
O escurecimento do sol e da lua, junto à queda
das estrelas, significa, portanto, que as forças opressoras, principalmente o
império romano, irão cair; desses acontecimentos brotará o Reino de Deus,
instaurado definitivamente pelo Ressuscitado que, vivo, retornará: “Então
vereis o Filho do Homem vindo nas nuvens com grande poder e glória” (v. 26).
Nessa imagem, está a grande esperança de um novo tempo e de um novo mundo para
todos os que perseverarem, pois “Ele enviará os anjos aos quatro cantos da
terra e reunirá os eleitos de Deus, de uma extremidade à outra da terra”
(v. 27). Ao invés de um julgamento severo, o evangelista diz que o Filho do
Homem vem para reunir a criação inteira; os quatro cantos e as extremidades da
terra significam a totalidade da criação a ser reunida e renovada, instaurando
a paz messiânica sobre a terra. São os poderes opressores com suas respectivas ideologias
que impedem a convivência fraterna entre todos os povos da terra; com a queda
dessas forças, a humanidade alcançará o seu verdadeiro fim e, assim, a paz será
instaurada definitivamente.
Assim é a história da salvação: nessa, as
coisas não acontecem repentinamente, nem através de eventos extraordinários,
mas através de processos históricos que se desenrolam no tempo até que, um dia,
desses acontecimentos, surgirá o Reino de Deus de modo definitivo. Com isso,
ensinam Jesus e o evangelista, para alcançar o Reino de Deus em sua máxima
manifestação, os cristãos não devem fugir do mundo, nem ignorar a história;
pelo contrário, inseridos no mundo e construtores da história, esses devem
transformar, como agentes habilitados e enviados pelo próprio Cristo. A vitória
é fruto e consequência de muita luta contra as forças do mal. Como viviam
perseguidos os cristãos da comunidade de Marcos, o evangelista encontrou no
gênero apocalíptico o meio para transmitir sua mensagem encorajadora. A autêntica
compreensão da história começa pela observação das coisas simples da natureza;
por isso, o convite: “Aprendei, pois, da figueira esta parábola: quando seus
ramos ficam verdes e as folhas começam a brotar, sabeis que o verão está perto”
(v. 28). Os sinais estarão sempre disponíveis para quem tem a necessária capacidade
do discernimento.
Os cristãos perseguidos não cansavam de
perguntar quando seriam libertados, quando as tribulações passariam. Eles,
assim como os primeiros discípulos, queriam uma data determinada e fixa. Nem
Jesus nem o evangelista fixaram datas; apenas convidaram todos a manter-se
atentos: “Assim também, quando virdes acontecer essas coisas, ficai sabendo
que o Filho do Homem está próximo, às portas” (v. 28). “Estas coisas”,
aqui, são os acontecimentos históricos representados pela imagem do
desmantelamento dos astros (cf. vv. 24-25), o que significa o desmoronamento
das forças opressoras, a começar pela queda do templo de Jerusalém, como fim da
exploração religiosa e, posteriormente, a derrocada das outras forças, como o
império romano. É importante o sentido das palavras empregadas com a sua
simbologia: os astros são meras imagens. Não é para o alto que os cristãos
devem olhar, mas para o que está ao seu redor; é preciso ver a história
acontecendo e interpretá-la com discernimento, para transformá-la.
Aparentemente, há uma contradição entre os
versículos 30 e 32: enquanto no 30 está escrito que “esta geração não
passará até que tudo isto aconteça”, o 32 afirma que “Quanto àquele dia
e hora, ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, mas somente o Pai” (32).
O versículo 30 é, com muita probabilidade, uma advertência do próprio
evangelista à sua comunidade que via a destruição de Jerusalém e do templo como
inevitável – o Evangelho de Marcos foi escrito, provavelmente, em meados dos
anos 60, e Jerusalém foi destruída no ano 70. De fato, a destruição de
Jerusalém e do templo era vista com a primeira fase “destes acontecimentos” de
quedas das forças opressoras. Se aquela grande casa de comércio, o templo, com
toda a sua força e ideologia estava prestes a cair, também os demais reinos
opressores cairiam, um dia, mesmo que num tempo muito distante, efetivando a
instauração definitiva do Reino de Deus. Porém, quanto à chegada definitiva
desse Reino, somente o Pai sabe; a nós, os filhos, cabe apenas lutarmos
perseverantes para um dia isso acontecer. Essa luta depende da disposição de
cada pessoa em fazer somente o bem, para que o mal seja completamente destruído
e, assim, um novo mundo surgirá.
Não obstante as contradições da história e as
dificuldades de ver os sinais do Reino presentes, os cristãos e cristãs são
motivados por uma única certeza: “O céu e a terra passarão, mas as minhas
palavras não passarão” (v. 31). Esse é, de fato, um versículo conclusivo.
Muitos questionamentos eram e continuam sendo feitos, pois, embora dinâmica, a
história parece não caminhar para um final feliz. Os processos históricos, em
sua grande maioria, ao invés de melhorar a vida das pessoas, trazendo inclusão
e bem-estar, parece piorar, sobretudo, para os menos favorecidos; as
contradições aumentam cada vez mais, junto com as desigualdades. Porém, ao
invés de desanimar, todas estas contradições da história devem nos animar e
alimentar a esperança, pois mostram que nada permanece para sempre, tudo mudo.
Dessa certeza, resta-nos acreditar e apostar cada vez mais na única realidade
que não passa: o Evangelho. É a totalidade das palavras e da práxis de Jesus
que garante à humanidade a única alternativa de mudança de rumo e de realização
plena de um novo mundo e uma nova história.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese
de Mossoró-RN
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