Após
a interrupção para a solenidade de todos os santos, no último domingo, retomamos
hoje a leitura do Evangelho segundo Marcos. O texto que a liturgia propõe para
este trigésimo segundo domingo do tempo comum é Mc 12,38-44, trecho que
apresenta Jesus já na cidade de Jerusalém, na fase final de seu ministério.
Após percorrer um longo caminho acompanhado pelos discípulos e as multidões,
Jesus entrou na grande cidade e começou a exercer o seu ministério também ali.
É importante recordar que sua primeira atividade em Jerusalém foi a expulsão
dos comerciantes do templo (cf. Mc 11,15-16), como forma de denúncia enfática à
lideranças religiosas que exploravam as pessoas em nome de Deus. Além desse fato, durante alguns dias, Jesus
se envolveu em diversas controvérsias e disputas com os líderes religiosos no
templo de Jerusalém, aprofundando cada vez mais a sua crítica à religião da
época.
O
episódio retratado no evangelho de hoje é a última controvérsia ou investida
contra a religião dentro do próprio recinto do templo. É a última semana de
Jesus, na qual ele aproveitou para entrar em conflito com todos os grupos
hegemônicos da época, aprofundando o seu profetismo denunciador. Na verdade, de
acordo com o relato de Marcos, essa foi a última vez que Jesus entrou no
templo, o que torna o texto ainda mais significativo, pois atesta sua ruptura
total com o sistema religioso que o condenará pouco tempo depois. No episódio
anterior, ele tinha entrado em conflito com os escribas por motivos doutrinais
(cf. Mc 12,28-37); no texto que a liturgia oferece para hoje, o conflito diz
respeito ao comportamento dos escribas ou mestres da lei, como prefere a versão
da liturgia. O escribas (em grego: γραμματευς = gramateús) eram
os teólogos oficiais, intérpretes credenciados da lei, além de ser também, como
sugere o próprio nome, responsáveis pela escrita das cópias da Escritura e dos
comentários dos rabinos para serem lidos nas sinagogas. Eles exerciam papel
preponderante no judaísmo da época; eram os responsáveis diretos pela dominação
ideológica da religião sobre o povo.
Uma
vez contextualizados, olhemos para o texto: “Jesus dizia, no seu ensinamento
a uma grande multidão: “Tomai cuidado com os doutores da Lei! (v. 38a).
Como já estava próximo da páscoa, muitos peregrinos já se encontravam em
Jerusalém para a grande festa, inclusive a multidão que tinha acompanhado Jesus
no caminho. Essa multidão ouvia o seu ensinamento e, certamente, repercutia. O
ensinamento de Jesus é introduzido por uma séria e enfática chamada de atenção:
“Tomai cuidado!”; apesar de forte, essa tradução ainda não exprime o que diz o
texto na língua original: o evangelista usa uma forma imperativa de um verbo
que significa “abrir os olhos” (em grego: βλεπω = blêpo), o que expressa uma situação de perigo e, por isso, a
necessidade de uma atenção extrema. Portanto, a ordem que Jesus dá aos seus ouvintes,
e Marcos transmite aos seus leitores de todos os tempos, é: “abri os olhos com
os escribas!”. Com tal expressão, Jesus afirma que esses líderes religiosos
eram pessoas muito perigosas! É importante recordar que Jesus jamais mandou os
discípulos e as multidões tomarem cuidado com as prostitutas, os publicanos ou
os pecadores em geral, mas somente com as classes das pessoas mais religiosas
da época, como os escribas (doutores da lei), saduceus e fariseus.
Após
o alerta inicial – “abri os olhos!” – Jesus diz o porquê: “Eles (os escribas
ou doutores da lei) gostam de andar com roupas vistosas, de ser cumprimentados nas
praças públicas, gostam das primeiras cadeiras nas sinagogas e dos melhores
lugares nos banquetes” (vv. 38b-39). É por causa da presunção e desse
comportamento hipócrita e falso dos escribas que as pessoas precisam ter muito
cuidado com eles. O comportamento dos escribas é perigoso porque, em nome da
religião, camuflam muita perversidade e maldade; são pessoas que vivem de
aparências, se sentem superiores, são soberbas e cultivam privilégios,
esbanjando ostentação. Um comportamento assim, é totalmente oposto ao que Jesus
pede de seus discípulos; e o pior, para Jesus, é que os escribas faziam tudo
isso em nome de Deus e da religião.
Na
continuidade da denúncia, Jesus identifica uma falta ainda mais grave na falsa
religiosidade dos escribas: “Eles devoram as casas das viúvas, fingindo
fazer longas orações. Por isso, eles receberão a pior condenação” (v. 40).
A categoria das viúvas é uma das imagens de pessoas mais vulneráveis e
necessitadas da Bíblia; juntamente com os pobres, os órfãos e estrangeiros, as
viúvas expressam o cuidado e a predileção de Deus pelos humildes. Se a mulher
já era uma categoria marginalizada, se tornava ainda mais se ficasse viúva. A
mulher que ficasse viúva sem ter um filho homem, e se não casasse novamente com
um cunhado, em caso de ter ficado com herança, deveria confiar o cuidado dessa
herança aos escribas (doutores da lei), já que a mulher não podia fazer
negócios; é a esse fato que Jesus alude ao dizer que os escribas devoram as
casa das viúvas. Constatava-se que, ao receber o direito de administrar o
patrimônio das viúvas, os escribas na verdade se desfrutavam desse, roubando e
devorando. Para Jesus, nenhuma forma de injustiça e exploração é aceitável, mas
quando isso acontece em nome de Deus e da religião, é muito pior. Por isso, a
sentença: “eles receberão a pior condenação”. De acordo com o Evangelho,
o que leva o ser humano à condenação é a prática da injustiça, principalmente a
exploração e a falta de cuidado com as pessoas mais vulneráveis e necessitadas.
Após
a polêmica com os escribas (doutores da lei), Jesus continua no tempo
observando o movimento e, certamente, inconformado com tudo o que ali via. Ele sabia
que aquela construção já não era casa de oração, mas casa de comércio (cf. Mc
11,15-18). Chamava a atenção de Jesus a comercialização da fé: “Jesus estava
sentado no templo, diante do cofre das esmolas, e observava como a multidão
depositava suas moedas no cofre. Muitos ricos depositavam grandes quantas” (v.
41). O povo tinha se acostumado com uma divindade que pedia ofertas para
revertê-las em favores e proteção aos que ofertavam. A posição de Jesus era de completo
repúdio àquele sistema. Entre tantas pessoas devotas que por ali passavam,
Jesus observa um caso particular: “Então chegou uma viúva que deu duas
pequenas moedas, que não valiam quase nada” (v. 42). Ora, de acordo com a
lei, o sistema religioso deveria prover as viúvas pobres do necessário para a
sobrevivência (cf. Dt 14,28-29). E Jesus contempla o contrário: o sistema
religioso recebendo até mesmo de quem não podia ofertar e mal tinha como
sobreviver. Embora voluntária e generosa, a oferta da viúva é motivada por uma
concepção errada de Deus; ela é coagida ideologicamente a ofertar para poder
receber benefícios de Deus. Era isso que os escribas (doutores da lei) e
sacerdotes pregavam.
Jesus
se comove ao ver a viúva ofertando tudo o que tinha para viver, e chama a
atenção dos discípulos: “Jesus chamou os discípulos e disse: “Em verdade vos
digo, esta pobre viúva deu mais do que todos os outros que ofereceram esmolas. Todos
deram do que tinham de sobra, enquanto ela, na sua pobreza, ofereceu tudo
aquilo que possuía para viver” (vv. 43-44). A denúncia aos escribas tinha
sido feita abertamente para a multidão (cf. v. 38); agora, se trata de um
ensinamento mais reservado e específico para os discípulos, cuja importância é
evidenciada pela introdução “Em verdade vos digo” (em grego: αμην λεγω υμιν – amém legô himin); essa é uma fórmula de
introdução de um ensinamento solene e importante. Portanto, a observação que
Jesus fez sobre a oferta da viúva tem grande importância para o seu discipulado
em todos os tempos.
É
claro que Jesus percebeu sinceridade e verdade naquela oferta. Ao contrário dos
escribas que viviam de aparências, e dos ricos que ofertavam do supérfluo, a
viúva renunciou a tudo o que tinha para viver, doando as suas duas únicas
pequenas moedas. Porém, a admiração de Jesus é mais uma denúncia do que um
elogio: a oferta das duas moedinhas da viúva era a última prova que ele
precisava para concluir que aquela instituição religiosa – o templo e seu
aparato de sustentação financeiro e ideológico – estava completamente degradada,
sugando até mesmo de quem não tinha, como a viúva. Jesus sentiu as dores da
viúva sendo sugada pelo templo e chamou os discípulos para sentirem também essas
dores, alertando-os para jamais repetirem os abusos da religião que ele estava
condenando. Mais do que comover, aquela cena causou repulsa em Jesus; por isso,
ao sair do templo, pouco tempo depois, ele desejou e profetizou a sua
destruição: “Não ficará pedra sobre pedra que não seja demolida” (Mc
13,2).
Jesus
condena severamente a religião que se sustenta em práticas superficiais,
condena a ostentação e a busca por privilégios. Ele não tolera religião de
fachada, sobretudo quando essa esconde injustiças e exploração. Qualquer
prática religiosa que abusa da boa vontade das pessoas simples e humildes, nada
tem a ver com o projeto de Jesus.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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