Após uma
sequência de oito domingos, a liturgia interrompe o tempo comum para viver e
celebrar um de seus tempos mais fortes, a Quaresma, iniciada na quarta-feira de
cinzas, em preparação à Páscoa do Senhor. Hoje, celebramos o primeiro domingo
deste tempo especial. Como acontece todos os anos, o evangelho deste primeiro
domingo compreende a narrativa das tentações pelas quais passou Jesus no
deserto, após ser batizado. Esse é um episódio presente nos três evangelhos
sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), um dado que confirma a sua grande
importância para as comunidades primitivas. Neste ano, especificamente, nós
lemos a versão do Evangelho segundo Lucas: 4,1-13; se trata de um texto
bastante rico, muito bem elaborado tanto do ponto de vista literário quanto
teológico, com uso abundante de linguagem simbólica.
Marcado
por forte simbologia, o relato evangélico de hoje corre o sério risco de ser
mal compreendido, devido a nossa tendência equivocada de considerar os
evangelhos como livros de crônicas da vida de Jesus, esquecendo o aspecto
simbólico que predomina neste tipo de relato. Por isso, é necessário, a nível
de introdução, fazer alguns considerações importantes para uma adequada
compreensão. A fonte original deste relato, o Evangelho segundo Marcos, não dá
nenhum detalhe sobre o nível e a modalidade das tentações; apenas diz que “Jesus
esteve no deserto durante quarenta dias sendo tentado por Satanás” (Mc
1,13); dessa informação simples e vaga, Lucas, com muita criatividade e
atendendo às necessidades da sua comunidade, “criou” a história que lemos hoje
na liturgia, como fez também Mateus (cf. Mt 4,1-11).
A nível de contexto, é imprescindível recordar que o relato das
tentações segue, imediatamente, o relato do batismo – cf. Lc 3,21-22 – e, por
isso, ambos estão intrinsecamente relacionados. Ainda antes do batismo, João
tinha anunciado Jesus como o Messias, em sua pregação. Ora, no batismo o
Espírito Santo desceu sobre Jesus e, do céu, o próprio Pai o declarou como o
seu “Filho Amado”. Logo, o principal objetivo do
evangelista com este episódio de hoje é apresentar o comportamento de Jesus
como o enviado de Deus, ou seja, o “Filho amado do Pai”, conforme a revelação
no batismo, cena anterior ao texto de hoje (cf. Lc 3,22), o qual permanecerá
fiel aos propósitos do Pai, rejeitando todas as propostas que não condizem com
os valores do Reino, sintetizadas aqui pelas três tentações apresentadas pelo
diabo. Portanto,
esse é um texto programático para a comunidade cristã, pois indica como deve
agir e resistir ao mal quem se deixa conduzir pelo Espírito Santo.
O primeiro versículo já apresenta
a principal chave de leitura de todo o texto: “Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do
Jordão, e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito” (v. 1). Ora, o mesmo Espírito Santo que desceu em forma corpórea de pomba (cf.
Lc 3,22) no batismo, acompanhará Jesus em todos os seus passos e ações; com o
batismo, foi inaugurada sua vida pública, e essa, do início ao fim, será
marcada pela presença do Espírito Santo, e não apenas quando Ele vai ao
deserto. Aqui, o deserto não é um indicativo geográfico, mas teológico. A ida
de Jesus ao deserto, antes de tudo, indica que ele está inserido na história do
povo de Israel, fazendo parte desse e, portanto, estará sujeito aos mesmos riscos
pelos quais Israel passou, desde a saída do Egito até a conquista da terra.
Logo, também o caminho de Jesus, do nascimento à ressurreição, será marcado por
riscos, perigos e provas, uma vez que Ele, mesmo sendo o “Filho Amado” de Deus,
é verdadeiramente ser humano, assumiu a humanidade em todas as suas dimensões.
Embora o deserto evoque a provação, é também o lugar ideal para o bom
relacionamento com Deus, por isso, quando o povo
demonstrava infidelidade, os profetas apresentavam a necessidade de retornar ao
deserto para voltar a viver o ideal da aliança (cf. Os 2,14; 9,10; 13,5; Am
2,10; 5,25).
Uma vez que o deserto também é
sinônimo de provação e perigo, o evangelista quer dizer que aquele que tem a
sua vida conduzida pelo Espírito, não está imune aos perigos da vida, não é uma
pessoa blindada. Por isso, diz que “Ali foi tentado pelo diabo durante quarenta
dias. Não comeu nada naqueles dias e, depois disso, sentiu fome” (v. 2). O protagonista da tentação é o diabo (διαβολος – diábolos), palavra grega que literalmente significa aquele que
divide e atrapalha, como é tudo o que se opõe à concretização do Reino de Deus
e ao caminho de Jesus. Logo, o diabo não é uma pessoa ou um ser específico, mas
todo percalço posto diante do projeto de Deus; muitas vezes é a própria
estrutura das comunidades que teimam em ofuscar o Evangelho.
Se o deserto não é um dado
geográfico, assim também os “quarenta dias” que Jesus lá passou não podem ser
considerados como um dado cronológico. Mais uma vez, trata-se de um dado
teológico, e de grande relevância. São muitas as ocorrências do número quarenta
relacionado ao tempo no Antigo Testamento: a duração do dilúvio foi de quarenta
dias e quarenta noites (cf. Gn 7,4.12.17); Moisés passou quarenta dias sobre a
montanha, antes de receber a Lei (cf. Ex 32,28); a caminhada do povo de Deus no
deserto durou quarenta anos, sendo esse um tempo de fidelidade e infidelidade,
idolatria e prova (Ex 16,35; Dt 8,2-5; Sl 5,10); e o profeta Elias caminhou durante quarenta dias
rumo ao
monte Horeb (cf. 1 Rs 19,8). Além de evocar acontecimentos e
personagens importantes da história de Israel, esse número quer dizer também
uma etapa completa, ou seja, uma vida inteira, uma geração (quarenta anos).
Portanto, significa que toda a vida de Jesus foi marcada pela prova e, assim, é
também a vida da comunidade cristã. Isso deve levar os cristãos e cristãs a uma
vida vigilante sem, jamais, cair nos comodismos que podem surgir. Quer dizer
que a Igreja não pode, em momento algum da história, aceitar qualquer sinal de
conforto, principalmente quando ofertado pelos detentores do poder.
A primeira
tentação diz respeito à maneira de relacionar-se com as coisas; a lógica do
império incentiva o consumo e satisfação dos desejos. Eis o que diz a primeira
tentação: “O diabo disse, então, a Jesus: “Se és Filho de
Deus, manda que esta pedra se mude em pão. Jesus respondeu: “A Escritura diz:
‘Não só de pão vive o homem” (vv. 3-4). Embora
faminto, Jesus percebe que não é suficiente saciar-se de pão naquele momento,
pois a vida pede muito mais que pão. Por isso, com base na Escritura (cf. Dt
8,3), Ele não dispensa o pão, mas diz que o homem não pode viver “somente”
dele. A vida digna e plena não depende somente do alimento material, mas de
todos os valores do Reino contidos na “Palavra que sai da boca de Deus”, que
será explicitada no decorrer do seu ministério. O messianismo da época
previa um messias milagreiro, ao que Jesus se opõe radicalmente; Ele não veio
ao mundo para resolver os problemas de maneira fácil e cômoda, como queriam e
ainda querem muitos grupos e movimentos religiosos.
A segunda
tentação diz respeito à relação com o próximo, sobretudo quanto à maneira de
conceber e exercer o poder: “O diabo levou Jesus para o alto, mostrou-lhe
por um instante todos os reinos do mundo, e lhe disse: ‘Eu te darei todo este
poder e toda a sua glória, porque tudo isso foi entregue a mim e posso dá-lo a
quem eu quiser. Portanto, se te prostrares diante de mim em adoração, tudo será
teu’. Jesus respondeu: “A Escritura diz: ‘Adorarás o Senhor teu Deus, e só a
ele servirás” (v. 5-8). A lógica
religiosa-imperial incentivava a busca constante por prestígio e poder e,
consequentemente, de domínio sobre o outro. Cada vez mais alimentavam-se as
expectativas de um messias glorioso e poderoso, capaz de julgar e condenar
todos os ‘inimigos’ de Israel. Para decepção de muitos, Jesus apresentou-se
como messias servo e sofredor. Por isso, rejeita toda e qualquer forma de
poder, pois, mesmo que esse seja exercido em nome de Deus, será sempre de
origem diabólica, uma vez que impede a concretização de uma fraternidade
universal.
Ao invés de
poder, Jesus escolherá o serviço como meio de exercício de sua autoridade, e
fruto de suas convicções de Filho Amado do Pai. Ele não quis e nem quer o
domínio do universo; quis e quer apenas que o seu amor chegue, através dos seus
seguidores e seguidoras, em todos os confins da terra e, assim, que a
humanidade seja transformada por esse amor. É claro que o evangelista não descreve
o diabo como dono do mundo; mas está denunciando que o poder exercido até
então, em todos os reinos, marcado pela exploração, injustiça e opressão, segue
a lógica diabólica, à qual o Evangelho se contrapõe com o Reino de Deus,
marcado pelo amor, pelo serviço, a justiça e a fraternidade.
A terceira
tentação chama a atenção para a relação com Deus: “Depois o
diabo levou Jesus a Jerusalém, colocou-o sobre a parte mais alta do Templo, e
lhe disse: “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo! Porque a Escritura diz:
‘Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, que te guardem com cuidado!’ E
mais ainda: ‘Eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’. Jesus,
porém, respondeu: “A Escritura diz: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus” (v. 9-12)
Ora, no templo de Jerusalém, onde a
religião dizia que Deus morava, o que mais se podia esperar era milagres! Jesus
resiste à tentação do milagre fácil, rejeitando o Deus vendido pelo templo; o
seu Deus não é aquele que distribui anjos por todas as partes para guiar e
proteger os seus “filhos bons” e castigar os maus, como afirmava a religião da
época, não é o Deus das visões e aparições nem dos espetaculares prodígios, mas
é o Deus da simplicidade, das coisas pequenas, porque age a partir de dentro do
ser humano.
Na
conclusão, diz o evangelista que “Terminada toda a tentação, o diabo afastou-se
de Jesus, para retornar no tempo oportuno” (v. 13). O diabo se afastou,
momentaneamente, porque não encontrou em Jesus um aliado. De imediato, o
evangelista já liga às tentações à cruz, o tempo oportuno em que o diabo
retornou; de fato, também no calvário, já crucificado, Jesus foi tentado três
vezes, por três categorias que assumiram o papel do diabo e o puseram à prova: o
povo (multidão); os soldados e um dos malfeitores crucificado com ele (cf. Lc
23,35-39); esses três grupos tentaram Jesus na cruz com a mesma tática do
diabo: “se és o Cristo ou o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo”. Também lá,
Jesus resistiu.
As três tentações ou provas relatadas no
evangelho de hoje são proposta e contraproposta de como o ser humano deve
relacionar-se com as coisas, com o próximo e com Deus. São como uma parábola da
vida de Jesus. O diabo apresenta a lógica da ordem vigente, seja religiosa ou
política, e Jesus propõe um caminho alternativo, o que vai caracterizar o Reino
de Deus como uma sociedade alternativa a todas formas de organização social até
então experimentadas pela humanidade, amparadas ou não pela religião. Diante
disso, parece haver um debate ou disputa de conhecimento da Escritura entre o
diabo e Jesus. É uma nítida antecipação do que ocorrerá em toda a vida de
Jesus, sobretudo quando terá de enfrentar os líderes religiosos do seu tempo. A
resistência de Jesus, recorrendo sempre à Palavra de Deus é uma indicação para
as comunidades cristãs de todos os tempos: a perseverança e a fidelidade ao
projeto de Jesus depende essencialmente da atenção à Palavra. Ao mesmo tempo, há
uma clara denúncia ao perigo do uso fundamentalista das Escrituras e tradições
religiosas, pois também os argumentos do diabo são fundamentados na Palavra de
Deus. É um alerta de que o mal age na história camuflado de diversas
aparências, inclusive de pessoas muito religiosas.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues –
Diocese de Mossoró-RN
Padre, como é bom ter contato com uma abordagem tão lúcida e esclarecedora do evangelho! Obrigada, mais uma vez, por partilhar!
ResponderExcluirMais uma vez, obrigado. Padre Cornélio, Deus há de recompensá-lo pela sua generosidade em partilhar conosco da sua sabedoria. Suas reflexões são, para mim, um grande auxílio na elaboração das homilias. Muito obrigado! Frei Marcos Matsubara, ocd.
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