No domingo seguinte a pentecostes,
a Igreja celebra a solenidade da Santíssima Trindade. Ao contrário das solenidades
pascais, instituídas desde os primeiros séculos do cristianismo, essa já foi
introduzida num período mais tardio – século quatorze. Como sempre, a nossa reflexão
será pautada exclusivamente pelo evangelho, sem levar em consideração as afirmações
dogmáticas a respeito da Santíssima Trindade. Por isso, ao invés de buscar
definições e explicações para o mistério do Deus Uno e Trino, no qual cremos,
procuraremos contemplar e assimilar a sua principal característica – o amor – revelada
por Jesus, de acordo com o texto evangélico que a liturgia propõe neste ano: Jo
3,16-18. Apesar de curto, composto de apenas três versículos, esse texto possui
uma profundidade e riqueza extraordinárias, como veremos no decorrer da
reflexão. Como sempre, para o texto ser melhor compreendido, é necessário conhecer
o seu contexto, como faremos a seguir.
Localizado ainda no início do
Quarto Evangelho, esse texto faz parte do expressivo diálogo entre Jesus e
Nicodemos, em Jerusalém. Ora, Jesus se encontrava em Jerusalém por ocasião da
festa da “páscoa dos judeus” (Jo 2,13.23). Durante sua estadia na grande
cidade, Jesus realizou muitos sinais, despertando, além de oposição nas
autoridades, adesão ao seu nome e curiosidade em alguns, como Nicodemos, com
quem desenvolveu um prolongado e rico diálogo (Jo 3,1-21). Esse diálogo se desenvolve em três
momentos: o reconhecimento da autoridade de Jesus por Nicodemos (3,1-3); a explicação
de Jesus que para acolhê-lo como enviado do Pai é necessário nascer do alto
(3,4-8), e a descrição do projeto divino de salvação (3,9-21). Embora se trate
de um diálogo, Nicodemos pouco fala; a palavra é praticamente monopolizada por
Jesus; Nicodemos quase só escuta. Inclusive, no texto de hoje só temos palavras
de Jesus, segundo o evangelista.
O evangelista descreve Nicodemos
como um judeu importante, pertencente ao grupo dos fariseus (Jo 3,1), profundo
conhecedor da Lei (Jo 7,50-52), e curioso pela novidade de Jesus. Sua
curiosidade para conhecer melhor a mensagem de Jesus revela sinceridade e
respeito, inclusive o reconhecimento de que Jesus “vem da parte de Deus” (Jo
3,2), o que muitos fariseus tinham dificuldade de reconhecer, conforme as
informações fornecidas pelos quatro evangelhos. A leitura atenta do texto em seu
conjunto (Jo 3,1-21) revela que Nicodemos não estava satisfeito com a religião
oficial. Parece que a imagem do Deus pregado pela sua religião já não lhe convencia
plenamente. Certamente, ele desejava uma profunda renovação, embora ainda não estivesse
pronto para romper com o sistema e aderir ao projeto de Jesus. A simples
curiosidade, no entanto, já é um passo importante para quem estava plenamente atrelado
à estrutura religiosa da época, inclusive como uma das lideranças. Nicodemos
aparecerá em mais duas ocasiões no Quarto Evangelho, e sempre tomando posições
a favor de Jesus: defendendo-o da ira dos fariseus quando ele tinha se apresentado
como fonte de água viva, em alusão ao Espírito Santo (7,37-52), e ajudando em
seu sepultamento (19,39). Se já tinha interesse em conhecer Jesus pelo que
ouvia a seu respeito, certamente o interesse aumentou ainda mais ao dialogar com
ele.
Como último aspecto a nível de introdução
e contexto, recordamos as circunstâncias em que Nicodemos procurou Jesus: foi
na “calada da noite” (Jo 3,2). Esse detalhe tem sido alvo de muitas tentativas
de explicação pelos estudiosos. A explicação mais conhecida afirma que
Nicodemos procurou Jesus à noite para não ser visto pelos seus colegas de
doutrina, ou seja, os fariseus e os líderes religiosos de Jerusalém, uma vez
que Jesus não era bem visto por esse meio. De fato, para quem defendia a moral
e os bons costumes na época, Jesus era uma péssima companhia. Porém, é provável
que o evangelista tivesse intenções mais teológicas do que cronológicas para registrar
esse detalhe, o que não convém aprofundarmos aqui, já que não é componente do evangelho
de hoje, mas apenas um elemento do seu contexto.
Passemos, finalmente, ao estudo
do texto, o qual começa com a seguinte afirmação de Jesus: “Deus amou tanto
o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele
crer, mas tenha a vida eterna” (v. 16). Jesus apresenta Deus como aquele
que ama incondicionalmente, e ao mesmo tempo se auto apresenta como a prova desse
amor incondicional, já que é, ele mesmo, o Filho único doado ao mundo. Essa é a
primeira vez em que aparece o verbo do amor por excelência, no Quarto
Evangelho: o verbo grego “agapáo”, o qual aparecerá mais trinta e cinco vezes.
De quatro verbos correspondentes a amar na língua grega, somente “agapáo” expressa
um amor incondicional e gratuito, que compreende a doação da vida. E assim é o amor de Deus: Ele deu seu Filho ao mundo sem exigir reciprocidade;
a resposta de amor a Ele da parte do mundo, ou seja, de cada ser humano, é
simplesmente consequencia de sentir-se amado. Com essa afirmação, Jesus praticamente
inverte o primeiro mandamento da Lei: na verdade, é Deus quem ama cada pessoa
sobre todas as coisas. O mundo, para a teologia joanina, pode significar toda a
humanidade, a criação inteira e, ainda, a oposição a Jesus e sua mensagem de
salvação. Aqui, significa toda a humanidade; o gênero humano como destinatário
do amor incondicional de Deus, o Pai.
A primeira finalidade da oferta de Jesus – 0 Filho –
pelo Pai ao mundo é a vida eterna, o que não se trata de uma promessa para o
além, mas de um dom para o presente. O adjetivo “eterna”, aqui, não significa a
duração, mas a qualidade da vida de cada pessoa que acolhe o dom do Pai, Jesus.
Não é um prêmio reservado para os bons após a morte, mas a vida ressignificada
de quem faz uma experiência autêntica com Jesus. É a vida autêntica e plena, a
ponto de nem a morte poder destruí-la. À medida em que o ser humano encontra
sentido para a sua existência, a sua vida se eterniza. E o sentido pleno da
vida só pode ser encontrado quando se consegue viver autenticamente como imagem
e semelhança do criador, à maneira de Jesus. E a humanidade tem a oportunidade
de fazer essa experiência, pois o dom do Filho é acessível a ela toda, e não
apenas a um povo. O amor de Deus é ilimitado e universal.
O segundo versículo reforça o que diz o primeiro com
maior precisão: “De fato, Deus não enviou o seu Filho ao mundo
para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (v. 17). A
primeira frase, em forma de negação, enfatiza ainda mais o projeto de salvação
de Deus, dizendo o que o Filho não veio fazer no mundo: condenar ou julgar. Considerando
que o interlocutor de Jesus é um fariseu, observador impecável da Lei, essa
frase adquire um sentido ainda mais forte: Deus não condena e nem julga ninguém;
o versículo seguinte deixará isso ainda mais claro, ao afirmar que a condenação
é opção pessoal de cada um(a). O pecado da humanidade não diminui o amor de
Deus; tudo o que ele quer é que a humanidade seja salva; por isso, deu o seu
Filho único. Salvar significa libertar, e é a missão que o Pai confiou a Jesus,
ao enviá-lo ao mundo. A mensagem de Jesus é uma proposta de libertação plena
para o ser humano. E a primeira prisão da qual Jesus quer libertar o ser humano
é de uma concepção equivocada de Deus: a passagem da ideia de um Deus como juiz
e patrão, para um Deus que é Pai e “louco” de amor pelos seus filhos. É importante
recordar esse diálogo com Nicodemos é, na verdade, o primeiro discurso de Jesus
no Quarto Evangelho; e sua primeira preocupação foi revelar que Deus é Pai e só
tem amor para oferecer à humanidade.
Enquanto nos dois primeiros versículos
Jesus falou da iniciativa de Deus, neste terceiro ele fala da resposta humana ao
dom de Deus, com suas respectivas consequências: “Quem nele crê, não é
condenado, mas quem não crê, já está condenado, porque não acreditou no nome do
Filho unigênito” (v. 18). Assim como foi livre a oferta do Pai, também deve
ser livre a resposta do ser humano. Não é mais o Deus do templo, que exigia
ofertas e sacrifícios como contrapartida a favores e bênçãos; é o da Deus da
liberdade e da vida. O verbo crer no Quarto Evangelho tem um significado muito
profundo, relacionado ao amor, inclusive. Significa responder positivamente ao
amor de Deus, assimilando o programa de vida de Jesus. Para quem faz essa opção,
obviamente, não há condenação; se torna uma pessoa livre e realizada, com uma
vida plena de sentido, ou seja, eternizada. Quem rejeita essa oferta, perde a
oportunidade de dar sentido à vida, e é essa a condenação da qual fala Jesus
aqui; não se trata de um castigo futuro, mas de uma opção pessoal de viver fora
da comunhão com Deus ainda aqui na presente existência. Em outras palavras, o
evangelista diz que a mensagem de Jesus exige uma tomada de posição pró ou
contra.
A certeza que temos é de um Deus
Pai, que ama a humanidade incondicionalmente. É isso que o evangelho de hoje
deixa claro. Ao amor, a única resposta convincente é também o amor. Mesmo que o
Pai não exija que lhe amemos, se nos deixarmos envolver pelo seu amor revelado
em Jesus, não poderemos reagir de outra maneira que não seja amando a ele e ao próximo
como imagem sua. Portanto, sem condições e nem capacidades para descrever um Deus
que é Um, mas que são três pessoas, arrisquemos a viver por amor como seu Filho
viveu.
Pe. Francisco Cornélio F.
Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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