Neste décimo primeiro domingo do
tempo comum, a liturgia retoma a leitura sequencial do Evangelho segundo
Mateus, interrompida desde o início da quaresma até a solenidade da Santíssima
Trindade, celebrada no domingo passado. O texto proposto para hoje – Mt
9,36–10,8 – compreende o envio dos doze apóstolos em missão, por Jesus, para
sanar a situação de abandono do povo de Israel, devido à negligência e
corrupção de seus líderes, os dirigentes políticos e religiosos que fugiram das
responsabilidades de pastores. Esse envio é fruto do olhar compassivo de Jesus,
que não fica indiferente diante das situações de abandono e opressão pelas
quais passam os seres humanos. Jesus sempre toma iniciativas que visam a
transformação de todas as situações de ameaça à vida. E essa postura deve ser a
mesma da comunidade cristã em todos os tempos.
A nível de contexto, podemos
observar que se trata de um texto de transição entre uma seção narrativa e um
discurso de Jesus. Por sinal, a alternância entre narrativa e discurso é uma
das principais características literárias do Evangelho segundo Mateus. O texto
compreende, pois, a conclusão da seção narrativa que sucedeu ao discurso da
montanha (Mt 8,1–9,38) e a introdução de um novo discurso, o chamado “discurso
missionário” ou “apostólico” (Mt 10), composto pelo envio missionário e uma
série de instruções e advertências sobre a missão; esse é o segundo dos cinco
discursos atribuídos a Jesus em Mateus. Para compreender melhor o texto, é
importante recordar também o que afirma o versículo que o antecede, que
sintetiza a missão de Jesus até então: “Jesus percorria todas as cidades e
povoados, ensinando em suas sinagogas, proclamando o Evangelho do Reino e
curando todo tipo de doença e enfermidade” (9,35). O que Jesus irá fazer
nos versículos seguintes, correspondentes ao evangelho de hoje, é habilitar os
seus discípulos como cooperadores da sua missão, para fazer o mesmo que ele
fazia.
Podemos perceber, ao longo dos
Evangelhos, que são sempre as situações concretas que motivam a ação e a
pregação de Jesus. Ele nunca parte de meras abstrações, mas da realidade. O
texto de hoje é uma boa demonstração disso. Olhemos, então, para o início,
compreendendo os três primeiros versículos: “Vendo Jesus as multidões,
compadeceu-se delas, porque estavam cansadas e abatidas, como ovelhas que não
têm pastor. Então disse a seus discípulos: (v. 36) ‘A messe é grande,
mas os trabalhadores são poucos. (v. 37) Pedi, pois, ao dono da messe
que que envie trabalhadores para a sua colheita!” (v. 38). A itinerância da
atividade de Jesus (Mt 9,35) lhe permitia conhecer com profundidade as
situações em que o povo se encontrava. Seu 0lhar nunca era superficial, mas
sempre profundo. Jesus contempla um povo abandonado, oprimido e maltratado; é
isso o que significa a expressão “as multidões cansadas e abatidas”; não se
trata de um cansaço físico e desânimo, mas de uma situação deplorável de
abandono e miséria. A comparação com ovelhas que não tem pastor é a prova
disso. A ovelha era considerada o animal símbolo de vulnerabilidade e
dependência; não possuía nenhum mecanismo de defesa; dependia essencialmente
dos cuidados dos pastores. Logo, ovelha sem pastor é imagem de completo
abandono; com essa imagem Jesus descreve a situação do povo e, ao mesmo tempo,
faz uma dura denúncia às classes dirigentes da época, tanto religiosas quanto
políticas, responsáveis pelo abandono do povo.
Ao ver as multidões abandonadas,
“Jesus compadeceu-se”, ou seja, sentiu compaixão, misericórdia. Não se trata de
um mero sentimento, mas de algo muito mais profundo. O evangelista emprega aqui
o verbo que expressa a máxima misericórdia de Deus (em grego: σπλαγχνίζομαι – splanknízomai),
que significa literalmente “contorcer-se nas entranhas”; para a mentalidade
hebraica, as entranhas ou vísceras são o núcleo mais íntimo e profundo do ser
humano. É uma realidade mais profunda até do que o coração, e é de lá que brota
a misericórdia de Deus. E, mais do que sentimento, a misericórdia de Deus é
ação libertadora. Do núcleo mais íntimo de Deus é desencadeada a missão,
incialmente de Jesus, e compartilhada por ele com toda a comunidade cristã,
tendo em vista a libertação do povo abandonado e explorado pelos sistemas
dominantes nos âmbitos da economia, da política e da religião. Compadecido com
a situação das multidões, Jesus não se desespera e nem se conforma; e é muito
importante essa sua postura. Antes de tudo, ele reforça sua confiança no Pai, o
dono da messe, outra imagem aplicada às multidões, a exemplo de ovelhas. A
messe é a lavoura que está pronta para ser colhida, não pode mais esperar, pois
pode perder-se. Aplicada às multidões abandonadas, significa que aquela
situação exige uma atitude urgente; sem uma intervenção salvadora, o povo
perecerá. É importante que os discípulos e discípulas de todos os tempos tenham
a sensibilidade de perceber as situações que necessitam de intervenção urgente,
como a fome, as doenças, as manipulações ideológicas e tantos outros males.
Diante disso, Jesus concilia a confiança no Pai com atitudes concretas: a
designação de operários para a colheita, o que faz com o envio dos discípulos
transformados em apóstolos.
A messe é de Deus, quer dizer, é
a Deus que o povo pertence, mas para que não se perca é necessária a
colaboração humana. Por isso, “Jesus chamou os doze discípulos e deu-lhes
poder para expulsar os espíritos maus e para curar todo tipo de doença e
enfermidade” (10,1). A iniciativa de chamar os discípulos é uma
advertência: o discipulado não é puro voluntarismo e nem hereditário; a
iniciativa é sempre de Deus. Jesus está pondo em prática os efeitos da oração
exigida antes: que os discípulos pedissem ao dono da messe que enviasse
operários para a colheita. Como o enviado de Deus por excelência e intérprete
autêntico da sua vontade, Jesus mesmo envia, compartilhando com seus discípulos
a mesma autoridade recebida de Deus. “Expulsar espíritos maus e curar todo
tipo de enfermidade” é uma imagem que significa o compromisso dos
discípulos e discípulos de Jesus, em todos os tempos, de lutar contra todo o
tipo de mal que ameaça a vida humana em sua integridade. É o esforço da
comunidade cristã para abolir as forças do mal do mundo. Pela primeira e única
vez, Mateus chama os doze primeiros discípulos de apóstolos (10,2), termo que
significa “enviados”. Literalmente, apóstolo é uma pessoa enviada para
representar fisicamente aquele que lhe enviou, inclusive em processos. Antes de
ser apóstolos eles são discípulos. Também é a primeira e única vez em que ele
elenca os nomes dos doze, começando por Simão, chamado Pedro, e terminando com
Judas, o qual se desintegrará do grupo após a traição, durante o processo
(10,2-4). Não se trata de uma lista hierárquica, bem como a designação de
discípulos em apóstolos não é uma promoção, mas um compromisso: é a
responsabilidade de todos os cristãos e cristãs de estar com Jesus e, ao mesmo
tempo, ser a sua presença no mundo, especialmente restituindo vida e dignidade
a quem se encontra em estado de abandono.
Após o elenco dos nomes, o
evangelista passa às atribuições dos doze, enquanto enviados, iniciando a
sequência de instruções que se estenderá por todo o capítulo, e hoje temos a
oportunidade de ler as primeiras: “Jesus enviou estes doze com as seguintes
recomendações: “Não deveis ir aonde moram os pagãos, nem entrar nas cidades dos
samaritanos! (10,5) Ide, antes, às ovelhas perdidas da casa de Israel!” (10,6).
As primeiras recomendações dizem respeito à circunscrição da primeira missão:
os discípulos devem ir exclusivamente às ovelhas perdidas da casa de Israel.
Ora, a designação de Israel como primeiro destinatário da missão apostólica não
significa um privilégio histórico, tampouco uma tentativa de reconstrução do
povo da aliança, mas uma necessidade. Mais do que qualquer outro povo, eram os
israelitas que estavam abandonados, o que significa que, de todos os dirigentes
do mundo, eram os líderes de Israel os mais pervertidos. Por isso, era Israel o
povo mais abandonado e, consequentemente, o mais necessitado de libertação.
Seus líderes tinham fugido das responsabilidades de cuidar do povo, o que já era
motivo de denúncias há muitos séculos, desde os profetas, como o exemplo de
Ezequiel, que denunciou os pastores que cuidaram de si mesmos, ao invés de
cuidar do rebanho (Ez 34). Ora, de todas as formas de dominação, a pior é a
dominação religiosa, e Jesus tinha consciência disso. Por isso, sua primeira
iniciativa foi promover a libertação de quem estava sendo explorado em nome de
Deus.
Na sequência, o evangelista
descreve o conteúdo e o agir dos apóstolos, deixando claro que não se trata de
uma teoria ou doutrina, mas de um anúncio acompanhado de consequências
práticas: “Em vosso caminho, anunciai: ‘O Reino dos Céus está próximo’ (10,7)
Curai os doentes, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os
demônios”(10,8a). A mensagem que os discípulos devem anunciar é a mesma de
Jesus, desde o anúncio do seu ministério (Mt 4,17): a chegada do Reino dos
Céus; o “estar próximo”, aqui, não significa a temporalidade, mas a materialidade:
na pessoa de Jesus, o Reino se instaura e, enquanto apóstolos, os discípulos
são uma extensão da sua pessoa, logo, neles também o Reino começa a se
realizar. Esse Reino é dos Céus porque sua origem é o amor misericordioso de
Deus, mas começa já aqui, onde há pessoas abandonadas e exploradas, para quem a
libertação não pode mais ser adiada. Como a missão compreende palavras e ações,
também os gestos que os apóstolos devem cumprir são os mesmos que Jesus já
estava cumprindo (Mt 4,23; 8,16; 9,35), e que já tinha sido antecipado no
início deste segundo discurso (Mt 10,1): curas, ressurreição, purificação e
expulsão de demônios, ações que evidenciam um mundo sem males, um mundo onde a vida
prevalece.
Os discípulos-apóstolos ou
missionários são responsáveis pela transformação do mundo, sanando as multidões
abandonadas e exploradas, restituindo vida e dignidade. Isso só é possível
colocando em prática o programa de Jesus. Por isso, o evangelista não se cansa
de dizer que Jesus envia os seus discípulos para anunciar e realizar o mesmo
que ele fez e pregou, sem distorções, mas também sem esquecer dos sinais dos
tempos. A última recomendação do evangelho de hoje diz respeito à gratuidade do
Reino: “De graça recebestes, de graça deveis dar!” (8b). Os discípulos e
discípulas de Jesus não são mercadores do sagrado, como tinham se transformado
as antigas lideranças de Jerusalém, e continua acontecendo hoje. Tudo o que a
comunidade cristã tem a oferecer ao mundo é o que recebeu gratuitamente de
Jesus. E tudo o que Jesus recebeu do Pai como dom compartilhou com os seus
seguidores e seguidoras que, por sua vez, também devem compartilhar
gratuitamente com o mundo para sanar as situações de degradação e negação da
vida, muitas vezes provocadas por falsos pastores. É necessário, portanto,
olhar o mundo com o mesmo olhar de Jesus, sentir compaixão e buscar a
transformação, na gratuidade do amor misericordioso de Deus.
Pe. Francisco Cornelio Freire
Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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