Neste décimo quarto domingo do tempo comum, a liturgia retoma a
leitura sequenciada do Evangelho segundo Mateus, interrompida de novo no
domingo passado, por ocasião da solenidade dos santos apóstolos Pedro e Paulo.
O trecho lido hoje – Mt 11,25-30 – faz parte da seção narrativa intermediária
entre o discurso missionário (Mt 10) e o discurso em parábolas (Mt 13). Como já
afirmamos em outras ocasiões, a alternância entre discurso e narrativa é uma
característica literária marcante do Evangelho segundo Mateus. A recordação
dessa dinâmica é importante para a compreensão da obra em seu conjunto, bem
como de cada texto lido separadamente, como o de hoje, por exemplo.
No discurso missionário (Mt 10), Jesus preparou seus discípulos e
os enviou em missão para ajudar a sanar a situação de abandono e exploração em
que se encontravam as multidões (Mt 9,36–10ss). Diz o evangelista que, após
instruir os discípulos para a missão, também Jesus saiu para ensinar e pregar
nas cidades da Galileia (Mt 11,1). De fato, sempre que Jesus conclui um
discurso, Mateus o mostra tomando iniciativas, agindo concretamente em favor da
libertação do povo sofrido. Isso serve de advertência para a comunidade cristã
de todos os tempos: os discursos só têm sentido se forem acompanhados de ações
e gestos concretos. A maneira como Jesus conciliava discurso e práxis é o
parâmetro para a comunidade.
Embora o evangelista não fale nada sobre o retorno dos discípulos
e o resultado da missão deles e do próprio Jesus, tudo indica que não foram
bem-sucedidos. O contexto e as entrelinhas dão a entender que houve rejeição e
hostilidades. Inclusive, o própria João Batista, já preso, desconfiou da
autenticidade do ministério de Jesus, a ponto de enviar seus discípulos para
tirar algumas dúvidas, afinal, o comportamento de Jesus não correspondia às
suas expectativas (Mt 11,2-19). Ora, João tinha anunciado um messias juiz e
vingador, alguém que vinha ao mundo para premiar os bons e condenar os
pecadores (Mt 3,7-12), enquanto Jesus se misturava com os pecadores, bebendo e
comendo com eles (Mt 11,18).
Além das dúvidas de João, o evangelista registra o desgosto de
Jesus com as cidades que Ele escolheu como primeiras destinatárias da sua
missão: “Então começou a recriminar as cidades onde tinha realizado a
maioria dos seus milagres, porque elas não tinham se convertido” (cf.
Mt 11,20-24). Essas cidades eram Corazim, Betsaida e Cafarnaum, escolhidas a
dedo para o anúncio da chegada do Reino dos céus. Com a sua reputação posta em
dúvidas pelo seu próprio mentor, João Batista, e a rejeição de seus
compatriotas galileus, Jesus tinha tudo para decretar a falência do seu
projeto. Porém, fez exatamente o contrário: louvou ao Pai por tudo o que estava
acontecendo. É esse o contexto do Evangelho de hoje.
Feita a devida contextualização, voltamos nossa atenção para o
texto de hoje, que apresenta a resposta de Jesus a tudo isso que acabamos de
recordar: “Naquele tempo, Jesus pôs-se a dizer: ‘Eu te louvo, ó Pai,
Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e
entendidos, e as revelastes aos pequeninos” (v. 25). A primeira
observação importante que fazemos diz respeito à expressão “Naquele
tempo” que, dessa vez, faz parte mesmo do texto bíblico, e tem uma
importância relevante. Como a liturgia praticamente banalizou essa expressão,
colocando-a sempre como fórmula de introdução ao Evangelho, corremos o risco de
não perceber seu real significado no texto de hoje. Ora, ao precisar
temporalmente o episódio, “Naquele tempo” (em grego: έν έκείνω τω καιρω – En ekeíno tô kairô), o evangelista relaciona diretamente o
texto com os acontecimentos anteriormente narrados. O que Jesus está para dizer
é reação ou resposta aos últimos acontecimentos.
E a reação de Jesus não foi o desespero e nem o desânimo, mas uma
oração de louvor e ação de graças ao Pai. Ao invés de sentir-se falido em suas
pretensões, diante das rejeições sofridas e desconfiança do seu mestre, João
Batista, Jesus sente-se realizado porque, de fato, os propósitos de Deus, o
Pai, começam a concretizar-se: o mundo novo só pode ser construído com a adesão
dos pequeninos (em grego: νηπίοις – nepióis), o que significa também inocentes, indefesos,
humildes e pobres. É a síntese dos verdadeiros necessitados de vida nova e
libertação. O Reino dos céus, que implica no desmoronamento dos sistemas de
poder vigentes, por isso é ameaça para os ricos e poderosos, os detentores de
poder político e religioso, só tem sentido e só é possível se o programa de
vida de Jesus for abraçado. Esse programa consiste na vivência das
bem-aventuranças” (Mt 5,1-12). Os pequeninos que estão conhecendo “estas
coisas” são: os pobres, os mansos, os aflitos, os famintos e sedentos de
justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os promotores da paz e os
perseguidos, ou seja, os bem-aventurados. Essas pessoas, sim, percebem em Jesus
o advento de um novo mundo, um novo tempo.
Quanto aos “sábios e entendidos”, para eles os valores do Reino
permanecem ocultos devido à soberba, orgulho, avareza, legalismo e uso da força
e da violência, tanto física quanto simbólica, incluindo os sistemas religiosos
que se impõem pelo medo. Esses são os dirigentes, a elite política e religiosa,
principalmente. São aqueles que não tem coragem de tornar-se pequenos e, por
isso, não entrarão no Reino dos céus (Mt 18,3). Quem assume o poder como meio
de dominação, seja econômica, política ou ideológica, tende a rejeitar um
projeto de sociedade justa, igualitária e fraterna, como é o Reino dos céus.
Não resta dúvida de que a crítica de Jesus aqui se aplica mais ao campo
religioso: os “sábios e entendidos” que não conhecem “as coisas do Pai” são os
representantes oficiais da doutrina e da Lei – escribas, mestres da Lei,
sacerdotes e fariseus – aqueles que passam a vida impondo normas e vigiando
quem está cumprindo ou não. Esses, como representantes de um Deus juiz, severo
e vingativo, não estão aptos a aceitar os propósitos de um Deus-Pai, o Deus de
Jesus, que nada impõe, mas apenas oferece amor.
Diante disso, Jesus não se desespera, mas expressa mais uma vez a
sua convicção de que os desígnios de Deus, o Pai, estão acontecendo: “Sim,
Pai, porque assim foi do teu agrado” (v. 26). O rechaço à
vontade de Deus por quem deveria abraçá-la primeiro, os conhecedores da Lei, já
era previsto, por mais paradoxal que pareça. E a comunhão íntima de Jesus com o
Pai lhe permitia conhecer os seus desígnios. Ninguém pode conhecer o Pai e
seus propósitos a partir de códigos e doutrinas, mas somente amando e
sentindo-se amado, fazendo-se pequeno para sentir a grandeza do amor de Deus. E
Jesus fala do seu Deus-Pai com propriedade porque é o Filho. Por isso, pode
dizer convictamente: “Tudo me foi entregue por meu Pai, e ninguém
conhece o Filho, senão o Pai, e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a
quem o Filho o quiser revelar” (v. 27). Essa declaração
reforça a intimidade de Jesus com o Pai e ao mesmo tempo denuncia a
ilegitimidade da religião vivida pelos considerados grandes da sua época, os
fariseus, mestres da lei e sacerdotes. Aquela religião não tinha legitimidade
porque anunciava sem conhecer, pois, se baseava em códigos legais e doutrinas
e, assim, ao invés de revelar, escondia o rosto do verdadeiro Deus.
Os pequeninos podem conhecer o que Jesus revela – o amor do Pai –
porque não é fruto de especulações, mas de uma relação íntima entre um Pai e um
Filho que se amam reciprocamente. Jesus não propõe uma teoria, mas o resultado
de uma experiência de amor; por isso, é compreensível pelos pequeninos, os seus
prediletos. Ainda a respeito dessa declaração que fala claramente da relação
Pai-Filho, convém recordar a novidade que ela representa aqui, pois se trata de
uma linguagem muito característica das tradições ligadas ao Evangelho de João.
Por isso, é muito significativa a sua presença nesse texto, exatamente quando
Jesus expressa a sua satisfação em ver os pequeninos compreendendo a dinâmica
do Reino. Esses pequeninos são aquelas mesmas multidões cansadas e abatidas,
que provocaram a compaixão em Jesus, porque estavam como ovelhas que não têm
pastor, ou seja, estavam abandonadas e exploradas, sobretudo pelas lideranças
religiosas da época (Mt 9,36).
Inconformado com o abandono do povo e a exploração da qual era
vítima, especialmente pelo peso da Lei, Jesus faz um solene e ousado
convite: “Vinde a mim todos vós que estais cansados e fatigados sob o
peso dos vossos fardos, e eu vos darei descanso” (v. 28). A
ousadia de Jesus aqui consiste em convidar à ruptura com todos os sistemas de
opressão, que negam liberdade e vida plena. E era exatamente a religião quem
mais deixava o povo cansado e fatigado, impondo fardos que nem mesmo os chefes
religiosos conseguiam carregar (Mt 23,4). Além da opressão do império romano, com
a cobrança excessiva de impostos, o povo ainda era submetido à coerção de uma
religião vazia e hipócrita. Daí o convite de Jesus para a verdadeira
libertação: “Vinde a mim... e eu vos darei descanso”. É
claro que o descanso que Jesus promete não é uma vida cômoda e fácil, mas sim
uma vida livre das imposições Lei e do peso da doutrina. Em outras palavras,
esse descanso é a liberdade e a capacidade de amar e sentir-se amado; é sinal
de realização do Reino dos céus e da vocação originária do ser humano, pois
evoca a perfeição e a completude de uma obra boa, como a criação (cf. Gn 2,2).
E o convite é ampliado: “Tomai sobre vós o meu jugo e
aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e vós encontrareis
descanso” (v. 29). Tomar o jugo de Jesus é trocar a
observância rígida da Lei pela prática das bem-aventuranças. É preciso aprender
de Jesus porque somente Ele, como Filho, pode revelar plenamente o rosto
amoroso do Pai, e somente fazendo uma experiência profunda de amor-comunhão, é
possível libertar-se do jugo imposto pelos guardiões da lei e da doutrina. Se
as bem-aventuranças em si resumem o perfil de Jesus, as suas duas
características que Ele cita aqui constituem uma boa síntese da sua
pessoa: manso e humilde de coração. É importante ressaltar que
a mansidão vivida por Jesus não pode ser confundida com resignação, nem
comodismo. Pelo contrário, essa consiste na coragem de lutar pelo Reino mesmo
na adversidade, sem, no entanto, recorrer aos mecanismos do opressor, como a
violência e o ódio.
Ao contrário do peso das prescrições legais impostas pela religião
do seu tempo, Jesus dá uma garantia aos seus seguidores: “O meu jugo é
suave e o meu fardo é leve” (v. 30). É claro que ele não
está prometendo facilidades na vida para aqueles que abraçarem o seu projeto. O
seu fardo consiste exatamente na vivência das bem-aventuranças, o que implica
em muitas dificuldades e desafios. Inclusive, o principal critério para
reconhecer se alguém está vivendo as bem-aventuranças é exatamente a
perseguição (Mt 5,11-12). A proposta de Jesus é suave e leve porque não
consiste em regras a cumprir, mas em um amor a ser experimentado.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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