O evangelho que a liturgia propõe neste domingo, o décimo oitavo do tempo comum, corresponde ao primeiro relato do episódio conhecido popularmente como “multiplicação dos pães” no Evangelho segundo Mateus – Mt 14,13-21. De todos os gestos de Jesus considerados milagres, esse é o único relatado nos quatro evangelhos, com seis versões ao todo, já que em Mateus e Marcos aparece duas vezes (Mt 14,13-21; 15,32-38; Mc 6,30-44; 8,1-9). Esses dados indicam a importância que o episódio teve para as primeiras comunidades cristãs e, provavelmente, o cuidado para que não fosse distorcido e nem fantasiado; por isso, preferiram narrá-lo integralmente várias vezes, embora cada uma das versões apresente certas particularidades.
Hoje, lemos a primeira versão de Mateus e, como
sempre, iniciamos considerando o seu contexto. O texto localiza-se praticamente
na metade do evangelho; mais do que importância, esse dado indica que Jesus já
realizou muita coisa, o seu ministério já estava bem avançado, basta olhar um pouco
para trás e perceber isso: três dos cinco discursos já foram proferidos (Mt
5–7; 10; 13), os discípulos já foram enviados em missão, muitas curas já foram
realizadas. Portanto, mesmo que não compreendessem totalmente e nem aceitassem
completamente o que Jesus proponha, a sua mensagem se popularizava cada vez
mais, e as multidões que o seguiam atestam isso. Logo, tornava-se cada vez mais
necessário que Jesus deixasse clara a natureza do seu messianismo, que não
correspondia aos anseios nacionalistas e triunfalistas da época. Por isso,
Jesus procurava cada vez mais evitar atitudes que pudessem insinuar
triunfalismos em seu ministério. Tudo isso aponta para o cuidado com que esse
episódio chamado de “multiplicação dos pães” deve ser interpretado.
O contexto imediato é fornecido pelo próprio
texto, na versão litúrgica, que recorda o evento anteriormente narrado, a morte
de João, o Batista, por ordem de Herodes: “Quando soube da morte de João
Batista, Jesus partiu e foi de barco para um lugar deserto e afastado” (v.
13a). Apesar das diferenças, era inegável a proximidade entre Jesus e João
Batista. Jesus nutria grande afeto por ele, mesmo não correspondendo ao ideal
de messias violento e justiceiro que João tinha anunciado (Mt 3,1-12). Inclusive,
o reconheceu como o maior entre os nascidos de mulher e como profeta (Mt 11,7-14).
Jesus reconhecia a continuidade entre a sua missão e a de João, o seu mentor,
não obstante as divergências. Por isso, inevitavelmente, a morte de João mexeu
com Jesus, ainda mais pela forma cruel como aconteceu. Daí, a necessidade de
retirar-se, não por medo, mas por comoção. Seu estado interior pedia um momento
de recolhimento.
O lugar deserto e afastado seria ideal para esse
recolhimento que, certamente, seria marcado pela oração profunda, pela reflexão
e, talvez, até pelo choro. Porém, não conseguiu ficar sozinho com seus
discípulos porque “quando as multidões souberam disso, saíram das cidades e
o seguiram a pé” (v. 13b). O movimento das multidões em busca de Jesus
demonstra o quanto ele já estava conhecido e o bem que ele fazia. As multidões
o seguem porque ele tinha respostas para as suas necessidades. Abandonadas e
exploradas pelas lideranças religiosas e políticas, as multidões recebiam
atenção e cuidado de Jesus (Mt 9,36–10). O seu olhar era diferente, marcado
pela compaixão: “Ao sair do barco, Jesus viu uma grande multidão. Encheu-se
de compaixão por eles e curou os que estavam doentes” (v. 14). As multidões
até se anteciparam, chegando primeiro ao lugar deserto. Ao vê-las, Jesus não
foge e nem as expulsa, mas se enche de compaixão. Numa ocasião anterior, o
evangelista disse que ele sentiu compaixão, aos ver as multidões; agora, ele
diz que Jesus encheu-se de compaixão. Quer dizer que a compaixão ocupa todo o
ser de Jesus, faz parte da sua essência.
Compaixão significa um amor visceral; é um comover-se
no mais profundo do ser – as vísceras ou entranhas – que resulta em ação concreta
de libertação. Não se trata de um mero sentimento, mas de ação libertadora; é
nisso que consiste a misericórdia de Deus, cuja expressão mais concreta é a
própria pessoa de Jesus. Por isso, ele “curou os que estavam doentes”.
Por doentes, o evangelista emprega um termo (em grego: arostos – άρρωστος) que
compreende todas as pessoas frágeis, e não apenas os doentes fisicamente. São
todas as pessoas destinatárias privilegiadas da misericórdia de Deus: doentes,
aflitas, pobres, abandonadas, exploradas. Como o Evangelho de Jesus é um
programa de vida completo, que contempla a vida em todas as suas dimensões,
todas essas classes de pessoas são as primeiras contempladas. Por isso, a
reação de Jesus ao ver essas pessoas foi encher-se de compaixão.
Diferente de Jesus foi o que os discípulos
sentiram: “Ao entardecer, os discípulos aproximaram-se de Jesus e disseram:
‘Este lugar é deserto e a hora já está adiantada. Despede as multidões, para
que possam ir aos povoados comprar comida!” (v. 15). Pela referência ao
entardecer, supõe-se muita coisa já realizada. Certamente, muito contato físico
de Jesus com o povo, muito toque, muita escuta e muitas palavras proferidas;
tudo ao contrário de quem estava procurando ficar sozinho. A reação dos
discípulos parece ser de preocupação e cuidado com Jesus, mas na verdade é de
indiferença e pouco compromisso com as multidões. A tendência deles é lavar as
mãos diante das necessidades dos outros. Aconselham Jesus a mandar as multidões
embora e que cada um “se virasse” para conseguir o alimento necessário.
Apesar do tempo de convivência e aprendizado, os
discípulos ainda não tinham absorvido a mentalidade de Jesus; ainda não tinham
assimilado a lógica da partilha e da solidariedade. Diante disso, a resposta de
Jesus é praticamente uma repreensão: “Jesus, porém, lhes disse: ‘Eles não
precisam ir embora. Dai-lhes vós mesmos de comer” (v. 16). Como se vê,
Jesus compromete os discípulos. Ao invés de lavar as mãos diante das
necessidades dos outros, os seus discípulos devem sentir-se responsáveis. A
comunidade cristã não pode assistir indiferente ou passivamente à fome no
mundo. Biblicamente, a fome é também uma doença que deve ser curada, conforme
ensinou Jesus, ao ordenar aos discípulos que dessem de comer às multidões. A
mensagem de Jesus é um programa de vida que contempla também a dimensão
material, inegavelmente. Portanto, saúde e pão devem ser prioridades na
comunidade cristã.
Talvez indignados ou envergonhados com a
advertência de Jesus, “Os discípulos responderam: ‘Só temos aqui cinco pães
e dois peixes” (v. 17). Certamente, foram realistas. Tinham pouca coisa, provavelmente
o suficiente para eles, mas quase nada para as multidões. A quantidade era
pequena, mas total, era tudo o que tinham. O número sete, como resultado de
cinco mais dois (5+2=7), significa totalidade. Logo, não se trata de números
reais, mas de simbologia. Independentemente da quantidade, é como se os
discípulos dissessem a Jesus que tudo o que tinham era insuficiente para o
grande número de pessoas que estavam ali. Porém, Jesus não se importa com a
quantidade; pede que os discípulos lhe levem tudo o que tem: “Jesus disse:
‘Trazei-os aqui” (v. 18). O problema começa a ser solucionado aqui, quando
Jesus pede que os discípulos coloquem a disposição tudo o que têm, apesar de
pouco. É isso o que Jesus espera das comunidades de todos os tempos. O pouco que
cada um possui deve ser colocado a serviço de todos e, assim, o que é pouco se
torna muito. Quando cada um apresenta o seu pouco, é premissa de fartura.
É interessante perceber que os discípulos recebem
a responsabilidade de curar a fome, o que se faz pela partilha, mas tudo deve
passar por Jesus. Primeiro, devem a apresentar a ele o que têm; nesse gesto
está o reconhecimento de que tudo é dom de Deus e, por isso, deve ser destinado
à partilha. Na continuação, diz o evangelista que “Jesus mandou que as
multidões se sentassem na grama. Então pegou os cinco pães e os dois peixes,
ergueu os olhos para o céu e pronunciou a bênção. Em seguida, partiu os pães e
os deu aos discípulos. Os discípulos os distribuíram às multidões” (v. 19).
Como se vê, Jesus toma a iniciativa, e age como verdadeiro pastor, ao contrário
dos líderes religiosos e políticos que tinham explorado e abandonado as
multidões (Mt 9,36). Inclusive, todo este relato tem como pano de fundo o Sl
22(23), no qual o salmista reconhece Deus como o pastor que alimenta o povo e o
faz descansar num prado verdejante (grama), como aqui. Os gestos de Jesus com
os pães e os peixes antecipam a eucaristia, mas vão muito além de um rito:
olhar para o céu – abençoar – (re)partir – dar/distribuir. São os passos que a
comunidade cristã não pode parar de dar, não apenas como rito semanal, mas como
vivência cotidiana, sobretudo onde e quando há multidões famintas de pão.
Como
resultado da partilha, aliás, de todo um processo, o resultado foi este: “Todos
comeram e ficaram satisfeitos e, dos pedaços que sobraram, recolheram ainda
doze cestos cheios” (v. 20). Recordemos que houve todo um processo, o que
não seria necessário caso se tratasse de um puro gesto sobrenatural de Jesus.
De seu olhar compassivo, Jesus conferiu responsabilidade aos discípulos,
provocou neles a disposição de colocar em comum tudo o que tinham, um gesto que
inevitavelmente motivaria também outras pessoas, fazendo de tudo uma ação de
graças a Deus, até a partilha que deixou todos satisfeitos. A solução veio de dentro da comunidade. A
abundância é gerada quando ninguém considera somente seu o que possui, mas
oferece, como dom, às necessidades do próximo. E a primeira necessidade do ser
humano é o alimento, o pão de cada dia. No final, ainda sobrou, o que foi tudo
recolhido. O alimento é sempre um dom de Deus, e o que é dom de Deus não pode
ser desperdiçado. O número doze simboliza a totalidade do povo, a nação inteira
de Israel, reconfigurada na comunidade cristã pelos doze apóstolos. A quantidade
recolhida, doze cestos, significa, portanto, que quando a partilha é praticada,
tem alimento para todos e todas. Essa não deve ser um ato isolado, mas uma
prática constante na comunidade.
No final, a referência ao número dos que se
alimentaram, o que também é um número simbólica que significa uma grande
quantidade: “E os que haviam comido eram mais ou menos cinco mil homens, sem
contar mulheres e crianças” (v. 21). Entre o número inicial de dons
disponíveis para a partilha e a multidão alimentada há uma enorme diferença.
Com isso, o evangelista quer ensinar que os resultados são sempre
surpreendentes quando se põe em prática o que Jesus ensinou, e reforça o
convite para a comunidade não ter medo de partilhar o que tem. O último dado
considerado é a menção do evangelista às mulheres e crianças, o que reforça
ainda mais a importância da partilha, pois significa que havia uma multidão
incontável, e que a partilha gera sempre abundância. Somente Mateus faz essa
observação. Apesar de sutil, é um aceno à inclusão. Mulheres e crianças eram
consideradas categorias insignificantes, na época. O evangelista acena, com
isso, que a comunidade cristã é aberta a todos e todas.
O Evangelho de hoje mostra que a comunidade deve ter prioridades
irrenunciáveis, como encontrar solução para o problema da fome, por exemplo. A
comunidade não pode esperar ter condições necessárias para viver o programa do
Reino, mas é ela mesma que tem que criar tais condições, encontrando dentro de
si mesma a solução para os seus problemas, vencendo o egoísmo, a inveja, o
orgulho e o desejo de poder. É claro que o Evangelho não tem respostas apenas
para as necessidades materiais das pessoas, mas, no texto específico de hoje, a
ênfase do evangelista é a necessidade de superar a fome de pão das pessoas
necessitadas, ou seja, das almas de carne e osso!
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de
Mossoró-RN
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