Com a liturgia de hoje, concluímos a leitura do discurso em parábolas, iniciada há dois domingos. Esse é o terceiro dos cinco grandes discursos de Jesus no Evangelho segundo Mateus, sendo de composto de sete parábolas que descrevem, simbolicamente, o Reino dos Céus. O texto específico que a liturgia oferece para este domingo é Mt 13,44-52, o qual contém as últimas três das sete parábolas, uma vez que as quatro primeiras já foram lidas nos dois últimos domingos. De acordo com o contexto narrativo do Evangelho de Mateus, os destinatários primeiros do discurso foram os discípulos e as multidões que se reuniram à beira-mar para ouvir Jesus (Mt 13,1-2). Porém, mais do que reconstituir e descrever fielmente um acontecimento concreto da vida de Jesus, o evangelista organizou o discurso para responder às necessidades da sua comunidade que vivia um momento de crise, como já contextualizamos nos domingos anteriores.
Considerando
o contexto já apresentado nos dois últimos domingos, podemos dispensar hoje uma
contextualização mais ampla, embora seja necessário recordar alguns elementos. Tendo
já apresentado as diversas características do Reino dos céus por meio das parábolas
anteriores, nas de hoje o objetivo parece ser motivar a comunidade a fazer
opção pelo Reino, preferindo-o a qualquer outra realidade ou bem. Por isso, as
parábolas de hoje são mais motivadoras do que descritivas. Isso se evidencia,
sobretudo, nas duas primeiras, principalmente, a do tesouro e a do comprador de
pérolas (vv. 44-46), respectivamente. Elas são, acima de tudo, motivações para
a acolhida do Reino do que uma mera descrição comparada desse. O encontro com o
Reino e seus valores exige uma decisão e tomada de posição radicais e
inadiáveis. A terceira parábola do texto de hoje e última do discurso retoma a
descrição, evidenciando as contradições e a diversidade que compõem o Reino dos
Céus, prevenindo a comunidade cristã de qualquer puritanismo e segregação.
Eis
a primeira parábola: “O Reino dos céus é como um tesouro escondido no
campo. Um homem o encontra e o mantém escondido. Cheio de alegria, ele vai,
vende todos os seus bens e compra aquele campo” (v. 44). Um
tesouro no contexto da época, era um vaso de argila cheio de moedas valiosas e
joias que os proprietários enterravam em suas propriedades quando percebiam
perigo de guerras, invasões ou saques. Quando um proprietário de terras tinha
que fugir às pressas por causa de uma invasão, enterrava seu tesouro,
imaginando um dia voltar. Dificilmente retomava a posse da terra; essa passava
para outros proprietários que não sabiam do tesouro escondido. Geralmente,
esses tesouros eram encontrados muito tempo depois de enterrados, por pessoas
que não sabiam da sua existência; daí a ideia de surpresa subentendida no
texto, seguida da mencionada alegria. Por sinal, uma palavra chave no Evangelho
de hoje é exatamente alegria, como uma característica essencial de quem
encontrou o Reino e a ele aderiu plenamente.
A
respeito do homem que encontra o tesouro, o texto não diz muita coisa. Não
sabemos o que fazia antes, se estava no campo por acaso ou trabalhando. O que
sabemos é que ele encontrou um motivo para mudar a sua vida. Encontrou algo
pelo qual valia a pena renunciar a tudo o que possuía para ficar somente com o
bem precioso que tinha acabado de encontrar. A chamada de atenção de Jesus para
os discípulos e a multidão, e de Mateus para a sua comunidade, visa deixar
ainda mais claro que o Reino deve ser a primeira opção de quem o encontra.
O Reino desestabiliza a normalidade das coisas, é reviravolta, subversão,
é o revés da ordem estabelecida, tanto a política quanto a religiosa.
O
homem encontrou o tesouro por acaso, ou seja, sem fazer esforço algum. Essa é
uma das possibilidades de encontro com o Reino, pois como já tinha dito o
próprio Jesus, “o Reino dos céus está próximo” (Mt
10,17), ou seja, é ele quem vem ao encontro das pessoas, embora sejam feitas
exigências para experimentá-lo: “convertei-vos” (Mt
10,17). A decisão do homem da parábola foi o retorno às
bem-aventuranças: “Bem-aventurados os que são pobres em espírito,
porque deles é o Reino dos céus” (Mt 5,3). Não basta contemplar nem
saber que o Reino dos céus chegou, é necessário fazer esforço para nele entrar;
esse esforço consiste em deixar de lado tudo o que não é compatível com ele,
como fez o homem da parábola.
A
segunda parábola tem muita semelhança com a primeira. Também nela se evidencia
a necessidade de uma tomada de decisão radical, sendo bem evidentes também as
diferenças. Ora, na segunda o Reino é comparado à pessoa que procura e
encontra, e não ao objeto encontrado: “O Reino dos céus é como um comprador
de pérolas preciosas. Quando encontra uma pérola de grande valor, ele vai,
vende todos os seus bens e compra aquela pérola” (vv. 45-46).
Também nessa, as informações sobre o homem envolvido são poucas. Tudo indica
que se trata de um homem experiente e inquieto, capaz de distinguir o valioso
do vulgar. Assim como o da parábola anterior, também esse homem encontra algo
que lhe faz tomar uma decisão radical. Porém, ao contrário do homem que
encontrou o tesouro por acaso, na primeira parábola, nessa segunda se trata de
um homem que buscava. Lidas juntas, as duas parábolas mostram que não há
contradição entre dom e esforço. A conquista do Reino exige esses dois
elementos.
Na
primeira, o tesouro foi encontrado como puro dom, sem nenhuma busca: o homem
simplesmente encontrou; na segunda, o personagem é alguém que procura,
seleciona criteriosamente o que tem grande valor e o que não tem. O importante em
ambas a situações é a decisão tomada ao encontrar algo que pode mudar o sentido
da vida. O importante não é a forma como foi encontrado, mas a decisão tomada
para inserir-se nele ou possui-lo, conforme a linguagem das parábolas. O que
conta é viver uma vida pautada pelos valores do Reino: justiça, amor,
solidariedade, acolhimento, sinceridade, alegria e coragem para lutar contra
tudo o que impede o seu crescimento.
A
terceira e última parábola é aquela da rede jogada ao mar: “O Reino dos
céus é ainda como uma rede lançada ao mar e que apanha peixes de todo tipo.
Quando está cheia, os pescadores puxam a rede para a praia, sentam-se e
recolhem os peixes bons em cestos e jogam os que não prestam” (vv.
47-48). Muitos estudiosos insistem em relacioná-la com aquela do joio e do
trigo, refletida no domingo passado (Mt 13,24-30). É certo que existem
semelhanças entre as duas, mas as diferenças são bem maiores. Naquela do joio e
do trigo, quem semeou a semente nociva foi um inimigo, enquanto o dono do campo
e da semente boa dormia. Nessa da rede, os peixes bons e ruins têm uma mesma
origem, não são frutos da ação de dois personagens diferentes. Essa diferença é
muito importante, como veremos a seguir.
Desde
a comunidade apostólica, havia na Igreja a tendência equivocada de querer ser
uma comunidade de santos, justos ou eleitos, ou seja, uma comunidade separada e
isolada. Essa tendência era e é um entrave para a concretização do Reino. Com
essa parábola da rede, bem mais que com a do joio e o trigo, Jesus apresenta o
universalismo do Reino, marcado pela diversidade e inclusão, e sua exposição
aos perigos. Como as parábolas respondem a uma situação de crise da comunidade,
é interessante retornar às origens, ao primeiro chamado: “Vinde,
segui-me, e eu farei de vós pescadores de homens” (v. 4,19).
Essa parábola é, portanto, um convite para os discípulos retornarem às origens
do chamado. Ora, Jesus não os chamou para irem à procura de pessoas boas e
santas, mas simplesmente para “pescar seres humanos”, ou seja, ir ao encontra
da humanidade inteira, sem distinção nem classificação.
Com
a parábola do joio e o trigo Jesus pedia tolerância e paciência. Com essa da
rede, Ele vai além: pede inclusão, aceitação e abertura constante, pois a rede
envolve, junta, mistura tudo. A semente era jogada em um terreno conhecido,
previamente preparado. O mar onde é lançada a rede, ao contrário, é sempre
imprevisível, ninguém pode prepará-lo antes. Isso é um desafio para a
comunidade e uma advertência a qualquer tendência separatista e segregadora. Na
comunidade cristã não pode ter juízes, mas apenas irmãos e irmãs. Por isso, a
explicação alegórica da parábola projeta, em linguagem apocalíptica, a
separação definitiva para o final dos tempos, e diz que essa será feita por
anjos, seres de outra esfera: “Assim acontecerá no fim dos
tempos: os anjos virão para separar os homens maus dos que são justos. E
lançarão os maus na fornalha de fogo. E aí haverá choro e ranger de dentes” (v. 50).
As explicações das parábolas são sempre acréscimos do evangelista ou dos
continuadores de suas tradições. Aqui, faz-se uma advertência aos membros da
comunidade, provavelmente às lideranças, para
evitar julgamentos, preconceitos e condenações. É uma forma de dizer que ninguém pode julgar o outro na comunidade. No final do Evangelho, quando retomar o tema do juízo, Jesus dirá que o critério no julgamento será a opção pelos pequenos, pobres e marginalizados.
No
final, Jesus faz uma pergunta simples, mas profunda, aos discípulos: “Compreendestes
tudo isso?” (v. 51). Ora, Jesus apresentou o Reino dos céus em
sete parábolas; como o número sete evoca perfeição e totalidade, é como se
Jesus dissesse que tinha dito tudo sobre o Reino, e que é necessário
compreendê-lo em sua totalidade. A compreensão aqui significa a aceitação da
sua mensagem com as consequências que essa implica; não se trata da abstração
teórica de um conteúdo, mas de assimilar um jeito novo de viver. Embora a resposta
dos discípulos tenha sido positiva, a história e o própria continuação do Evangelho
de Mateus mostram que na verdade ainda não tinham compreendido tudo. O
importante, no entanto, é a disposição para compreender e, para isso, é
necessário fazer da vida uma busca constante pelo maravilhoso tesouro que é “o
Reino de Deus e a sua justiça” (Mt 6,33).
A
conclusão do discurso é um convite reforçado ao discernimento: “Então
Jesus acrescentou: ‘Assim, pois, todo o mestre da Lei, que se torna discípulo
do Reino dos Céus, é como um pai de família que tira do seu tesouro coisas
novas e velhas” (v. 52). Para muitos estudiosos, esse versículo é
também um traço autobiográfico do próprio autor Mateus: ele é um exemplo de
escriba (mestre da Lei) que se tornou discípulo, conservou e soube tirar coisas
novas e velhas do grande tesouro que são as tradições de Israel. Inclusive, é o
evangelista que mais teve cuidado de buscar elementos da Escritura (Antigo
Testamento) para justificar e fundamentar a mensagem de Jesus. Nessa
perspectiva, as coisas velhas são a Lei e os profetas, enquanto as coisas novas
são os ensinamentos de Jesus, que ele mesmo considerou como o pleno cumprimento
da Lei e dos profetas (Mt 5,17).
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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