Com o evangelho deste vigésimo quarto domingo do tempo comum – Mt 18,21-35
– continuamos a leitura do “discurso comunitário”, o quarto dos cinco discursos
de Jesus no Evangelho segundo Mateus. Esse discurso recebe esse nome porque
trata de questões relativas à vida interna da comunidade cristã, especialmente
das relações entre os seus membros. No domingo passado, foi evidenciado o tema
da correção fraterna. No texto lido hoje, predomina o tema do perdão, com
ênfase na certeza do perdão de Deus a todos os seus filhos e filhas, e a
responsabilidade dos membros da comunidade praticarem o perdão entre si de modo
ilimitado. Como no domingo passado (vigésimo terceiro domingo), cujo texto
evangélico proposto pela liturgia foi Mt 18,15-20, já fizemos a
contextualização de todo o capítulo dezoito, hoje podemos nos isentar dessa tarefa.
Como esse discurso foi dirigido exclusivamente aos discípulos, é deles
que vem as reações. Por isso, diz o texto que “Pedro aproximou-se de Jesus e
perguntou: ‘Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim?
Até sete vezes?” (v. 21). Como vemos, é Pedro o primeiro a se manifestar,
não por exercer uma atividade de proeminência sobre os demais, mas por refletir
a voz de todo o grupo e ser ele o que melhor sintetiza as características do
grupo, incluindo as contradições e incoerências. Para os evangelistas, e
principalmente para Mateus, Pedro é a cara dos doze: professa solenemente a fé
em Jesus como o Cristo e Filho de Deus (Mt 16,16), mas também o nega no momento
mais difícil (Mt 26,69-75), ora fala conforme a vontade do Pai, ora conforme
satanás (Mt 16,17.23). Portanto, a figura de Pedro funciona como uma síntese do
grupo dos doze, sobretudo, em Mateus.
Jesus tinha apresentado a necessidade da reconciliação como uma busca
irrenunciável para a comunidade (18,15-20). Como não há reconciliação sem
perdão, ele vai apresentar a necessidade do perdão permanente e contínuo na
vida da comunidade. Aqui, Pedro encontra a oportunidade de interagir, através
de uma pergunta. Nessa pergunta de Pedro há, mais do que uma dúvida, uma
convicção: se deve perdoar, mas com prudência e limite. Esse limite seria sete
vezes, afinal, o número sete evoca perfeição e completude. O perdão sempre fez parte
das tradições de Israel, porém, com certas restrições. Na época de Jesus, por
exemplo, predominava um costume de aconselhar o perdão até três vezes para uma
mesma pessoa. A pergunta propositiva de Pedro, com a possibilidade de conceder
o perdão até sete vezes à mesma pessoa compreendia mais do que o dobro do que
os costumes da época. Sem dúvidas, percebe-se um significativo avanço na
mentalidade de Pedro e dos discípulos que ele representa. Aos poucos, a lógica calculista da antiga religião estava sendo superada entre os discípulos. O que continuava
negativo na mentalidade deles era a insistência em querer medir
quantitativamente aquilo que deve ser ilimitado.
Certamente, Pedro imaginava receber um elogio de Jesus, pois tinha
demonstrado uma “justiça superior à dos escribas e fariseus” (Mt 5,20),
como Jesus tinha exigido ainda no seu primeiro discurso, aquele chamado de
“discurso da montanha” (Mt 5– 7). No entanto, Jesus vai muito além, com a sua
resposta: “Não te digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete”
(v. 22). Sem dúvidas, Pedro e os demais ficaram desconcertados com essa
resposta. A pergunta de Pedro já refletia uma abertura na comunidade para ir
além dos costumes da época, mas com certos limites. A resposta de Jesus ensina
a romper com todos os limites. Não se trata de um convite ou ordem para os
discípulos fazerem uma multiplicação e chegarem a uma cifra elevada, porém,
contável (70 x 7 =490), mas simplesmente um sinal de que não há espaço para
números no que diz respeito às relações com o próximo na comunidade cristã, até
porque as relações com o próximo e com Deus são inseparáveis. Essa expressão
numérica não indica uma quantidade, mas a qualidade: o perdão é ilimitado e
incontável; deve ser concedido conforme a necessidade, e não conforme cálculos.
Para deixar ainda mais clara a necessidade do perdão entre os irmãos,
Jesus apresenta uma parábola, que funciona como explicação do seu ensinamento.
Nesse mesmo discurso Ele já tinha contado uma primeira parábola, aquela da
ovelha perdida (18,10-14), ao enfatizar que as relações na comunidade devem
refletir o amor e a misericórdia do Pai. Agora, com essa segunda parábola, ele
reforça esse ensinamento: “O Reinos dos Céus é como um rei que resolveu
acertar as contas com seus empregados” (v. 23). Antes de tudo, convém
recordar que uma parábola é apenas uma comparação, e não uma descrição. É
importante fazer esse esclarecimento para não distorcermos a imagem do Pai
misericordioso, convertendo-o em um soberano vingativo. Por isso, o primeiro
objetivo dessa parábola é mostrar a abundância do perdão ilimitado de Deus e
alertar para a dificuldade que a comunidade tem de praticar o perdão. O segundo
objetivo é levar a comunidade a superar essa dificuldade, denunciando a frequente
incoerência em invocar o perdão do Pai quando não há disposição de perdoar ao
próximo também de modo ilimitado.
De modo simplificado, podemos compreender a parábola da seguinte
maneira: tudo o que se recebe de Deus é dom, e tudo o que é dom deve ser partilhado.
O primeiro empregado ou servo devia uma quantidade incalculável (v. 24), ou
seja, possuía uma dívida milionária, a ponto de ser impossível quitá-la. O rei,
o patrão, manda vendê-lo como escravo, juntamente com toda a família (v. 25).
Certamente, esse não era apenas um empregado, mas alguém que participava
diretamente da administração, o qual deve ter desviado ilicitamente muito
dinheiro para ficar tão endividado para com o rei, após ser descoberto. Sabendo
da impossibilidade de pagar, não lhe resta outra coisa senão suplicar o perdão
da dívida, como o fez, pedindo um prazo como pretexto (v. 26). O patrão teve
compaixão e perdoou a dívida (v. 27), representando o agir de Deus diante da
incapacidade humana de corresponder aos seus propósitos.
O servo, perdoado de maneira absoluta e ilimitada, se mostra incapaz de
partilhar o perdão recebido (vv. 28-32); e isso é intolerável para aquele que
lhe havia perdoado (v. 33-34). O centro da parábola está exatamente aqui:
advertir e prevenir a comunidade, principalmente as lideranças, da hipocrisia,
covardia e mesquinhez de não partilhar o perdão, de não ser instrumento e sinal
de reconciliação. O servo foi condenado porque reteve o perdão somente para si,
não partilhou o perdão recebido. Jesus quer evitar esse perigo na(s) sua(s)
comunidade(s). Assim, a comunidade contradiz o projeto de Jesus e do Pai quando
classifica o pecado, determinando se é “perdoável” ou não, e quando impõe
limites ao aplicar o perdão.
Longe de descrever Deus como um soberano vingativo, o que Jesus quer com
essa parábola é reforçar um ensinamento necessário e urgente para o bem da
comunidade, que insistia em negligenciar. Enfim, Jesus apenas reforça o que já
tinha sido dito no seu primeiro discurso, o da montanha: “Pois, se
perdoardes aos homens os seus delitos, também o vosso Pai celeste vos perdoará;
mas se não perdoardes aos homens, o vosso Pai também não perdoará os vossos
delitos” (cf. Mt 6,14-15). Quando um evangelista mostra Jesus insistindo
com um mesmo ensinamento, tornando-se até repetitivo, significa a importância
de tal ensinamento e a dificuldade de assimilação entre os seus discípulos. Por
isso, ele insiste com o perdão: por mais difícil que seja praticá-lo de modo
ilimitado, ele é indispensável. Sem o perdão ilimitado e generoso não há
seguimento de Jesus, não há comunidade cristã e tampouco há relação autêntica
com Deus.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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