Neste vigésimo terceiro domingo do tempo comum, o evangelho oferecido pela liturgia é Mt 18,15-20. Todo o capítulo dezoito do Evangelho segundo Mateus é ocupado pelo quarto dos cinco grandes discursos de Jesus apresentados nesse evangelho. Esse discurso é dirigido especialmente aos discípulos, e trata das relações entre os membros da comunidade, por isso é comumente chamado de “discurso comunitário” ou “discurso eclesial”. O ensinamento de Jesus nesse discurso tem como primeiro objetivo apresentar a comunidade cristã como uma comunidade de iguais, marcada pelo amor, humildade e perdão recíprocos.
Como o texto que a liturgia oferece não compreende o início do discurso,
convém retornarmos ao início para contextualizá-lo e, assim, compreendermos
melhor o evangelho de hoje e o discurso inteiro. Ora, o discurso é a resposta
de Jesus a uma pergunta absurda dos discípulos, conforme o primeiro versículo
do capítulo: “Os discípulos aproximaram-se de Jesus e perguntaram-lhe: ‘Quem
é o maior no Reino dos céus?” (18,1). A pergunta é absurda para Jesus
porque ela revela que os discípulos ainda não haviam compreendido quase nada do
Reino dos céus. Desde o início da sua pregação, Jesus tinha apresentado o Reino
dos céus como uma sociedade alternativa ao sistema vigente, sem relações de
poder, nem hierarquia entre os seus membros. Se os discípulos ainda perguntavam
quem era o maior, é porque ainda não haviam compreendido nem aceitado essa
proposta.
Além da introdução ao discurso, é importante recordar também que, pouco
antes, Jesus havia feito o segundo anúncio da paixão (Mt 17,22-23). Por
incrível que pareça, quanto mais Jesus falava em cruz, perseguição e
sofrimento, mais os discípulos alimentavam seus sonhos de grandeza e poder (Mt
20,20-28), demonstrando que não estavam ainda vivendo segundo as
bem-aventuranças (Mt 5,1-12). Sem dúvidas, essa era também a crise da
comunidade de Mateus, cerca de quatro décadas após a morte de Jesus. A
tendência hierarquizante era cada vez mais forte, por isso o evangelista faz
questão de recordar as palavras de Jesus contrárias a essa tendência.
Voltando para o discurso em si, convém ainda recordar que o trecho
proposto pela liturgia é precedido pela parábola da ovelha perdida (Mt
18,10-14). Assim, podemos dizer que o nosso texto é uma espécie de explicação
da parábola, uma vez que, ao tratar da correção fraterna, o texto evidencia o
esforço da comunidade para que o perdão e a reconciliação aconteçam. Os membros
da comunidade devem esforçar-se ao máximo para refletirem em suas vidas o
esforço do Pai: “Vosso Pai, que está nos céus, não quer que se perca nenhum
destes pequeninos” (18,14). Ora, para que nenhum dos pequeninos se perca, a
comunidade não pode medir esforços; deve empenhar-se com todos os meios
disponíveis para que prevaleça o amor, o perdão e haja a reconciliação.
Feita a devida contextualização, voltamos a nossa atenção para o nosso
texto específico (18,15-20), o qual funciona como uma espécie de explicação da
parábola que o precede, como afirmamos antes. Eis o primeiro versículo: “Se
o teu irmão pecar contra ti, vai corrigi-lo, mas em particular, a sós contigo!
Se ele te ouvir, tu ganhaste o teu irmão” (v. 15). A possibilidade do
pecado e da ofensa já deixa muito claro que a comunidade não é perfeita, pois
seus membros também não são perfeitos. Não obstante as imperfeições, a
comunidade é, antes de tudo, um espaço fraterno, pois seus membros são todos
irmãos. De fato, uma das informações e ensinamentos mais importantes desse
versículo é o uso da palavra irmão (em grego: ἀδελφός – adelfós). Independentemente da falta cometida, a
fraternidade, como regra básica da comunidade cristã, deve ser buscada em todas
as circunstâncias. A correção em particular é o primeiro recurso: nada de
exposição e humilhação; entre irmãos, deve haver liberdade para perceber juntos
o erro e a necessidade de correção para o bem da comunidade. Não é a posição de
um superior para com um subalterno, mas de um irmão que busca outro irmão para
recompor a unidade da comunidade. Ganhar o irmão significa recuperá-lo para a
comunidade, ou seja, reatar com ele os laços de fraternidade.
Caso essa primeira tentativa não funcione, novos meios devem ser
buscados: “Se ele não te ouvir, toma contigo mais uma ou duas testemunhas
para que a questão seja decidida sob a palavra de duas ou três testemunhas”
(v. 16). O cuidado com o irmão continua muito evidente: nada de expô-lo
publicamente. Contudo, para que não se perca, é necessário continuar buscando a
sua reconciliação e seu retorno à fraternidade. Tendo falhado a primeira
tentativa, busca-se uma segunda. Nessa, recorre-se ao princípio judaico do
testemunho, ao aconselhar que se tome uma ou mais testemunhas, para que o
testemunho seja válido (Dt 19,15). Aqui, no entanto, não se trata de um recurso
jurídico, mas sim da ajuda mútua. Mais do que mostrar o erro, o esforço da
comunidade deve ser um convencimento para que o irmão não se aparte dela.
Mesmo que a segunda tentativa funcione, ainda há outros recursos e
meios, como sugere Jesus: “Se ele não vos der ouvidos, dize-o à Igreja”
(v. 17a). A terceira tentativa para que o irmão não se perca da comunhão
fraterna é levá-lo à comunidade, ou seja, à Igreja. Essa, não como instância
jurídico-institucional, mas como espaço de comunhão e fraternidade, deve ser
comunicada e ficar a par de todas as situações que envolvam seus membros. A
Igreja aqui, como já falamos, não é uma instituição jurídica ou hierárquica,
mas a comunidade reunida, a assembleia (ἐκκλησίᾳ – ekklesia). Esse conselho de Jesus é mais um sinal da sinceridade e
transparência com que os irmãos e irmãs da comunidade cristã devem viver. Como um
corpo que é a comunidade, seus membros têm direito de saber como andam as
relações entre os demais membros, afinal, o bom funcionamento do corpo depende
da saúde e do bem de todos os membros. A comunidade reunida, como espaço de
comunhão e oração, deve também fazer da celebração uma oportunidade de
crescimento com a reconciliação de seus membros.
É possível que até mesmo a comunidade reunida não seja suficiente para
convencer o irmão da necessidade da reconciliação. Assim como é espontâneo o
ingresso na comunidade, também deve ser o afastamento, o que muitas vezes
ocorre até por falta de compreensão e acolhida. Por isso, Jesus previne: pode
ser que nem mesmo o conselho da assembleia reunida seja suficiente para o
retorno do irmão: “Se nem mesmo à Igreja ele ouvir, seja tratado como se
fosse um pagão ou um pecador público” (v. 17b). Frequentemente, essa
passagem é interpretada como uma espécie de excomunhão, e até utilizada para
justificar esse procedimento. Porém, essa interpretação distorce completamente
o sentido do texto. Contradiz, inclusive, a parábola que antecede o nosso
texto, aquela da ovelha perdida. O real significado dessa expressão é: se
aquele irmão não se convenceu da necessidade de viver em paz com outro, se ele
não se deixou mais convencer pela beleza da vida fraterna e comunitária e, por
isso, depois de várias tentativas, ele precisa refazer o caminho.
Ser tratado como pagão ou publicano é ser, de novo, destinatário do
evangelho. Embora o texto litúrgico use a expressão “pecador público”, é mais
adequado usar “publicano” ou “cobrador de impostos”, pois corresponde melhor ao
termo empregado pelo autor, na língua original (em grego: τελώνης – telónes). Ora, ao longo de todo o evangelho, os
cobradores de impostos e os pagãos são destinatários do interesse de Jesus e,
portanto, do evangelho. Essas duas categorias de pessoas eram desprezíveis para
os fariseus, mas jamais para Jesus. A comunidade cristã não pode ser pautada
pelos mesmos princípios dos fariseus, e sim pelo amor de Jesus e do Pai, por
Ele revelado. Por isso, deve ter coragem de voltar atrás e recomeçar seu
caminho formativo para o discipulado, quantas vezes for necessário, indo ao
encontro daqueles e daquelas que se afastaram. Portanto, como comunidade
inclusiva, a Igreja deve buscar todos os meios para que nenhum pequenino se
perca.
O que já dissera aos discípulos no episódio de Cesaréia de Felipe, Jesus
agora reforça: “Tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o
que desligardes na terra será desligado no céu” (v. 18). É claro que não se
trata de uma delegação de poderes, mas de responsabilidade. A comunidade que
vive, de fato, as bem-aventuranças é reflexo do céu. As relações fraternas de
amor e perdão são os distintivos da comunidade cristã. Não é necessário ter
poder para que as coisas da terra sejam confirmadas pelo céu; basta coerência,
testemunho e, sobretudo, amor! Ao Pai, importa apenas amor, concórdia e fé (v.
19). São esses os requisitos para tornar válida a oração. Antes de dobrar os
joelhos e abrir os lábios para dirigir uma prece ao Pai, a comunidade deve
viver a concórdia interna, respeitando as diferenças, obviamente.
A autêntica comunidade cristã, reconciliadora e orante, é o lugar
privilegiado da presença de Jesus: “onde dois ou três estiverem reunidos em
meu nome, eu estou ali, no meio deles” (v. 20). Aqui, o evangelista retoma
um dos temas principais de todo o seu evangelho: a presença do Senhor no meio
da comunidade (Mt 1,23; 18,20; 28,20). Ou seja, do começo ao fim do seu
evangelho, Mateus apresenta Jesus como o “Deus conosco”. Aqui está também a
justificativa para que a comunidade nunca se canse de buscar o retorno daqueles
que se afastam: é a presença do irmão que gera comunhão, e essa comunhão
garante a presença de Jesus. Na época da redação do evangelho, como o templo já
havia sido destruído, os judeus afirmavam que Deus estava presente onde dois ou
mais estivessem reunidos para estudar a Lei. Com essas palavras, Jesus diz que
não é o estudo da lei que garante a presença divina, mas é o seu nome. O
evangelista entende que reunir-se no nome de Jesus não é apenas pronunciar
palavras juntos, mas viver de acordo com o seu ensinamento. Com isso, ele
combate as tendências individualistas que começavam a aparecer na sua
comunidade.
Uma comunidade só é autenticamente cristã quando é possível perceber e
sentir nela a presença de Jesus. Essa presença só se manifesta quando há amor,
perdão, reconciliação e compreensão. Havendo esses elementos, independentemente
do número de membros, mesmo que sejam só dois ou três, o Senhor estará
presente. Por isso, a comunidade deve empenhar-se ao máximo possível para
recuperar um irmão ou irmã afastado; mesmo que seja somente um, a sua ausência
pode comprometer a presença do Senhor!
Pe. Francisco Cornélio Freire Rodrigues – Diocese
de Mossoró-RN
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