sábado, maio 20, 2023

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA ASCENSÃO DO SENHOR – MATEUS 28,16-20 (ANO A)



O evangelho da solenidade da ascensão do Senhor, neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico A, é Mt 28,16-20. Esse texto corresponde aos últimos versículos do Primeiro Evangelho. Por isso, contém as últimas palavras de Jesus na respectiva obra, funcionando como uma espécie de testamento. Dos pontos de vista litúrgico e teológico, pode-se dizer que a ascensão é a consumação da ressurreição, a plenitude da Páscoa: o Ressuscitado penetra no mundo do Pai e, ao mesmo tempo, garante a sua presença perene entre os seus seguidores, confiando-lhes a missão de continuarem a sua obra. É importante destacar, logo de início, que o evangelho segundo Mateus não chega a descrever a ascensão. Aliás, essa vem descrita apenas na obra lucana (Lc 24,50-51; At 1,6-11) e no acréscimo redacional de Marcos (Mc 16,19). Em Mateus, o que é narrada é a manifestação do Ressuscitado aos discípulos na Galileia, dando-lhes as últimas recomendações e garantindo continuar com eles para sempre. E esse detalhe é muito significativo para a compreensão de todo o Evangelho de Mateus e, consequentemente, para a vida da Igreja em todos os tempos.

Podemos dizer que o texto de hoje é uma síntese conclusiva de todo o Evangelho de Mateus. À medida em que escreve suas últimas linhas, o evangelista e sua comunidade fazem questão de resumir a essência de tudo o que já tinha sido apresentado ao longo da obra, sobretudo em relação aos ensinamentos de Jesus. É isso que percebemos hoje. Portanto, para compreendê-lo bem é necessário que o leitor esteja familiarizado com o conjunto da obra. Na impossibilidade de recordar o Evangelho todo, recordamos, pelo menos, os últimos acontecimentos narrados: o relato da ressurreição com a manifestação do anjo e do próprio Ressuscitado às mulheres (Mt 28,1-10), e o suborno dos guardas pelos sacerdotes com a mentira do roubo do corpo de Jesus pelos discípulos (Mt 28,11-15). O texto de hoje sucede imediatamente a esses acontecimentos. Tanto o anjo do Senhor (28,5-7), quanto o próprio Jesus (28,10) ordenaram às mulheres que avisassem aos discípulos que retornassem à Galileia para, ali, fazerem também eles a experiência do encontro com o Ressuscitado. Por isso, além de recordar, é importante ressaltar que o encontro dos discípulos com o Ressuscitado, narrado no evangelho de hoje, é fruto também do anúncio das primeiras apóstolas da ressurreição: aquelas mulheres que, na madrugada do primeiro dia, foram visitar o sepulcro e receberam o mandato de convencer os discípulos a retornarem a Galileia para encontrarem o Ressuscitado (Mt 28,1-10).

É à luz das informações recordadas anteriormente que podemos compreender o que o evangelho de hoje diz logo em seu primeiro versículo: «Os onze discípulos foram para a Galileia, ao monte que Jesus lhes tinha indicado» (v 16). A menção aos onze recorda a perda de Judas, que já não fazia mais parte do grupo dos discípulos, mas possui também um outro significado: o número doze representava um projeto de reconstituição do antigo Israel, alimentando a ideologia nacionalista e triunfalista. Esse projeto faliu, devido à rejeição de Israel ao projeto de Jesus, cujo ápice foi à morte escandalosa na cruz. À luz da ressurreição, a comunidade mateana, fazendo uma releitura dos últimos acontecimentos, percebe que a missão universal confiada à Igreja não precisa mais ser configurada às tradições de Israel. O projeto do Reino dos Céus que Jesus anunciou ao longo do Evangelho não coincide com a restauração do reino de Israel. Por isso, o número onze não significa incompletude da comunidade, mas é sinal de uma nova perspectiva e ruptura com os antigos esquemas. Não podemos esquecer que a eleição de Matias para recompor o número doze é um elemento exclusivo da teologia de Lucas (At 1,15-26). Na perspectiva de Mateus, para a comunidade do Ressuscitado sobreviver e crescer, é necessário abandonar os esquemas tradicionais do judaísmo. A base fornecida por Israel – a Lei e os profetas – não perderam o seu valor, mas receberam o cumprimento (Mt 5,17). De Jesus em diante, o que conta é o anúncio e a construção do Reino, cujas bases são as bem-aventuranças.

Segundo a recomendação, os discípulos foram para a Galileia, ao monte indicado. Ora, em Jerusalém acontecera a grande tragédia para a comunidade dos discípulos. Além de ter sido o cenário da paixão e morte de Jesus, a capital não oferecia nenhuma perspectiva para a comunidade do Ressuscitado ali florescer. Basta recordar o conluio dos poderes religioso, militar e político para desacreditar a ressurreição, com a ideia do roubo do corpo de Jesus pelos discípulos (28,11-15). Aliás, Jerusalém foi hostil a Jesus desde o seu nascimento, com a matança dos inocentes decretada por Herodes (Mt 2,16). O retorno à Galileia, portanto, era essencial para a sobrevivência da comunidade e, ao mesmo tempo, para o reencontro dos discípulos com as motivações e bases originárias. Além das incompreensões ao longo da caminhada, marcada inclusive pela rivalidade entre os discípulos (Mt 20,20), os acontecimentos envolvendo a paixão e a morte de Jesus deixaram a comunidade profundamente abalada. Daí a necessidade de um retorno ao ideal primeiro para fazer a experiência do monte. Ora, de acordo com as tradições do Antigo Testamento, o monte é, por excelência, o lugar do encontro com Deus e com a sua palavra. 

Ao longo de todo o seu Evangelho, Mateus situou Jesus no monte em diversas ocasiões, desde às tentações (Mt 4,8-10) até a paixão (Mt 26,30). Inclusive, foi no monte que Jesus proferiu o mais importante dos seus cinco discursos: o discurso da montanha (Mt 5–7), que se constitui como o seu programa de vida, cujo centro é as bem-aventuranças (Mt 5,1-12). De fato, nas bem-aventuranças está o centro da mensagem de Jesus, ou seja, a essência de tudo o que ele ensinou aos seus discípulos. Foi também no monte que Jesus se transfigurou diante de alguns discípulos, revelando antecipadamente sua identidade crucificado-ressuscitado. Logo, o convite para os discípulos retornarem à Galileia para o monte é exatamente para voltarem à essência do projeto de vida proposto por Jesus, percorrendo o seu mesmo caminho e fazendo as mesmas opções dele. É também um modo de indicar a continuidade entre a mensagem de Jesus de Nazaré, o galileu, e o Ressuscitado. E a Galileia como região desprezada entre os judeus é também uma advertência aos discípulos quanto aos destinatários primeiros da missão: os pobres e marginalizados.

Na sequência, o texto descreve a reação dos discípulos: «Quando viram Jesus, prostraram-se diante dele. Ainda assim alguns duvidaram» (v. 17). A princípio, parecem duas posturas opostas diante da ressurreição, mas o evangelista as vê como complementares. Prostrar-se é sinal de adoração e de convicção na ressurreição e na divindade de Jesus. Aqui, o evangelista emprega o mesmo verbo já empregado para indicar a atitude dos magos quando visitaram Jesus recém-nascido em Belém (Mt 2,2.11) e para descrever o gesto das mulheres quando viram o Ressuscitado pela primeira vez (Mt 289); Esse verbo (em grego: προσκυνέω – proskinêo) tanto indica adoração quanto sujeição a alguém, como deve ser a postura da comunidade: adorar e sujeitar-se somente a Jesus e ao que ele deixou como ensinamento, assumindo completa autonomia e emancipação em relação aos preceitos da Lei e às imposições do imperador romano. Assim como os magos e as discípulas mulheres, também os onze discípulos aceitam os valores do Reino como universais e, por isso, lutarão para que cheguem a todos lugares da terra, indistintamente. Ao contrário do que parece, a dúvida não faz mal à comunidade. Tanto é que Jesus não repreende os discípulos por isso. A dúvida é sinal de busca, e não de rejeição. Ao longo da missão universal da Igreja, muitas dúvidas surgirão, tanto em quem anuncia quanto nos destinatários do anúncio. As dúvidas abrem espaço para o Espírito Santo iluminar a comunidade e conduzi-la à verdade. Enquanto as certezas geram autoritarismos e imposições, as dúvidas dão margem ao diálogo, à abertura ao diferente. O antídoto à dúvida não é a certeza, mas a fé e o amor. Quanto maiores forem as dúvidas, maior será a necessidade da fé e do amor na comunidade.

Diante da reação dos discípulos, Jesus toma a palavra e profere seu breve discurso que, de certo modo, sintetiza todo o Evangelho de Mateus (vv. 18-20). É importante perceber que não são palavras de despedida, mas de envio e comissionamento. Para Mateus, Jesus nunca se despediu da comunidade, pois na sua essência está sua presença, o “estar com”. Ao dizer «Toda autoridade me foi dada no céu e sobre a terra» (v. 18), Jesus está decretando a falência dos poderes sediados em Jerusalém (religioso, militar e político), e estabelecendo uma nova ordem. Está também reivindicando para si a identificação com a figura do “Filho do Homem” (Dn 7,13-14) e, ao mesmo, tempo corrigindo-a: ao Filho do Homem do livro de Daniel, foram dados poder e domínio. Jesus trocou o domínio pelo serviço (Mt 20,28), preferindo exercer sua autoridade no amor. A verdadeira autoridade, motivada pelo amor, parte da periferia – a Galileia –, enquanto em Jerusalém tem apenas força de morte, uma vez que lá o poder é exercido com base na mentira, no medo, no suborno e na violência, conforme o relato da paixão mostrou claramente. “Céu e terra”, aqui, significam a totalidade da criação submetida a Jesus Ressuscitado; quer dizer que o Pai lhe entregou tudo. Significa que tudo o que é de Deus passa por Jesus e está com ele, porque foi entregue em suas mãos.

O discurso prossegue com o envio universalista e inclusivo: «Portanto, ide e fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo» (v. 19). Aqui, Ele está, de fato, fazendo uso da sua autoridade e, mais uma vez, mostrando a diferença da sua para outras formas de exercício de poder. Ele não envia seus discípulos para impor e nem dominar, mas para fazer novos discípulos, uma vez que no seu Reino não há súditos, mas irmãos. Essa é, sem dúvidas, uma das maiores novidades de seu projeto de vida e de mundo. Não envia os discípulos para doutrinar ninguém, mas para apresentar um programa de vida, delineado ainda no início do Evangelho, com a proclamação das bem-aventuranças (Mt 5,1-12). Destacamos aqui a força do verbo empregado pelo evangelista para a expressão “fazer discípulos”: no grego, idioma original do evangelho, há o verbo “discipular” (μαθητεύω – matheteuô); com ele, o evangelista consegue distinguir o discipulado de uma simples tarefa, o que não distinguimos com facilidade em nossa língua, com as traduções que temos. Gerar discípulos ou discipular é, antes de tudo, viver o discipulado plenamente para torná-lo fecundo e, consequentemente, gerar mais discípulos. Também é importante recordar que os discípulos enviados para formar mais discípulos não deixam de ser discípulos; não recebem títulos que os distingue dos demais, novos e futuros discípulos. Sejam de os de primeira hora, sejam os que vierem depois, os seguidores de Jesus não mais do que discípulos, tendo em vista que Ele é o único mestre e Senhor.

O novo e universal discipulado deve nascer do testemunho, ou seja, da maneira de viver dos discípulos de primeira hora, os quais não são cumpridores de tarefas, mas seguidores de Jesus de Nazaré, o Ressuscitado. O conjunto do ensinamento de Jesus é sua forma de viver. Logo, é vivendo à sua maneira que se ensina e, consequentemente, faz nascer novos discípulos e discípulas. À missão de “discipular”, é intrínseca a função de batizar, como sinal de pertença à comunidade dos discípulos. Mateus pensa na sua comunidade, obviamente, marcada pela tensão entre os adeptos e os contrários à prática judaica da circuncisão. Dos novos discípulos, não deve ser exigido nenhum sinal externo além do batismo. A fórmula trinitária expressa a preocupação do evangelista para que o batismo de ingresso na comunidade cristã não seja confundido com o rito penitencial praticada por João Batista. A expressão “Em nome de/do” indica a força do batismo. Na tradição bíblica, o nome de uma pessoa é a sua própria identidade e essência, expressa a totalidade do seu ser. Portanto, ser batizado em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo, é ser impregnado da essência mesma de Deus.

Como última recomendação do mandato, Jesus apresenta uma advertência, mais do que uma ordem: «E ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei!» (v 20a). Em nenhum outro Evangelho essa expressão teria a profundidade que tem em Mateus.  Ora, Mateus é, por excelência, o Evangelho do ensinamento (em grego: διδαχή – didakê), tanto que está estruturado em torno de cinco discursos: o discurso da montanha (Mt 5–7); o discurso missionário (Mt 10); o discurso em parábolas (Mt 13); o discurso comunitário (Mt 18) e o discurso escatológico (Mt 24–25). Nesses cinco discursos está totalidade do ensinamento de Jesus, para a comunidade de Mateus, e é isso o que deve ser ensinado; dos cinco, destaca-se o primeiro, o discurso programático, chamado de “discurso da montanha”. A comunidade cristã tem a missão de ensinar tudo, sem distorção alguma, do que Jesus ensinou e ordenou. Essa totalidade do ensinamento de Jesus, no entanto, não passa de um jeito de viver, ou seja, é um programa de vida. Por isso, não pode ser distorcido e nem substituído por uma doutrina ou ideologia. E o efeito de ensinar a observar o conjunto da mensagem de Jesus é a construção de um mundo novo, uma humanidade nova. Em outras palavras, é a humanização do mundo.  

Finalmente, olhamos para a última frase de todo o evangelho, que é, na verdade, uma síntese da obra de Mateus enquanto livro e da missão mesma de Jesus: a certeza da sua presença permanente na comunidade: «Eis que eu estarei convosco todos os dias, até ao fim do mundo» (v. 20b). Embora a tradução do texto litúrgico apresente o verbo “estar” no futuro, o evangelista o emprega no presente, conforme o texto grego. Isso significa que Jesus nunca se ausentou da comunidade, ou seja, Ele não foi embora para voltar depois, mas permaneceu sempre. Aqui, ele diz «Eu estou convosco». Por sinal, a presença é um tema teológico central no Evangelho de Mateus: no início, Jesus é apresentado como Emanuel, cujo significado é “Deus está conosco” (1,23); Ele mesmo garantiu estar presente quando a comunidade estivesse reunida em seu nome (18,20), e garante, aqui na conclusão, permanecer para sempre com os discípulos. Por isso, com essa certeza, Mateus não tinha motivos para descrever Jesus subindo para o céu, como fez Lucas. O importante é que a comunidade possa sentir sua presença e que essa a estimule a viver e ensinar somente o que Ele ensinou.

O Ressuscitado está, de fato, presente na comunidade que vive o ideal de vida proposto nas bem-aventuranças. Nessa comunidade todos são discípulos e discípulas e, portanto, irmãos e irmãs. Essa comunidade celebra, acolhe, convence pelo testemunho e coloca-se em saída para, com alegria, compartilhar tudo o que Ele ensinou. Ao colocar-se em saída, essa comunidade cumpre a missão de humanizar o mundo, não impondo doutrinas, mas vivendo intensamente o amor. 

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

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