Neste décimo sexto domingo do tempo comum, o evangelho
proposto pela liturgia é Marcos 6,30-34. Trata-se de um texto bastante curto,
mas muito significativo. Está em continuidade direta com aquele lido no domingo
passado (Mc 6,7-13), mesmo havendo um intervalo de dezesseis versículos entre
os dois textos, saltados pela liturgia (Mc 6,14-29). O episódio narrado no
trecho lido no domingo passado correspondia ao envio missionário dos Doze
discípulos-apóstolos, dois a dois, por Jesus, que lhes conferiu autoridade para
que fizessem o mesmo que ele já fazia. O texto de hoje refere-se ao retorno da
missão. E, ao retornar da missão, os discípulos se reúnem com Jesus para lhe
contar tudo o que tinha acontecido na missão, ou seja, para partilhar com o
mestre toda a experiência vivenciada. Entre o envio e o retorno dos discípulos,
o evangelista narra dois episódios, que correspondem aos versículos saltados
pela liturgia, como acenamos acima. Trata-se do questionamento de Herodes sobre
a identidade de Jesus (Mc 6,14-16), e do relato da morte de João Batista (Mc
6,17-29).
Como a fama de Jesus já tinha se espalhado bastante,
devido aos prodígios realizados e aos efeitos da sua pregação, o povo começou a
confundi-lo com grandes profetas, como Elias e João Batista. Essa confusão
parece ter perdurado bastante tempo, como será evidenciada novamente no
episódio da confissão de Pedro, em Cesaréia de Filipe (Mc 8,27-30).
Imaginava-se que Jesus fosse um profeta que tivesse ressuscitado. Isso chegou
ao conhecimento de Herodes, que ficou preocupado. De fato, a atuação de um
profeta é sempre motivo de preocupação para qualquer tirano. E como João
Batista tinha sido morto a mando de Herodes, o boato de que ele teria
ressuscitado deve tê-lo deixado apreensivo. Diante disso, o evangelista narra o
martírio de João, instigando seus leitores a pensarem nas consequências da
missão, enquanto supõe-se que os discípulos de Jesus estavam espalhados pela
Galileia, em missão.
Ainda a nível de contexto, é importante recordar o
episódio que vem depois do texto lido hoje: a multiplicação
(condivisão/partilha) dos pães e dos peixes (Mc 6,30-44). Esse acontecimento é
um desdobramento do episódio de hoje, o que deveria ser o evangelho do próximo
domingo, mas a liturgia do ano B o substituiu pela versão do Quarto Evangelho
(Jo 6,1-15). Por sinal, a partir do próximo domingo, inicia-se uma série de
cinco domingos de leitura do Evangelho de João, uma vez que, naquele Evangelho,
o episódio da partilha dos pães é seguido de um amplo discurso, no qual Jesus
se apresenta como pão vivo e alimento verdadeiro para todas as pessoas. É
imprescindível recordar a relação entre os dois episódios na dinâmica narrativa
de Marcos, pois assim se percebe melhor que alimentar as pessoas famintas e
preocupar-se com elas faz constitui uma dimensão essencial do seguimento de
Jesus.
Feita a contextualização, olhemos então para o texto de
hoje, o qual começa afirmando que «Os apóstolos reuniram-se com Jesus e
contaram tudo o que haviam feito e ensinado» (v. 30). Logo neste primeiro
versículo, identificamos a continuidade entre evangelho de hoje e o do domingo
passado: os apóstolos retornam da missão e contam tudo a Jesus. Essa é a única
vez em que Marcos usa o termo apóstolos (em grego ἀπόστολος), cujo significado literal é enviado. Logo, não se trata
de um título, mas de uma dimensão do discipulado, conforme o relato da
constituição do grupo dos Doze: «E constituiu Doze, para estarem com ele, e
para enviá-los a pregar, com autoridade para expulsar os demônios» (Mc
3,14). Estar com Jesus e ser enviado é, portanto, a síntese do discipulado. Por
isso, é importante a ênfase que o evangelista dá à reunião dos
discípulos-apóstolos com Jesus, logo após o retorno da missão. E como aquela
tinha sido a primeira experiência de missão, certamente tinham muito o que
contar sobre o que tinham feito e ensinado. Tudo o que fizeram foi à maneira de
Jesus, conforme as instruções recebidas. E tudo o que Jesus fazia e ensinava
visava à libertação do ser humano, em todos os sentidos. Seus ensinamentos não
era conhecimento teórico de caráter doutrinal, mas princípio de humanização.
O evangelista recorda esse fato com muito interesse para
a sua comunidade. Nas idas e vindas da vida e da missão, é necessário fazer
paradas para estar com Jesus e confrontar com ele o que se faz e o que se
prega. É preciso contar tudo a ele. Não se trata de uma prestação de contas,
nem de autopromoção ou propaganda. É preciso estar com ele e contar-lhe tudo
para aprofundar as convicções e corrigir as eventuais incoerências. Daí, a
necessidade da conversão contínua. Provavelmente, como era a do próprio Jesus,
a missão dos discípulos também deve ter sido marcada pelas situações
paradoxais, previstas nas recomendações do envio: acolhida e rejeição, fé e
incredulidade, elogio e difamação (Mc 6,7-13). Os verbos “Fazer e ensinar”
constituem uma expressão que sintetiza a missão de Jesus (At 1,1); significa
que sua práxis consiste em obras e palavras. Aplicada aos discípulos, quer
dizer que eles estavam em sintonia com Jesus, reproduzindo o seu agir no mundo
e, consequentemente, recebendo acolhida e rejeição, como ele.
Os discípulos, enquanto apóstolos, voltaram cansados e
Jesus sentiu a necessidade do descanso para eles. Ora, assim como era intensa a
missão de Jesus, deveria ter sido também a dos seus discípulos. Por isso, «ele
lhes disse: “vinde sozinhos para um lugar deserto e descansai um pouco”»
(v. 31a). É interessante notar a humanidade de Jesus: ele percebe o cansaço
físico dos discípulos e reconhece a necessidade do descanso. Com isso, o
evangelista adverte a comunidade para não cair no ativismo desenfreado que pode
se tornar prejudicial. É necessário equilíbrio. E o descanso proposto por Jesus
não é um mero lazer, mas um aprofundamento nas convicções da vocação e da
missão. É uma espécie de retiro. Por isso, ele convida-os para ir a um lugar
deserto. Como se sabe, na linguagem bíblica, o lugar deserto é propício para o
encontro com Deus. Aqui, o descanso dos discípulos no deserto significa, além
do necessário e importante repouso físico, a meditação das palavras de Jesus, a
oração e a necessidade de renovar constantemente as convicções. O convite para
que os discípulos fossem sozinhos, separando-se por um tempo das multidões,
indica o aspecto formativo desse retirar-se. Sempre que Jesus os convida para
estarem sozinhos com ele quer dizer quer queria também ensiná-los.
Apesar da necessidade, não era fácil para Jesus e nem
para os discípulos reservarem um momento de descanso e retirada em um lugar
deserto, para estarem sozinhos, pois «havia, de fato, tanta gente chegando e
saindo que não tinham tempo nem para comer» (v. 31b). Essa é a segunda vez
que o evangelista afirma que a presença das multidões ao redor de Jesus e dos
discípulos os impediam até mesmo de comer; a primeira vez, foi na casa, em
Cafarnaum, logo após a constituição dos Doze (3,20), no episódio dos conflitos
com os familiares e os escribas. Isso evidencia a intensidade do seu “fazer e
ensinar”, e revela que ele não ignorava as pessoas com suas necessidades, o que
lhe custava muitas renúncias. Porém, a necessidade do descanso dos discípulos e
o tempo para “ficarem sozinhos” com ele é indispensável, e a comunidade cristã
precisa ser ensinada a sentir a necessidade desses momentos. Por isso, ele
insistiu, como afirma o evangelista: «Então foram sozinhos, de barco, para
um lugar deserto e afastado» (v. 32). Como se vê, o evangelista faz questão
de mostrar a insistência de Jesus com o descanso dos discípulos, sobretudo ao
ressaltar o fluxo constante de pessoas ao redor. Se apesar desse fluxo ele se
retira com os discípulos, isso quer dizer que esse retirar-se era mesmo
imprescindível.
A experiência do lugar deserto é indispensável ao longo
da caminhada, mesmo que não seja prolongada, tendo em vista às necessidades das
pessoas. Na tradição profética, o deserto é o lugar onde “Deus fala ao coração”
(Os 2,16), por isso é imprescindível para a comunidade fazer constantemente
essa experiência. É importante ressaltar que, ao insistir com a ida ao lugar
deserto, Jesus não estava fugindo do povo, nem induzindo os discípulos a
fazerem o mesmo; pelo contrário, estava ressaltando a necessidade de aprofundar
a experiência de Deus em suas vidas para compreenderem melhor as necessidades
do povo e, assim, servi-lo cada vez melhor. Essa insistência pela ida ao lugar
deserto serve também de preparação para o episódio seguinte, que é a partilha
dos pães (Mc 6,35-44). Se antes, apenas com a pregação de Jesus, mesmo sofrendo
rejeição em alguns lugares, as multidões já se aglomeravam ao seu redor (Mc
2,1; 3,9.20; 4,1; 5,21), muito mais agora com a sua mensagem ampliada pela
missão dos doze apóstolos. Com isso, tornava-se cada vez mais difícil encontrar
o tempo necessário para a experiência importante do lugar deserto.
Enquanto Jesus e os discípulos partiram de barco, o
evangelista diz que «muitos os viram partir e reconheceram que eram eles.
Saindo de todas as cidades, correram a pé, e chegaram lá antes deles» (v.
33). A busca das multidões por Jesus parece ter sido muito intensa, como
recorda o evangelista constantemente. Isso mostra a carência de vida no povo e,
ao mesmo tempo, a esperança que Jesus transmitia. Certamente, a maioria eram
pessoas marginalizadas pela religião e a sociedade, pessoas sem vez e sem voz
que se sentiam acolhidas, consoladas e encorajadas pela mensagem de Jesus. Eram
mulheres, enfermos, pecadores públicos, pobres; pessoas que tinham sido
descartadas pelo sistema. Ao saber que Jesus inclui a todos e todas, essas
pessoas não queriam perder a oportunidade de encontrar-se com ele. É isso o que
justifica a pressa das pessoas, a ponto de chegarem ao local antes mesmo que
ele e os discípulos. A princípio, parece um exagero do evangelista dizer que
pessoas a pé chegaram antes de quem ia de barco, no entanto, a depender da
direção do vento, era muito comum, sobretudo porque os itinerários de Jesus com
seus discípulos eram já conhecidos.
O descanso dos discípulos parecia um direito sagrado,
reconhecido pelo próprio Jesus, ao insistir tanto com a ida ao lugar deserto.
Mas nada é mais sagrado do que a vida e nada é mais urgente do que o cuidado
com a vida, sobretudo para Jesus, um verdadeiro mestre de humanização. Por
isso, diz o evangelista que, ao chegar no deserto e ver a multidão, ele
reconheceu uma prioridade maior: «ao desembarcar, Jesus viu numerosa
multidão e teve compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor. Começou, pois,
a ensinar-lhes muitas coisas» (v. 34). Embora irrenunciável, a experiência
do encontro no lugar deserto não pode se sobrepor às necessidades concretas das
pessoas, principalmente das mais vulneráveis. Essa cena, portanto, não pode ser
ignorada pela comunidade que tem acesso ao Evangelho, hoje e em todos os
tempos. O evangelista Marcos é muito econômico nas palavras: só utiliza a
palavra compaixão em quatro ocasiões (1,41; 6,34; 8,2; 9,22) que são situações
de extrema necessidade. Vale a pena recordar que compaixão significa misericórdia;
portanto, sentir compaixão quer dizer ter misericórdia. No Novo Testamento, é a
tradução de um verbo grego que, literalmente, significa “contorcer as
entranhas” (em grego: σπλαγχνίζομαι –
splanknizomai). Em Marcos, esse verbo sempre tem Jesus como sujeito. Ao invés
de envaidecer-se com o aparente sucesso, pois as multidões o buscavam
incansavelmente, Jesus sente compaixão delas. Ele sente o amor profundo e
máximo de Deus, que nasce das entranhas, por isso, comparável somente ao amor
materno.
As entranhas são o núcleo mais profundo e íntimo do ser
humano; é algo mais profundo do que o próprio coração, sede dos pensamentos e
dos sentimentos para a mentalidade semita. Todo coração pode conter amor, mas o
amor de uma mãe é sempre mais intenso, pois brota de uma realidade mais
profunda do que o coração: as entranhas. Por isso, é a imagem que representa o
amor de Deus pela humanidade. Sentir compaixão é sentir dor por causa da dor do
outro. No Antigo Testamento, a compaixão/misericórdia sempre foi a resposta de
Deus às necessidades do seu povo. Na pessoa de Jesus, o Verbo de Deus feito
carne, a misericórdia também se fez carne, pois constitui a essência da sua
pessoa. E o que fazia Jesus contorcer-se por dentro era a situação em que o
povo se encontrava: «estavam como ovelhas sem pastor». Essa comparação
reflete a situação de extremo abandono e exploração em que se encontravam as
multidões que iam ao seu encontro, e revela, ao mesmo tempo, a corrupção e
hipocrisia dos dirigentes, tanto religiosos quanto políticos, a causa principal
daquela situação. A imagem da ovelha é sinônimo de mansidão e vulnerabilidade;
a ausência de um pastor que a conduza e proteja significa exposição aos
perigos. A ausência de pastores que cuidem da multidão é uma nítida crítica aos
dirigentes religiosos, principalmente. Antes de Jesus, os profetas já tinham
denunciado essa situação, principalmente Jeremias e Ezequiel, que viveram um
dos momentos mais dramáticos da história de Israel (Ez 34,23-24; Ez 37,22.24;
Jr 3,15; 23,4). Jesus se encontra com um problema que já se arrastava há
séculos; poderia até ter “naturalizado” a situação, como muitos fizeram e
fazem. Mas ele não aceitou como normal o sofrimento das pessoas, nem a
exclusão, nem a fome. Logo, nenhuma situação de abandono, de dignidade ferida
pode ser ignorada ou tratada como normal pelos seguidores e seguidoras de
Jesus.
O plano de Jesus retirar-se para um lugar deserto com
seus discípulos e ali descansarem foi alterado porque havia uma necessidade
muito mais urgente: cuidar das pessoas que estavam “como ovelhas sem pastor”,
ou seja, exploradas e abandonadas pelos sistemas dominantes da época: a
religião oficial judaica e o império romano. Assim como fez Jesus, também deve
fazer a comunidade cristã em todos os tempos: ser flexível com seus programas,
diante das situações que exigem ações concretas e urgentes. A necessidade da
multidão fez Jesus alterar seu programa. Por isso, ele «Começou, pois, a
ensinar-lhes muitas coisas». É importante perceber que o primeiro fruto da
compaixão de Jesus é o ensino (em grego: διδασκαλία – didaskalia); isso porque sua Palavra liberta,
humaniza. E o seu ensinamento consistia no anúncio do Reino de Deus, que
comporta a construção de um mundo novo já aqui, sem exploração, sem
discriminação, sem fome, sem desigualdades. É um ensinamento emancipatório que
denuncia e desmente os discursos oficiais do império e da religião oficial, que
naturalizavam o sofrimento das pessoas. O ensinamento de Jesus não era a
exposição de uma doutrina, mas consistia em palavras de vida, de encorajamento
para a superação da situação degradante em que o povo se encontrava. É um
ensinamento universal, serve para todas as situações e lugares. Ele já tinha
ensinado nas sinagogas (cf. 6,2), na casa (cf. Mc 3,20), na praia (cf. Mc 4,1),
e agora ensina também no deserto. Isso quer dizer que em todos os ambientes a
mensagem libertadora de Jesus deve ecoar, para gerar vida e libertação, e
eliminar preconceitos e exclusões.
Embora curto, o Evangelho de hoje é bastante rico, como
se vê, conforme o que acabamos de refletir. Percebemos que, enquanto comunidade
enviada por Jesus, é sempre necessário estar com ele e confrontar o “fazer” e o
“ensinar” com aquilo que o Evangelho propõe. A comunidade não pode medir
esforços nem pôr obstáculos diante daquilo que é essencial, sobretudo o cuidado
com as pessoas mais necessitadas. Também não deve elaborar programas, fazer
planejamentos, se esses não estiverem em sintonia com a situação concreta das
pessoas. Se uma regra básica para o seguimento de Jesus é a disponibilidade
para o serviço, as necessidades do próximo devem estar sempre em primeiro
lugar, mesmo que sejam necessárias renúncias e sacrifícios para isso, como
Jesus sacrificou o descanso dos discípulos que tinham acabado de chegar da
missão, porque viu uma necessidade maior: o cuidado com as pessoas
necessitadas.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de
Mossoró-RN

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