sábado, setembro 28, 2024

REFLEXÃO PARA O 26º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 9,38-43.45.47-48 (ANO B)



O evangelho proposto para a liturgia deste vigésimo sexto domingo do tempo comum – Mc 9,38-43.45.47-48 – é a continuidade daquele do domingo passado (Mc 9,30-37). Como se vê, alguns versículos foram saltados (vv. 44 e 46), deixando o texto fragmentado, o que dessa vez não chega a comprometer o seu sentido. Esse texto apresenta mais uma atitude de incompreensão e incoerência dos discípulos, seguida de correção e catequese de Jesus. O contexto geral é o do caminho decisivo de Jesus com os discípulos para Jerusalém, que culminará com os eventos da paixão, morte e ressurreição. Mais do que um percurso geográfico, esse caminho representa um itinerário formativo para os discípulos. É nele que Jesus propõe a parte mais exigente da sua catequese, sobretudo no Evangelho de Marcos. O episódio retratado no evangelho de hoje pertence à primeira etapa do caminho, que foi a fase mais difícil, marcada pelos maiores conflitos entre Jesus e os discípulos, gerando uma grande crise. Com muita clareza, o evangelista Marcos diz que, mesmo estando próximos a Jesus, os discípulos se tornam, nesse itinerário, seus verdadeiros opositores, com um comportamento oposto ao que o Mestre ensinava. Embora Jesus já tenha, nesse contexto, feito dois anúncios explícitos da sua paixão (Mc 8,31-33; 9,30-32), os discípulos continuam ignorando, preferindo alimentar seus próprios anseios de grandeza, poder e exclusivismo, colocando-se, assim, em oposição a Jesus. Nisso consiste a grande crise instaurada.

As principais incoerências dos discípulos denunciadas no evangelho de hoje são o exclusivismo, a intolerância, a tendência ao fechamento e fanatismo. Tudo isso vem expresso logo no primeiro versículo: «João disse a Jesus: “Mestre, vimos um homem expulsar demônios em teu nome. Mas nós o proibimos, porque ele não nos segue”» (v. 38). Como se vê, a atitude e a fala do apóstolo João revelam uma mentalidade contrária a tudo o que Jesus já tinha vivido e ensinado até então. Para compreender melhor tal atitude, é importante recordar que, no momento da formação do grupo dos Doze, João e seu irmão Tiago receberam o nome de Boanerges, que significa “filhos do trovão” (Mc 3,17), em alusão ao temperamento difícil dos dois. Ambos se destacavam pela arrogância, intolerância e ambição. Além do episódio de hoje, os evangelhos mostram mais duas ocasiões em que se evidenciam as características negativas dos filhos de Zebedeu: quando pedem a Jesus para ocuparem os primeiros lugares no Reino, sentando-se um à direita e outro à esquerda (Mc 10,35-40), e quando queriam eliminar os samaritanos de um povoado com fogo, somente porque não os acolheram (Lc 9,51-55). Juntamente com Pedro, João e Tiago eram os discípulos mais difíceis de lidar no grupo; por isso, quando Jesus ficava somente com eles, como no episódio da transfiguração (Mc 9,2-8; Mt 17,1-8; Lc 9,28-36), não se tratava de privilégio, mas de necessidade. Pelo comportamento e temperamento, eles necessitavam de uma catequese mais intensa, por isso, também sofriam as repreensões mais duras

A atividade de “expulsar demônios” nos evangelhos, e principalmente em Marcos, significa a promoção da liberdade e da dignidade das pessoas. É, acima de tudo, uma atitude de humanização. Mais do que uma demonstração de poder, a expulsão de demônios nos evangelhos revelam o potencial humanizante do amor de Deus pelo mundo com as pessoas que nele habitam. Trata-se de abrir as portas do Reino de Deus, tornando-o acessível à humanidade inteira. É a difusão da boa nova que transforma vidas, rompendo com as estruturas de morte e opressão vigentes em qualquer sistema. Uma atividade assim, de promoção plena do bem das pessoas, não pode ser estranha ao programa e à mensagem de Jesus, independentemente de pertença ou não a algum grupo ou movimento denominado cristão. Quem faz o bem ao próximo, está em sintonia Deus. Ao afirmar que o homem estava «expulsando demônios em nome de Jesus», o evangelista evidencia que ele estava em sintonia e comunhão plena com Jesus, mesmo sem pertencer ao grupo dos Doze, e nem os seguir. Logo, a proibição imposta por João denuncia o fechamento e o fanatismo dele e dos seus companheiros de grupo. Uma atitude dessas coloca em risco a eficácia e a credibilidade do Evangelho.

Tão grave quanto a atitude é a justificativa de João: ele e seus companheiros de grupo proibiram o exorcista autônomo de expulsar demônios em nome de Jesus porque não seguia a eles, aos discípulos mesmos. Ele não alega que aquele homem não seguia Jesus, mas que não “os seguia”, ou seja, não seguia aos discípulos, não pertencia ao gueto deles. Além da tentativa de monopolizar o poder, eles se colocavam no lugar de Jesus, reivindicando o seguimento para eles próprios. A expressão “nós o proibimos” denuncia que não foi uma atitude isolada de João, mas do grupo dos Doze. É importante recordar que o evangelista faz memória do episódio pensando na sua comunidade e nas comunidades futuras. Ora, na época da escrita do        Evangelho, as comunidades passavam por grandes transformações, vivendo novas experiências de organização, à medida em que cresciam e novas gerações eram formadas. Com isso, havia uma forte tendência à hierarquização. As lideranças queriam monopolizar o “nome de Jesus”. Por isso, o evangelista faz a advertência, ensinando que nenhuma pessoa e nenhuma instituição podem controlar o nome de Jesus, pois sua mensagem libertadora é universal, visando a humanização de todo o mundo. E é o próprio Jesus quem não aceita ser controlado por ninguém. É normal e necessário que as comunidades se organizem, que tenham lideranças, mas com a clara consciência de que o “nome de Jesus” extrapola os limites de qualquer religião, igreja, grupo ou movimento.

Diante do absurdo verificado na fala de João, a reação de Jesus não poderia ser outra senão de reprovação total e repreensão: «Jesus disse: “Não o proibais, pois ninguém faz milagres em meu nome para depois falar mal de mim. Quem não é contra nós é a nosso favor”» (vv. 39-40). Ora, fazer qualquer coisa em nome de Jesus, como expulsar demônios e outros tipos de milagres, significa, na linguagem do evangelista, estar em plena sintonia com ele; só faz isso quem reconhece a sua autoridade e conduz a vida de acordo com o seu Evangelho, quem aceita seus ensinamentos e os recebe como instrumento de libertação. Ninguém pode ser impedido de fazer o bem, em nome de ninguém, muito menos quando for em nome de Jesus, que veio ao mundo para fazer o bem a todas as pessoas, sobretudo as mais necessitadas de libertação. Ora, proibir alguém de agir em nome de Jesus é querer aprisionar a sua mensagem e delimitar a ação do Espírito Santo, o que é impossível. Dos discípulos, exige-se abertura, compreensão e consciência de que a mensagem do Evangelho não é propriedade de nenhuma instituição religiosa, mas dom acessível a quem tem sede de justiça e de amor. Com um simples, embora profundo, provérbio, Jesus fecha a questão: «Quem não é contra nós é a nosso favor»Ser contra, significa optar pelo mal e fechar-se aos valores do Reino; quem não faz isso, já está, consequentemente, a favor e, portanto, apto a agir em seu nome, independentemente de pertencer ou não a algum grupo religioso. Os sinais distintivos da pertença a Jesus são apenas estes: amar, fazer o bem e não compactuar com mal, jamais.

Como sempre, as repreensões de Jesus aos discípulos são seguidas de catequeses mais aprofundadas e práticas, o que se acentua ainda mais neste contexto do início do caminho, marcado por uma grande crise entre eles: «Em verdade eu vos digo: quem vos der a beber um copo de água, porque sois de Cristo, não ficará sem receber a sua recompensa» (v. 41). Embora seja um gesto, aparentemente, simples, dar um copo de água era, na cultura semita, uma das maiores demonstrações de hospitalidade e acolhida. A recompensa, aqui, não significa um prêmio no futuro, mas a pertença a Jesus e sua comunidade; é a comunhão com ele. Essa pertença não depende de discursos ou formulações doutrinárias, mas de gestos e atitudes que revelem amor e justiça, como dar um simples copo de água a uma pessoa sedenta. O que importa, de acordo com o evangelista, é que tudo seja feito em “nome de Jesus”, ou seja, em comunhão com ele, motivado pelo seu amor. Aqui, o ensinamento é dirigido exclusivamente aos discípulos: eles não devem esperar muita coisa, nem grandes adesões; basta um simples gesto de reconhecimento da pertença a Cristo, para que os destinatários sejam recompensados, ou seja, entrem em comunhão com sua vida. Merece atenção o fato de ser essa a primeira vez que Jesus aplica a si o título “Cristo”, que significa Messias. Até então, esse título sido empregado apenas duas vezes, no Evangelho de Marcos: pelo narrador, logo na abertura do livro (1,1) e por Pedro, no caminho de Cesareia (8,29). Com ele, Jesus assume sua verdadeira identidade messiânica, e ensina que seus discípulos não receber mais do que o necessário, sem privilégios.

Na sequência, a catequese é continuada com a retomada da importância dos “pequeninos” para o Reino de Deus, já introduzida no domingo passado com o exemplo da criança. Eis o que diz o texto de hoje: «E, se alguém escandalizar um destes pequeninos que creem, melhor seria que fosse jogado no mar com uma pedra de moinho amarrada ao pescoço» (v. 42). Escandalizar, aqui, é criar obstáculo ou impedimento à fé e à vida digna. Os maiores exemplos de escândalo numa comunidade são: autoritarismo, ambição, fanatismo, intolerância e indiferença aos “pequeninos”. O termo “pequeninos” (em grego: μικρός – mikrós), é a síntese de todas as categorias de pessoas vulneráveis e historicamente excluídas: pobres, mulheres, pecadores, enfermos, etc. Quando os membros da comunidade cristã são motivos de escândalo para essas pessoas, isto é, quando não favorecem a acolhida e a inclusão, Jesus os reprova e adverte severamente. Por sinal, os evangelhos mostram que Jesus tolerava muitas incoerências nos seus discípulos. Ele conhecia perfeitamente os limites da condição humana. A única a única coisa que ele não tolerava era a indiferença e o desprezo aos pequeninos, os seus prediletos. A sorte de quem os rejeita é trágica. Por isso, emprega-se uma linguagem bastante severa para denunciar e advertir os seus discípulos e, sobretudo, para motivá-los a manter os “pequeninos” como prioridade na comunidade.

Para a mentalidade semita, ser jogado no mar com uma grande pedra amarrada ao pescoço era a certeza de que esse corpo jamais seria resgatado; assim, não poderia receber uma sepultura digna e, consequentemente, não teria sequer direito à ressurreição dos mortos no último dia, como acreditavam os judeus. Esse destino exclui qualquer possibilidade de salvação. O mar era símbolo do caos, a morada do mal. Por isso, dentre as tantas possibilidades de morte, a mais temida pelos judeus era o afogamento no mar, pois significava ser engolido pelo mal. Jesus emprega tal imagem para mostrar a gravidade do “escândalo aos pequeninos”. A chamada de atenção aos discípulos continua com a demonstração de certas ocasiões, através dos principais membros do corpo, que podem levar os discípulos a causarem “escândalo” aos pequeninos. A mão, o pé e o olho (vv. 43-47) eram considerados os membros do corpo responsáveis pelo bom ou mau comportamento das pessoas, segundo a mentalidade semita. Eram, portanto, os membros essenciais. As mãos, representam todo o agir da pessoa; quando a pessoa não age conforme o Evangelho, é melhor não as ter, conforme essa mentalidade. Os pés representam a conduta, podendo levar a pessoa por caminhos justos e injustos; é melhor não ter pé do que andar por caminhos errados. O olho, como “lâmpada do corpo” (Mt 6,22) é a porta de entrada dos sentimentos e desejos alimentados no coração da pessoa. Tudo o que é processado no coração, sentimentos bons e maus, passa pelo olho. Diante disso, se tais membros, que são os essenciais para a vida de uma pessoa, forem usados para o mal, é melhor o ser humano privar-se deles.

É claro que, com o uso destas imagens tao fortes, Jesus não recomenda a amputação de membros do corpo, mas adverte que a vida não tem sentido se não for toda voltada para o bem, sobretudo o bem dos pequeninos, as pessoas mais necessitadas. Também não está apontando o destino futuro, nem descrevendo a vida “pós-morte”. Porém, não vale a pena ter um corpo são e uma vida perdida, sem sentido, o que corresponde ao ser jogado no “fogo que não se apaga”. Essa expressão funciona como explicação para o termo grego que o lecionário traduz por inferno. Porém, é uma tradução insuficiente. O texto original não fala de inferno, mas de “geena” (em grego: γέεννα - gheena). É uma palavra estranha, mas poderia ser mantida, já que o próprio texto fornece a explicação: “fogo que não se apaga”. A “geena” era um vale, ao sul de Jerusalém, onde ficava o lixão da cidade; era sinônimo de imundície e de fogo constante. Inclusive, corpos humanos já tinham sido lá sacrificados, em cultos pagãos, por isso, esse local passou a ser símbolo de condenação completa para os judeus. Além do fogo, lá predominava também o mau cheiro constante. Era um símbolo concreto da negação da vida. Por ser depósito de todo o lixo de uma grande cidade, numa época em que o saneamento não era sequer imaginado, todos os tipos de resíduos iam para lá, por isso possuía um “fogo que não se apaga” (v. 48). “Geena” e fogo são, portanto, imagens de uma vida sem sentido. E o que dá sentido à vida é a adesão à pessoa de Jesus, com todas as exigências e consequências que o seu seguimento implica.

Que o evangelho de hoje, portanto, nos ajude na renovação das convicções do seguimento de Jesus. Que imprima em nós cristãos e cristãs um espírito de abertura, tolerância e acolhida, levando-nos a reconhecer que, também em outras experiências há seguimento e presença de Jesus. Onde há fanatismo e intolerância, não há seguimento nem discipulado. O critério de identificação com ele não é um vínculo institucional, mas a prática do bem, sobretudo aos pequeninos e carentes de humanização, para que sejam humanizados e emancipados.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

 

sábado, setembro 21, 2024

REFLEXÃO PARA O 25º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 9,30-37 (ANO B)

 


A liturgia deste vigésimo quinto domingo do tempo comum apresenta mais um passo importante do caminho de Jesus com seus discípulos, conforme a dinâmica narrativa e catequética de Marcos. Trata-se de um caminho em dois níveis: o primeiro, compreende um percurso físico da Galileia para Jerusalém, cujo percurso encontra-se ainda no início, conforme o texto lido hoje; no segundo nível, trata-se de um itinerário catequético-teológico que visa despertar nos discípulos um conhecimento mais aprofundado da identidade de Jesus, tendo em vista reforçar as convicções para continuarem no seu seguimento. Os resultados, contudo, não são tão positivos, pois, à medida em que avançam no caminho, a mentalidade dos discípulos se distancia cada vez mais da proposta de Jesus. O evangelho de hoje – Mc 9,30-37 – mostra muito bem isso. Embora não seja a sequência imediata do texto lido no passado (Mc 8,27-35), ambos estão intrinsecamente relacionados. Enquanto aquele do domingo passado apresentava o primeiro anúncio da paixão, após a confissão de fé de Pedro, o de hoje contém o segundo anúncio. Entre os dois anúncios, encontra-se o episódio da transfiguração (9,2-8) e o relato da cura de um menino epilético (9,14-24), ambos saltados pela liturgia. Conforme a tradicional divisão do Evangelho de Marcos em duas partes, o texto lido hoje pertence à segunda parte, voltada especialmente para a formação dos discípulos.

É importante recordar que os anúncios da paixão são sempre seguidos de atitudes dos discípulos que contradizem completamente o ensinamento de Jesus. E isso é bem evidenciado no texto de hoje. À incompreensão/contradição dos discípulos, Jesus reage e reforça a sua catequese, apresentando uma criança como exemplo para a comunidade, mostrando que o Reino de Deus tem como protagonistas e destinatários os pequenos e humildes, ao contrário do que pensavam os discípulos, que imaginavam uma comunidade hierárquica, segundo os esquemas dos sistemas de poder deste mundo. O texto divide-se claramente em duas partes demarcadas pela dimensão espacial: a primeira (vv. 30-32), acontece no caminho, enquanto a segunda acontece na casa (vv. 33-37), em Cafarnaum. Casa e caminho representam os dois cenários privilegiados para a pregação de Jesus e para a vida da comunidade cristã, especialmente a comunidade do evangelista Marcos que, rompida definitivamente com a sinagoga, não tinha um espaço fixo para as suas reuniões. O caminho tem como significado a instabilidade, os perigos e, ao mesmo tempo, o dinamismo e a dimensão missionária da comunidade; é uma prova de que a Igreja nasceu para estar, realmente, em saída. Já a casa, significa a necessidade das relações fraternas e sinceras que devem marcar a vida da comunidade; é um espaço de acolhida, compreensão e vivência do amor. Caminho e casa, portanto, são dois espaços importantes para identidade da comunidade. Revelam, inclusive, o aspecto de marginalidade do cristianismo em suas origens.

Começamos o estudo do texto partindo do primeiro versículo, que diz: Como diz o texto, «Jesus e seus discípulos atravessavam a Galileia. Ele não queria que ninguém soubesse disso» (v. 30). Essa travessia pela Galileia acontece após o episódio da transfiguração (Mc 9,2-13) e a expulsão de um espírito impuro de um jovem epilético (Mc 9,14-29). Já faz parte do caminho para Jerusalém, embora ainda esteja na fase inicial. Quando o iniciou o caminho, Jesus se encontrava com seus discípulos no extremo norte da Galileia, próximo à Cesareia de Filipe, por isso, ainda está atravessando-a. Ora, ele percebeu que era extremamente necessário aprofundar o ensinamento sobre o seu destino aos discípulos, que continuavam resistentes e fechados na mentalidade nacionalista de espera por um messias poderoso. Por isso, nessa fase inicial, Jesus prefere o anonimato e o isolamento das multidões para intensificar a catequese aos discípulos. De fato, o próprio texto atesta isso. Ele atravessava a Galileia com os discípulos praticamente às escondidas, com cuidado para não ser visto, «Pois estava ensinando a seus discípulos» (v. 31a). A incompreensão de Pedro após o primeiro anúncio da paixão (Mc 8,31-35), conforme mostrou o evangelho do domingo passado, serviu de advertência para Jesus: até então, os discípulos ainda não tinham compreendido praticamente nada dos seus ensinamentos sobre sua identidade, seu projeto de Reino e seu destino. Por isso, ele sentiu a necessidade de estar sozinho com eles para aprofundar o ensinamento, recomeçando a catequese do princípio.

O conteúdo dessa fase específica da catequese é exatamente aquilo que os discípulos mais tinham dificuldade de compreender e aceitar, ou seja, o drama da paixão que se aproximava cada vez mais, não como predestinação, mas como consequência das opções feitas e posições assumidas até então por Jesus. Por isso, ele «dizia-lhes: “O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens, e eles o matarão. Mas, três dias após sua morte, ele ressuscitará”» (v. 31bc). É sempre importante recordar que os anúncios da paixão não são apenas informações dadas em forma de aviso. Eles fazem parte do ensinamento de Jesus, pois tratam do seu destino, que faz parte da sua própria missão salvadora. Esse é exatamente o segundo anúncio da paixão. Como se vê, é mais abreviado do que o primeiro, lido no domingo passado. Enquanto os discípulos, conforme a ideologia nacionalista, esperavam que o messias matasse, declarando guerra ao poder romano para recuperar o trono dravídico-salomônico, Jesus afirma o contrário: é ele quem vai morrer. Inclusive, ao invés de messias, Jesus aplica a si mesmo o título de “Filho do Homem”, que significa o humano em sua condição plena. O termo messias era facilmente manipulado política e ideologicamente. Embora nesse segundo anúncio não esteja tão claro quem serão seus algozes, ele já tinha declarado no primeiro: anciãos, sacerdotes e escribas (Mc 8,31), ou seja, as autoridades religiosas, em conluio com o poder imperial romano, até então controladoras de Deus, e agora inconformadas porque Jesus estava, com seu ministério, apresentando um Deus completamente diferente. O Deus dos chefes era cruel, vingativo e exigente, enquanto o Deus de Jesus é amoroso, misericordioso, acolhedor e justo.

A incompreensão dos discípulos continua, e parece aumentar, gerando até medo: «Os discípulos, porém, não compreendiam estas palavras e tinham medo de perguntar» (v. 32). A afirmação desse versículo é crucial. Nela, percebe-se o estado dos discípulos no momento, que era de completa negação do discipulado. Ora, ser discípulo é, acima de tudo, estar aprendendo com um mestre. Essa é a condição indispensável. Quando não compreendem o ensinamento, o discípulo deve perguntar ao mestre e tirar todas as dúvidas possíveis. Sem compreender e sem coragem de perguntar, eles tinham bloqueado o discipulado. Quando uma comunidade se encontra nessa situação, ela perde a razão de ser, pois anula-se o estatuto do discipulado. Incompreensão e medo revelam a covardia dos discípulos naquele momento, ressaltando a necessidade de aprofundamento e abertura de mentalidade. Se os discípulos não compreendiam, muito menos aceitavam a realidade como Jesus apresentava. Eles tinham medo de fazer perguntas porque sabiam que a explicação de Jesus não corresponderia às suas expectativas de triunfo e sucesso. Seria mais um desmascaramento. Por isso, covardemente, preferem conversar entre si, gerando rivalidades e divisões, alimentando sonhos triunfalistas e distantes da proposta de Jesus. Porém, Jesus os conhecia muito bem e sabia o que eles pensavam.

Por isso, lhes pergunta apenas por protocolo: «Eles chegaram a Cafarnaum. Estando em casa, Jesus perguntou-lhes: “O que discutis pelo caminho?”» (v. 33). A cidade de Cafarnaum, onde Jesus realizou boa parte do seu ministério, tem um significado especial para a comunidade. É o ponto de partida da Boa Nova, como fora o ponto de apoio para o movimento de Jesus, devido às facilidades que a localização da cidade oferecia para a circulação da mensagem e o encontro com as pessoas. Ao questionar os discípulos em casa, nessa cidade, Jesus revela a necessidade de renovação constante e de retorno às origens do chamado, com coragem para recomeçar. De fato, com o caminho da paixão já delineado, se tornava cada vez mais necessário reavivar nos discípulos as motivações para o seguimento com bastante clareza. A casa (em grego: οἰκία – oikía) é o lugar ideal da catequese, sobretudo em Marcos. É o espaço da fraternidade, das relações sinceras e transparentes. Às vezes, quando os discípulos não compreendiam o que Jesus tinha ensinado em público às multidões, tiravam as dúvidas em casa, perguntando o significado do ensinamento (Mc 7,17). Dessa vez, é Jesus quem os interroga. Na casa, está a ocasião para o aprofundamento da catequese e o crescimento nas relações fraternas.

Cientes do absurdo e da incompatibilidade entre o que eles conversavam e o que Jesus lhes apresentava, «eles ficaram calados, pois pelo caminho tinham discutido quem era o maior» (v. 34). Com essa informação, o evangelista revela que os discípulos estavam em total oposição ao projeto de Jesus. Ora, discutir quem é o maior, é negar completamente o projeto de Reino de Deus como fraternidade e igualdade. Essa discussão revela ambição e alimenta rivalidade, elementos inaceitáveis para uma comunidade que deve viver o princípio da igualdade e do amor. O silêncio deles denuncia a incoerência e a covardia. Após dois anúncios da paixão, já deveriam saber que qualquer projeto de grandeza era totalmente incompatível com o seguimento de Jesus. Ora, ser o maior significa ter poder para sobrepor-se aos demais, é ter voz de comando; é adotar na comunidade os mesmos mecanismos do sistema opressor, enquanto o projeto de Jesus é totalmente contra hegemônico e anti-hierárquico. Os discípulos sonhavam com a tomada do poder político, quando chegassem em Jerusalém; expulsariam os romanos, mas manteriam o mesmo sistema de dominação. Eles ainda não tinham compreendido que Jesus proponha uma sociedade alternativa, com igualdade e fraternidade, construída pela revolução do amor e chamada de Reino de Deus.

É interessante que a atitude de Jesus diante da grande incoerência dos discípulos não é de condenação, mas de insistência no ensinamento e de renovação do chamado. Ele não desmancha o grupo de seguidores, mas insiste em humanizá-los. Ao invés de abandoná-los, ele prefere aprofundar a catequese, demonstrando uma imensa capacidade pedagógica: «Jesus sentou-se, chamou os doze e lhes disse: “Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos!”» (v. 35). Ao sentar-se para ensinar, Jesus reafirma sua condição de mestre, o único que poderia reivindicar a condição de maior naquele grupo. Chamando os doze para perto de si, ele os convida, antes de tudo, a renovar a vocação originária, deturpada pelos sentimentos de grandeza e ambição que eles tinham alimentado. Para aprender e aceitar o ensinamento, é necessário que os discípulos estejam muito próximos ao mestre, sendo influenciados somente por ele. O ensinamento aqui é bastante didático e claro: «Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos!» (v. 35). Enquanto os discípulos pensavam em poder e grandeza, tema da discussão no caminho, Jesus mostra um caminho oposto. Só há uma forma de ser o primeiro na comunidade: tornando-se o último de todos e o servidor de todos. Ser o maior, como queriam os discípulos, significava ser o primeiro de todos e ser servido, dando voz de comando. Portanto, a proposta de Jesus não é apenas diferente, mas totalmente oposta às pretensões dos discípulos. Tornar-se servidor de todos é o mesmo que “renunciar a si mesmo”, como ele já tinha dito anteriormente (Mc 8,34). O discipulado não é um caminho para o sucesso, mas para o serviço. O sentido de ser discípulo é, portanto, a disposição de fazer para os outros e estar sempre a serviço, desinteressadamente.

Concluindo a sua catequese de contraponto às ambições de poder dos discípulos, Jesus faz um gesto bastante significativo, e finaliza com uma frase relacionada ao gesto: «Em seguida, pegou uma criança, colocou-a no meio deles e, abraçando-a, disse: “Quem acolher em meu nome uma destas crianças, é a mim que estará acolhendo. E quem me acolher, está acolhendo, não a mim, mas àquele que me enviou» (vv. 36-37). Aqui está o ponto alto da sua catequese; não basta falar, é necessário demonstrar com ações a veracidade da fala, o que faz recordar as ações simbólicas dos antigos profetas de Israel, com quem Jesus se identificou bastante. O gesto de pegar uma criança, é bastante provocatório, uma vez que, na época, a criança não gozava de nenhuma estima e consideração, a não ser pelos próprios pais. Tanto o mundo hebraico quanto o grego, tinham visões muito negativas a respeito da criança, considerando-a uma pessoa inacabada e incapacitada para qualquer coisa. Jesus, pelo contrário, via com outros olhos: a criança é sinal de pequenez, característica que já a torna protagonista do Reino, mas também simboliza a capacidade de aprendizagem, que é condição indispensável para o discipulado, e era exatamente o que estava faltando em seus discípulos, naquele momento. Mas Jesus não apenas aponta para a criança, mas a abraça. E o abraço é um gesto muito significativo: além de demonstração de afeto, significa identificação. Na cultura semita, abraçar alguém significa identificar-se com a pessoa abraçada, compartilhando não apenas sentimentos, mas anseios, projetos e sonhos. Neste caso específico do abraço de Jesus na criança, é também mais uma maneira de desarmar os discípulos de suas ambições. Ora, no projeto de poder que eles tinham em mente era pressuposto o uso da força e da violência, pois visavam expulsar os romanos; isso não seria possível sem a luta armada. Com o abraço na criança, Jesus mostra que seu projeto de Reino se edifica pelo amor e pela ternura.

Colocando a criança no meio, Jesus a tornou protagonista e centro da comunidade. Na criança estão representadas todas as pessoas vulneráveis, necessitadas e desprezadas, que devem ser acolhidas com preferência na comunidade cristã. De modo bastante claro, Jesus diz que acolher as pessoas desprezadas, representadas pela criança, é acolher a ele próprio e ao Pai que lhe enviou. Desse modo, podemos concluir que as pessoas consideradas pequenas, humildes, pobres, mulheres crianças e todas as categorias desprezadas pela sociedade são destinatárias e protagonistas do Reino, porque devem ocupar o centro da comunidade, uma vez que nelas se revelam Jesus e o Pai. A comunidade é, de fato, cristã quando, ao invés de excluir, acolhe e coloca em seu centro as pessoas historicamente condenadas e excluídas pela(s) sociedade(s). Em outras palavras, para uma comunidade/igreja considerar-se cristã deve ser, acima de tudo, casa de acolhida dos pequenos.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

domingo, setembro 15, 2024

REFLEXÃO PARA O 24º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 8,27-35 (ANO B)


A liturgia deste vigésimo quarto domingo do tempo comum nos coloca exatamente diante do centro temático e literário do Evangelho de Marcos: a confissão de fé de Pedro, na região de Cesareia de Filipe, em nome de todo o grupo dos discípulos, com o primeiro anúncio da paixão e a apresentação das condições essenciais para o discipulado – Mc 8,27-35. É importante ter em mente os três momentos que constituem o episódio, para compreendê-lo em sua totalidade. Às vezes, enfatiza-se somente a confissão de Pedro, o que torna a interpretação reducionista. Esse episódio é um divisor de águas na estrutura literária da obra e também no itinerário missionário e messiânico de Jesus, pois marca a conclusão do seu ministério na Galileia e o início do seu caminho para Jerusalém, onde acontecerão os eventos da sua paixão e morte, culminando com a ressurreição. É, portanto, o início de uma etapa decisiva, o que vai exigir muito mais convicção nos seus discípulos. Trata-se de um episódio comum aos três evangelhos sinóticos (Mc 8,27ss; Mt 16,13-19; Lc 9,18-22), sendo que a versão mais rica é essa de Marcos, pois possui mais traços de originalidade, uma vez que se trata do primeiro evangelho escrito. Além disso, é em Marcos que o referido episódio possui mais centralidade e relevância, a ponto de ser o marco divisor de toda a estrutura literária do livro.

Dividido em duas grandes partes, o Evangelho de Marcos tem como finalidade apresentar Jesus como o Cristo, ou seja, como o messias, e como o Filho de Deus, como já se percebe em seu primeiro versículo: «Início do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus» (Mc 1,1). Nessa afirmação, está a resposta à pergunta implícita “Quem é Jesus?”. Toda a primeira parte – capítulos de 1 a 8 – visa gerar na comunidade a certeza de que Jesus de Nazaré é o Messias, tão esperado por Israel ao longo dos séculos, embora não seja revestido das características tradicionais do messianismo nacionalista vigente, como previsto pelos judeus do seu tempo, incluindo seus próprios discípulos. Essa primeira parte é concluída com a proclamação solene de Pedro, em nome da comunidade dos discípulos, quando afirma “Tu és o Cristo”, em resposta à pergunta de Jesus sobre a sua identidade. O nome Cristo – em grego χριστóς – christós – significa messias, ungido. Já a segunda parte – capítulos de 9 a 16 – visa levar a comunidade a acreditar que o Messias Jesus é também o Filho de Deus, cuja certeza é dada pela confissão do centurião romano diante da cruz: «Realmente, esse homem era Filho de Deus» (Mc 15,39). A maturidade da comunidade, portanto, pode ser verificada pela sua capacidade de professar livremente essas duas verdades a respeito da identidade de Jesus de Nazaré, sem distorções, dando-lhe adesão até as últimas consequências. Nessa dupla profissão de fé, responde-se à pergunta “Quem é Jesus?”. O evangelho de hoje, obviamente, trata apenas da primeira parte da resposta.

Feitas as devidas observações a nível de contexto, olhemos especificamente para o texto de hoje, e a nossa primeira observação diz respeito à dimensão espacial: «Jesus partiu com seus discípulos para os povoados de Cesaréia de Filipe» (v. 27a). Essa informação possui grande relevância, considerando a localização e a importância da cidade de Cesaréia de Filipe. Ora, como Cesareia estava localizada no extremo norte da Galileia, em área já considerada pagã, esse dado representa uma espécie de isolamento dos discípulos em relação à ideologia nacionalista. Lá, eles estariam livres para emitir uma opinião isenta de qualquer influência ideológica e preconceitos. Com isso, o evangelista ensina que para reconhecer a verdadeira identidade de Jesus é necessário isolar-se dos tradicionais esquemas religiosos de Israel. Além disso, a cidade de Cesareia, como o próprio nome indica, era uma homenagem a César, um dos títulos de honra do imperador romano; logo, o reconhecimento de Jesus como messias, na “cidade de César” representava a oposição do projeto do Reino de Deus às forças de morte movidas pelo poder opressor romano. Portanto, estamos diante de um dos episódios mais ousados dos evangelhos: uma negação do messianismo nacionalista e um desmascaramento ao poder romano.

Com esse dado, o evangelista quer ensinar que as duas primeiras exigências para o seguimento convicto de Jesus é o rompimento com as ideologias, religiosas principalmente, e a coragem para confrontar toda forma de poder oposta ao Reino de Deus. Essa era a situação da comunidade do evangelista Marcos, na época da redação do evangelho: escrito fora da Palestina, quando a convivência com a comunidade judaica já tinha se tornado insuportável e, especificamente, na cidade de Roma, capital do império, em época de forte perseguição. Portanto, o evangelista, para fortalecer os cristãos da sua comunidade, narra esse episódio para mostrar que aquela situação presente já tinha sido prevista e vivida pelo próprio Jesus com seus primeiros discípulos. E assim ele mostra também como Jesus e os primeiros discípulos foram capazes de suportar e superar as principais forças opositoras, sem ceder a nenhum dos lados que visavam ofuscar seu projeto de Reino: o império romano e a sinagoga judaica. Ora, Jesus quer que seus discípulos e discípulas sejam sempre pessoas livres capazes de proclamar a Boa Nova do Reino em quaisquer circunstâncias, sem deixar-se influenciar pelas forças dominantes, sobretudo.

E, em situações de hostilidade, é necessário renovar as convicções para continuar o seguimento. Assim, Jesus faz uma espécie de consulta a respeito da sua própria imagem, não interessado em fama, mas somente para saber se estava sendo compreendido juntamente com a sua mensagem. É claro que a preocupação não era com sua imagem pessoal, mas com a eficácia do anúncio na comunidade e o grau de compreensão dos discípulos, após um tempo considerável de convivência com ele. Por isso, o texto diz que, ainda «No caminho, perguntou aos discípulos: “Quem dizem os homens que eu sou?”» (v. 27b). Aqui, o evangelista faz questão de evidenciar o caráter itinerante e a falta de comodidade no discipulado. Por isso, “o caminho” com os inerentes perigos é lugar de catequese e anúncio, o que também reflete a situação da comunidade do evangelista (anos 60 d.C.): expulsos da sinagoga, os cristãos já não tinham lugar fixo para a pregação, buscando espaços alternativos, como as casas, as estradas e até os cemitérios. Não obstante esses desafios, a clareza e a convicção do seguimento são fundamentais para a vida da comunidade. É interessante notar que somente Marcos localiza o episódio no caminho. Ora, como se sabe, dos evangelhos sinóticos (Mt; Mc; Lc), o que mais se interessa pelo caminho é Lucas, fazendo do caminho metáfora da vida e da missão. Contudo, somente Marcos diz que esse episódio aconteceu no caminho. Isso torna o dado ainda mais relevante, pois mostra o caminho como a realidade da comunidade, vivendo em plena itinerância, sem nenhum tipo de segurança.

A resposta dada pelos discípulos pergunta de Jesus, como opinião do povo, revela a falta de clareza que se tinha a respeito da sua identidade e, ao mesmo tempo, a boa reputação da qual ele já gozava, certamente entre o povo simples, com quem ele interagia e por quem mais se interessava em seu ministério. De fato, as pessoas simples – pobres e marginalizados em geral – eram as preferidas de Jesus. Ele fez clara opção preferencial por elas. Eis, portanto, a resposta: «Eles responderam: “Alguns dizem que tu és João Batista; outros, que és Elias, outros, ainda, que és algum dos profetas”» (v. 28). Como se vê, não resta dúvidas de que Jesus estava bem-conceituado pelo povo, pois era reconhecido como um grande profeta. De fato, os personagens citados foram grandes profetas, homens que acenderam a esperança de libertação, anunciando a libertação denunciando e denunciando todos os entraves para que essa acontecesse, sempre com muita fidelidade ao profeto de Deus. Mas Jesus é muito mais do isso. Ora, embora continuem sempre atuais, os profetas de Israel são personagens do passado. A comunidade cristã não pode ver Jesus como um personagem do passado que deixou um grande legado a ser lembrado. Isso impede a comunidade de fazer sua experiência com o Ressuscitado, presente e atuante na história. Contudo, é inegável que o povo já o estimava, mesmo que não tivesse muita convicção da sua verdadeira identidade, ainda mais considerando que seus familiares o tinham por louco e as autoridades religiosas o consideravam um enviado de satanás (Mc 3,20-30). O povo simples o via como um homem de Deus e isso é muito significativo.

A pergunta sobre o que as outras pessoas diziam a seu respeito foi apenas um pretexto, uma preparação para a pergunta decisiva aos discípulos. De fato, o que Jesus queria saber mesmo era o que seus discípulos pensavam dele. Afinal, já tinham um bom tempo de convivência. Inclusive, boa parte dos seus ensinamentos tinha sido dirigida exclusivamente aos discípulos, como até mesmo a explicação de algumas parábolas mais ambíguas (Mc 4,34). Ele esperava, portanto, que os discípulos lhe conhecessem melhor do que as outras pessoas. Por isso, lhes perguntou: «E vós, quem dizeis que eu sou?» (v. 29a). Ora, que as pessoas de fora o conhecessem apenas superficialmente, seria aceitável, mas, dos discípulos, ele esperava uma resposta mais profunda e convicta, afinal, estavam com ele dia e noite. E, realmente, aconteceu, a resposta de Pedro é muito profunda: «Pedro respondeu: “Tu és o Messias”» (v. 29b). Aqui, Pedro fala em nome do grupo. Essa é a resposta da comunidade, de quem Pedro se faz porta-voz, assumindo uma inegável liderança. Embora correta, a resposta de Pedro e da comunidade não é satisfatória, por isso, o evangelista diz que «Jesus proibiu-lhes severamente de falar a alguém a seu respeito» (v. 30). Dizer que Jesus é o Messias, é o mesmo que dizer o Cristo, como de fato ele era, já que as duas palavras possuem o mesmo significado. Trata-se de um título que indica, na literatura bíblica, a figura esperada para promover a libertação definitiva de Israel. Por isso, a resposta de Pedro é muito significativa. Porém, Jesus não confia nas convicções com que Pedro dá sua e, por isso, proibiu a ele e aos demais de falaram a seu respeito.

Chega a ser surpreendente a reação de Jesus. É verdade que ele proibia as pessoas curadas e exorcizadas de contar os milagres feitos (Mc 1,44; 7,36). Mas aqui a proibição é muito mais severa: ele proibiu de falar a seu respeito! Somente em duas ocasiões ele proíbe seus discípulos de falar: neste episódio e na transfiguração (Mc 9,9), e ambas estão profundamente relacionadas à paixão. Mas o que fez Jesus proibir Pedro de repetir essa fórmula foram as possibilidades de incompreensão que essa comportava. Ora, o Messias esperado pelos judeus, cujas expectativas foram alimentadas por muitos séculos, desde a época do exílio, era um guerreiro, um restaurador do reino de Davi. Essas expectativas diziam respeito a um único povo e religião, enquanto a mensagem de Jesus é universalista e acessível a todos os seres humanos, independentemente de qualquer cultura, etnia e religião. Portanto, podemos afirmar que Pedro deu a resposta correta – Jesus é mesmo o Cristo – mas não tinha ainda a consciência ideal – Jesus não veio para restaurar o reino de Davi, mas para implantar o Reino de Deus, como realidade universal. Na resposta de Pedro estava um projeto de poder nacionalista de poder, amparado pelo sistema religioso, com o qual Jesus não concordava. Ora, todo projeto de poder se torna mais perigoso quando é sustentado pelo discurso religioso. Jesus sabia disso, por isso seu projeto de Reino é totalmente contra-hegemónico.

Diante do equívoco dos discípulos, representados por Pedro, Jesus inaugura uma nova etapa da sua catequese, buscando revelar a sua verdadeira identidade de messias “às avessas”: o messias descendente de Davi, esperado pelos judeus, era um guerreiro, viria ao mundo para combater e matar os inimigos de Israel, restaurando o trono outrora ocupado por Davi e Salomão; Jesus ensina que sua missão é o contrário de tudo isso: «Em seguida, começou a ensiná-los, dizendo que Filho do Homem devia sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da lei; devia ser morto, e ressuscitar depois de três dias» (v. 31). Esse é o primeiro dos três anúncios da paixão presentes no evangelho. Ao invés de matar os inimigos, o Messias Jesus é quem padece e, por consequência, esse deveria ser também o destino dos seus discípulos. Não se trata de uma predestinação e nem adivinhação do futuro. É apenas consciência das opções feitas. Jesus sabia que, com seu projeto de Reino inclusivo, restaurando o que a religião e a sociedade tinham descartado, incluindo as pessoas que tinham sido marginalizadas, seu destino não poderia ser outro senão a cruz, a pena que o império destinava aos subversivos, como ele. De fato, a cruz era o destino dos rebeldes, os criminosos públicos, perturbadores da ordem. E Jesus sabia que sua fidelidade ao projeto do seu Pai o levaria a isso. No Evangelho de Marcos, ele já tinha sido “jurado” de morte pelos fariseus e herodianos (Mc 3,6), mas ainda não tinha se pronunciado a respeito, como o faz agora. É relevante notar que ele faz o anúncio da paixão como um ensinamento, e não apenas como uma informação dada. O evangelista emprega o verbo do ensino, da catequese e formação: “começou a ensiná-los”. É o verbo ensinar (em grego: διδάσκω – didásko). Com isso, ele ensina que, em Jesus, tudo é ensinamento, sua vida, incluindo a morte, constitui sua maior mensagem. Na expressão “começou a ensiná-los”, é relevante também o verbo começar (em grego ἄρχω – arko), que pertence à raiz etimológica “arquê” e indica princípio. Aqui, precisamente, significa que Jesus começou do princípio a ensinar. Quer dizer que, até então, seus discípulos ainda não tinham aprendido nada. Por isso, a catequese deveria começar do princípio, da estaca zero.

Na continuação, o evangelista diz que Jesus «dizia isso abertamente» (v. 32a). Também esse é um detalhe exclusivo de Marcos e bastante significativo. O termo grego traduzido por “abertamente” é “parressia” (παρρησίᾳ), e significa também liberdade, sinceridade, franqueza e firmeza. No mundo grego, era empregado para expressar o privilégio dos cidadãos livres, que podiam expor o que pensavam, nas assembleias civis, sem medo algum. Com isso, o evangelista apresenta Jesus como um homem livre, sem amarras nem medos. A sequência do texto revela a incompreensão de Pedro sobre a identidade de Jesus. Ora, fechado na mentalidade nacionalista, ele não aceitava um messias sofredor, por isso, «tomou Jesus à parte e começou a repreendê-lo» (v. 32b). Essa atitude de Pedro é absurda e inaceitável. O verbo repreender (em grego: ἐπιτιμάω – epitimáo) significa condenar por um erro, reprovar bruscamente. Trata-se de algo tão absurdo que Pedro não teve coragem de fazer na frente dos outros discípulos, mas o faz à parte. Fazendo isso, Pedro estava negando a sua condição de discípulo. Obviamente, Jesus não aceita a proposta de Pedro. Por isso, lhe chama para assumir o seu verdadeiro lugar: «Jesus voltou-se, olhou para os discípulos e repreendeu a Pedro, dizendo: “Vai para longe de mim, Satanás! Tu não pensas como Deus, e sim como os homens”» (v. 33). Jesus, como mestre, tem autoridade para “repreender” e condenar a atitude absurda de Pedro. E o faz com muita ênfase. Ora, em todo o Novo Testamento, esse é o único episódio em que uma pessoa é diretamente chamada de satanás. E essa pessoa é ninguém menos que Pedro. Com isso, constata-se que os evangelhos não pretendem idealizar ninguém, além de Jesus. Ao chamá-lo de satanás, Jesus está apenas dizendo que, com aquela postura, Pedro está sendo obstáculo para o Reino de Deus. O papel de satanás é dificultar a realização do Reino; e muitas vezes, como neste caso relatado por Marcos, quem age como satanás são membros da própria comunidade, inclusive os que ocupam lugares de destaque, como Pedro ocupava na primitiva comunidade cristã.

Literalmente, satanás significa o adversário, acusador, inimigo. E foi isso o que Jesus viu em Pedro, nesta ocasião. Contudo, Jesus não desiste das pessoas, ele acredita intensamente no ser humano, sempre dá uma nova oportunidade, promovendo humanização. Por isso, ao contrário do que a tradução litúrgica do texto expressa, Jesus não manda Pedro para longe, mas apenas para trás de si. Aqui, ele usa a mesma expressão do chamado vocacional: “segue-me” ou “vem atrás de mim” – empregada em Mc 1,17; 8,34 (em grego: ὀπίσω μου – opísso mu). Jesus repreende Pedro, mas não o expulsa do grupo, apenas diz “vai para trás de mim”, “assume teu lugar de discípulo”, ou simplesmente “segue-me”. Com isso, o evangelista ensina que a última palavra na comunidade deve ser sempre a de Jesus. O discípulo nunca deve tomar o lugar do mestre, assim como, na comunidade cristã, nenhuma pessoa pode ter a última palavra, pois essa é sempre de Jesus. Ele insiste para que Pedro reconheça seu lugar e assuma o estatuto de discípulo. Como protótipo do discípulo, Pedro revela determinação e fragilidade, ao mesmo tempo. E Jesus o quer, mesmo assim, com essas contradições e ambiguidades. Querendo desviar Jesus do caminho da cruz, Pedro não pensou apenas em Jesus, mas pensou nele mesmo. Ele sabia que a cruz era incompatível com a ideia de Messias que ele tinha dentro de si. E sabia também que o seu próprio destino deveria ser igual ao do seu mestre. Por isso, quis evitar, fazendo Jesus tirar essa ideia da cabeça. Mais do que preocupação com Jesus, Pedro demonstrou preocupação consigo mesmo. Jesus sabia, por isso o repreendeu como não feito com ninguém, nem fará. Nem aos seus adversários Jesus chamará de satanás.

Tendo esclarecido que não é um messias conforme as expectativas do povo e dos discípulos, Jesus esclarece as exigências para o seu seguimento. Ele está terminando o seu ministério na Galileia; em pouco tempo irá iniciar o caminho para Jerusalém, onde viverá o drama da paixão. Para continuarem no seu seguimento, é necessário que os discípulos tenham clareza do destino e dos riscos que estão correndo, como seguidores de um messias ao revés. Por isso, o esclarecimento, dessa vez dirigido também à multidão, de onde poderia sair novos discípulos que, de antemão, são advertidos: «Então chamou a multidão com seus discípulos e disse: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz a cada dia, e siga-me”» (v. 34). Antes de tudo, Jesus deixa claro que o discipulado é uma adesão pessoal e livre: “se alguém me quer seguir”; Ele não obriga e nem impõe; apenas propõe. E o seguimento exige rupturas. E a primeira ruptura é com a própria pessoa. Renunciar a si mesmo não significa odiar-se, mas é deixar de lado o egoísmo e todas as convicções pessoais que não estejam em sintonia com a mensagem libertadora do Evangelho; pretensões de poder, conquista e bem-estar pessoal, devem ser deixadas de lado. A cruz de cada dia corresponde às consequências de tal escolha. A cruz, como a mais temida das penas na época, era sinal de perigo; era a pena reservada aos considerados desordeiros, subversivos; com isso, Jesus deixa claro que os seus discípulos, à medida em que viverem o Evangelho com fidelidade, estarão em perigo constante, pois as opções do Evangelho contradizem os pretensões dos detentores de poder deste mundo, o que torna, inevitavelmente, de seus autênticos discípulos em subversivos, pessoas consideradas perigosas para o sistema. Também quanto ao tomar a cruz, Lucas se destaca em relação aos demais: somente nele se diz que a cruz deve ser tomada a cada dia, ou seja, é uma realidade do cotidiano, não um evento e muito menos um adorno; é a situação cotidiana de quem assume com seriedade o seguimento de Jesus.

O último versículo é um provérbio, no qual são reforçadas as exigências para o discipulado, com suas consequências, por meio de antíteses que visam dar ênfase ao ensinamento: «Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, vai salvá-la» (v. 35). Há aqui um jogo de palavras, recurso retórico bastante usado por pregadores itinerantes, e neste, especificamente, são contrapostos os verbos salvar e perder à luz da lógica reversa da messianidade de Jesus. Já na época da redação do Evangelho de Marcos, os cristãos eram considerados pessoas que tinham perdido a vida, conforme a lógica do sistema vigente, devido às renúncias que tinham feito e à disposição de abraçar a cruz como consequência das opções assumidas. Abrir mão de uma mentalidade individualista, deixando de lado projetos e ambições pessoais para viver a utopia do Reino, ou seja, aderir a um projeto igualitário, com relações gratuitas e movidas pelo amor, era visto como perda e loucura. Para Jesus, contudo, quem faz isso salva a sua vida, quer dizer, dá sentido à existência. A salvação não é simplesmente a preservação ou repouso eterno da alma, mas a vida e a mensagem libertadora de Jesus, o salvador. Se salva, portanto, quem assimila essa mensagem e faz dela vida.

Somos convidados hoje, de modo especial, a procurar conhecer cada vez mais a identidade autêntica de Jesus, para poder continuar no seu seguimento. Segui-lo é confrontar-se com as estruturas do mundo que impedem a realização, desde já, do Reino de Deus. O seguimento e o anúncio devem ser frutos de uma relação de intimidade com Ele e com o Pai. Sem convicção e conhecimento da sua pessoa, o anúncio tende a ser distorcido.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

sábado, setembro 07, 2024

REFLEXÃO PARA O 23º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 7,31-37 (ANO B)

O evangelho deste vigésimo terceiro domingo do tempo comum é Mc 7,31-37, texto que compreende o relato da cura de um surdo-mudo por Jesus, enquanto passava por terras pagãs e, por isso, consideradas impuras. É um texto exclusivo do Evangelho de Marcos, e que possui grande significado para a sua teologia e catequese. Isso se evidencia pela riqueza de pormenores que traz, desde a dimensão espacial até a forma como se dá a relação de Jesus com o personagem por ele curado. Os estudiosos observam, mas a simples leitura faz qualquer leitor perceber, que de todos os relatos de cura atribuídas a Jesus, esse é o mais rico em detalhes, o mais carregado de gestos simbólicos.  Inclusive, é muito provável que tenha servido de inspiração para o evangelista João ter construído o relato da cura do cego de nascença, justamente pela riqueza de detalhes presentes também ali (Jo 9,1-41). Trata-se, portanto, de um episódio paradigmático. Nele, Jesus revela o máximo da sua pedagogia do cuidado e da atenção, visando a humanização da pessoa e da humanidade de inteira. Para compreendê-lo de modo mais adequado, seguimos com a contextualização.

Tendo decretado a inutilidade e o fim das leis de pureza alimentar, como vimos no passado, ao refletir sobre o confronto com os fariseus e mestres de Lei de Jerusalém, que forma à Galileia para fiscalizar sua missão (Mc 7,1-23), Jesus aboliu, pelo menos para os seus seguidores, qualquer obstáculo que impedisse a relação com os povos pagãos. Ora, como nada do que é externo pode tornar a pessoa humana impura, como ele recordou, mas somente o que é gerado no coração, não pode mais haver impedimento para o contato físico e a convivência fraterna com as pessoas de outras etnias, culturas e religiões diferentes. Por isso, Jesus fez, logo em seguida àquele episódio, uma pequena campanha missionária em terras pagãs, cumprindo, também ali, sinais semelhantes aos já cumpridos na Galileia, com duas curas exemplares: a expulsão de um demônio da filha de uma mulher pagã, a siro-fenícia (7,24-30) – episódio saltado pela liturgia – e a cura de um surdo-mudo, episódio relatado no evangelho de hoje: 7,31-37.

Os relatos de milagres de Jesus relacionados com os olhos, os ouvidos e a língua têm um significado simbólico muito relevante, sobretudo no Evangelho de Marcos. Muito mais do que uma demonstração de poderes sobrenaturais de Jesus, são oportunidades para o evangelista chamar a atenção da comunidade cristã a respeito das suas necessidades concretas, com as deficiências que a impedem de um seguimento mais perseverante e fiel. Significa que, na comunidade cristã, todos os seus membros devem ter a capacidade e a oportunidade de ver, ouvir e falar, independentemente dos condicionamentos físicos, naturais e das condições sociais. As atitudes de ver, ouvir e falar constituem metáfora do que é ser discipulado de Jesus; são síntese também da liberdade humana, na perspectiva do evangelista. Além disso, constituem uma forma de conscientização, entre os membros da comunidade, sobre a responsabilidade comum na luta pela superação de todas as barreiras que impedem as pessoas de viverem com a justa e necessária dignidade, bem como um convite à inclusão, tolerância e respeito às diferenças individuais e culturais.

A grande densidade simbólica do episódio narrado no evangelho de hoje já se evidencia no primeiro versículo, com a descrição de uma dimensão espacial inusitada e bastante improvável, do ponto de vista geográfico. Eis o que diz o evangelista: «Jesus saiu de novo da região de Tiro, passou por Sidônia e continuou até o mar da Galileia, atravessando a região da Decápole» (v. 31). A forma como o versículo está estruturado no texto litúrgico não denuncia tanto a incoerência do percurso, mas em uma tradução mais criteriosa isso se torna muito evidente. Porém, como sabemos, os evangelhos não são livros de crônicas, mas de teologia. O importante nessa descrição é a passagem de Jesus por regiões pagãs, abrindo o horizonte da comunidade para essa necessidade. O retorno de Tiro e Sidônia para o mar da Galileia não prevê qualquer passagem pela Decápole, que ficava no outro lado. Contudo, a inconsistência do dado geográfico não reflete desconhecimento do evangelista, como alguns estudiosos já chegaram a defender, mas é consequência de suas intenções teológicas. Tanto Tiro, quanto Sidônia e as dez cidades da Decápole eram consideradas terras pagãs, pelos judeus, mas ficavam em lados opostos. Com isso, o evangelista diz que, ao contrário da Lei, o Evangelho não é destinado apenas a Israel, mas ao mundo inteiro, enquanto força de humanização. Nenhuma barreira cultural ou religiosa pode impedir a difusão do evangelho, a boa notícia que, de fato, comunica vida.

Após os indicativos espaciais controversos, o evangelista apresenta o personagem com quem Jesus irá interagir: um homem surdo, que falava com dificuldade. Pela língua original do texto, o grego, a expressão “falava com dificuldade” poderia ser substituída por gago ou mudo. Para Jesus e o evangelista, a situação desse homem é uma verdadeira parábola. Além de mostrar a necessidade de inclusão das pessoas portadoras dessas deficiências, o evangelista quer descrever a situação da comunidade: quando está fechada para ouvir a boa nova, essa se torna também incapaz de anunciar, ou seja, de falar do amor e da justiça propostos por Jesus. Essa precisa ser ajudada, como foi o personagem do evangelho: «Trouxeram então um homem surdo, que falava com dificuldade, e pediram que Jesus lhe impusesse a mão» (v. 32). O gesto de alguém ter levado o homem até Jesus revela a necessidade da comunidade para a experiência da fé. É importante que quem já conhece o Evangelho facilite para que outras pessoas também possam conhecê-lo, não obstante as dificuldades e barreiras. Nesse gesto de alguém levar o homem até Jesus o evangelista sintetiza a missão do/a catequista na comunidade. A surdez era sinônimo de maldição, conforme a mentalidade judaica, pois impedia a pessoa de ouvir a proclamação e a explicação da Torá; ora, sem as normas da Torá, o ser humano estava perdido, sem rumo, impedido de caminhar retamente. Portanto, ao colocar Jesus em contato com um homem surdo-mudo, o primeiro ensinamento transmitido pelo evangelista é a acolhida e a inclusão.

A acolhida de Jesus ao homem revela a grandeza da sua pedagogia do cuidado: ele olha para cada um em particular, e age de acordo com as reais necessidades, possibilitando a humanização, antes de tudo. A imagem da multidão no Evangelho tem sempre um papel ambíguo e, na maioria das vezes, negativo; representa a indecisão, a falta de compromisso, a superficialidade e a indiferença à proposta de vida de Jesus. Por isso, um passo importante para a conversão e adesão ao Evangelho, muitas vezes, é afastar-se da multidão, como mostra o evangelista, ao afirmar que «Jesus afastou-se com o homem, para fora da multidão; em seguida, colocou os dedos nos seus ouvidos, cuspiu e com a saliva tocou a língua dele» (v. 33). Esse afastar-se não significa puritanismo nem exclusão, mas a profundidade da relação estabelecida por Jesus: o contato com ele é pessoal, ele olha e toca em cada um e cada uma em particular, olha nos olhos, interage, cria relação. Afastar-se da multidão é, também, o primeiro passo para se tornar discípulo e discípula. A multidão, obviamente, não deve ser evitada, e Jesus nunca a evitou. Pelo contrário, sempre teve multidões ao seu redor. É da multidão que saem discípulos e discípulas. Por isso, aqui, o afastar-se indica a gestação de um novo discípulo, cujo primeiro passo é a humanização.

Os gestos descritos pelo evangelista são muito significativos, e é isso o que mais impressiona neste relato. Até então, Jesus tinha curado pessoas e feito exorcismos usando a palavra e o gesto de um simples toque apenas. Dessa vez, tudo é diferente. Ele toca nos ouvidos e cospe com a saliva. Isso supõe um contato mais demorado com o enfermo, e não um encontro acidental. Esses gestos significam o cuidado ímpar que Jesus dispensa a cada pessoa necessitada, e o evangelista ensina que essa deve ser a postura da comunidade. Ao tocar, ele deixa sua marca no outro, transmite a sua essência. É também um modo de denúncia à tendência de espiritualizar demais o cristianismo, problema vivido pela comunidade de Marcos e por tantas outras ao longo dos séculos. O cristianismo deve ser a religião do toque, do contato e do cuidado; só se cuida bem tocando, sem medo e nem preconceitos, reconhecendo a sacralidade do corpo. O toque é um modo de comprometer-se com a situação do outro. Ao tocar nos ouvidos, Jesus transmite o dom da escuta ao Evangelho. As palavras comprometedoras do Evangelho não conseguem ressoar em quaisquer ouvidos; antes de tudo, trata-se de um dom, como ele estava concedendo àquele homem. Do dom da escuta, nasce o do anúncio; é esse o sentido do tocar na língua com a saliva. Para a mentalidade semita, a saliva continha o espírito da pessoa; por isso, o evangelista quer afirmar que Jesus transmitiu seu espírito vivificador àquele homem, tornando-o apto também para o anúncio do Evangelho e para expressar suas necessidades, externar seus dramas. Com isso, ensina o evangelista que a comunidade não é espaço de silenciamento. Todos devem ter vez e voz na comunidade onde há seguimento autêntico de Jesus.

A sequência do episódio mostra, ainda mais, a sua importância. O evangelista diz que, Jesus «olhando para o céu, suspirou e disse: “Efatá!”, que quer dizer: “Abre-te!”» (v. 34). Ora, o detalhe de Jesus olhar para o céu é raro ao longo dos evangelhos. Ele não faz isso em qualquer situação. Esse gesto significa a oração e a comunhão com Deus, o Pai. É o reconhecimento dos limites das forças humanas e a confiança no divino, o que revela ainda mais a importância desse sinal. O imperativo “abri-te” (em aramaico: efatá) é uma ordem dada não apenas aos órgãos deficientes (ouvidos e língua), mas à pessoa em sua totalidade. Sem dúvidas, é um dos detalhes que tornam esse episódio tão atual, pois o leitor do Evangelho de Marcos, em todos os tempos, se torna também destinatário dessa ordem. O verbo grego usado pelo evangelista (διανοίγω – dianóigo) significa abrir completamente, escancarar, como deve ser o ser humano diante do Evangelho, para que esse possa ser um elemento transformador. Certamente, o homem curado tinha muito para desabafar, muitos dramas para compartilhar e denúncias a fazer, sobretudo pelo sofrimento causado pela deficiência, que na época era considerada maldição, o que tornava a pessoa marginalizada, excluída pela sociedade e a religião. De fato, para a religião judaica da época, deficiências como surdez, mudez e cegueira eram consideradas castigo de Deus, consequência do pecado da pessoa deficiente ou de seus pais. Por isso, com a cura Jesus também o reintegra à vida social, restituindo-lhe a dignidade.

À ordem de Jesus, segundo o evangelista, «imediatamente seus ouvidos se abriram, sua língua se soltou e ele começou a falar sem dificuldade» (v. 35). Isso revela a mudança radical que a palavra de Jesus é capaz de provocar no ser humano. É claro que não se deve considerar essa mudança como um toque de mágica. O texto quer dizer que a acolhida da palavra de Jesus transforma a pessoa. O evangelista insiste, com isso, na urgência com que a comunidade cristã deve estar atenta ao Evangelho. Por isso, esse episódio também uma parábola do processo catequético. Quem se deixa tocar por Jesus e ouve e abre-se à sua palavra se torna anunciador, fala sem dificuldade do seu projeto de Reino. É preciso ter ouvidos abertos e atentos para ouvir, e a língua livre para anunciar. Isso implica também uma abertura de horizonte e perspectiva, o que os judeus tinham dificuldade de assimilar. Ora, sendo aquele homem um pagão, o evangelista quer dizer que o anúncio do Evangelho não é privilégio de um povo, como era a Lei, mas um dom ofertado a todas as nações. Os critérios de etnia, religião e cultura não tem valor algum diante da palavra de Jesus. O que importa é ter coração disponível para o amor.

Como é praxe em Marcos, mais uma vez «Jesus recomendou com insistência que não contassem a ninguém. Mas, quanto mais ele recomendava, mais eles divulgavam» (v. 36). Esse pedido de Jesus nunca era atendido. Ele costumava pedir segredo quando cumpria um gesto prodigioso. Ele temia que sua fama de messias se espalhasse com distorções, embora nesse episódio essa ordem não tenha muito sentido, pois a fama de messias se espalhava entre os judeus e, nesse caso, ele se encontrava em território pagão. A ênfase aqui é dada na difusão da sua atividade também em terras pagãs, ou seja, fora de Israel. A conclusão é muito significativa, pois associa a obra de Jesus à obra do Deus criador: «Muito impressionados, diziam: “Ele tem feito bem todas as coisas: aos surdos faz ouvir e aos mudos falar”» (v. 37). Fazer bem todas as coisas é a característica do Deus Criador que, ao final de cada obra criada, contemplava que aquilo era muito bom (Gn 1). Fazer bem as coisas é, portanto, agir como Deus, cuja ação é sempre em favor do bem das pessoas e de toda a criação. Fazer os surdos ouvir e os mudos falar é a realização das expectativas messiânicas anunciadas pelo profeta Isaías (Is 35,5), o que significa uma nova criação. Assim, Jesus, restituindo a vida e a dignidade àquele homem, re-cria, à maneira do Pai, fazendo bem, e elevando a criação à sua máxima realização.

Como destinatários do evangelho, hoje, somos chamados, antes de tudo, a permitir que sejam escancarados nossos ouvidos a tudo o que Jesus ensinou, para que, vivenciando seu ensinamento, seja autêntico o nosso anúncio. Devemos também lutar para que seja reconhecido o lugar de fala de cada pessoa; que ninguém seja silenciado por posturas autoritárias e antievangélicas. Como comunidade de fé, devemos promover a libertação em todas as instâncias, sobretudo, identificando na multidão, quem necessita de cuidado e atenção especiais, como fez Jesus com o homem surdo-mudo. Que a ordem “abri-te” continue ecoando, para tornar nossas comunidades mais acolhedoras, compreensivas, inclusivas e abertas.

 

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA QUARESMA – LUCAS 15,1-3.11-32 ANO C

A liturgia do quarto domingo do tempo da Quaresma, deste ano C, nos dá a oportunidade de ler mais uma passagem exclusiva do Terceiro Evangel...