O evangelho
proposto para a liturgia deste vigésimo sexto domingo do tempo comum –
Mc 9,38-43.45.47-48 – é a continuidade daquele do domingo passado (Mc
9,30-37). Como se vê, alguns versículos foram saltados (vv. 44 e 46), deixando
o texto fragmentado, o que dessa vez não chega a comprometer o seu sentido. Esse
texto apresenta mais uma atitude de incompreensão e incoerência dos discípulos,
seguida de correção e catequese de Jesus. O contexto geral é o do caminho
decisivo de Jesus com os discípulos para Jerusalém, que culminará com os
eventos da paixão, morte e ressurreição. Mais do que um percurso geográfico,
esse caminho representa um itinerário formativo para os discípulos. É nele que
Jesus propõe a parte mais exigente da sua catequese, sobretudo no Evangelho de
Marcos. O episódio retratado no evangelho de hoje pertence à primeira etapa do
caminho, que foi a fase mais difícil, marcada pelos maiores conflitos entre
Jesus e os discípulos, gerando uma grande crise. Com muita clareza, o
evangelista Marcos diz que, mesmo estando próximos a Jesus, os discípulos se
tornam, nesse itinerário, seus verdadeiros opositores, com um comportamento
oposto ao que o Mestre ensinava. Embora Jesus já tenha, nesse contexto, feito
dois anúncios explícitos da sua paixão (Mc 8,31-33; 9,30-32), os discípulos
continuam ignorando, preferindo alimentar seus próprios anseios de grandeza,
poder e exclusivismo, colocando-se, assim, em oposição a Jesus. Nisso consiste
a grande crise instaurada.
As principais
incoerências dos discípulos denunciadas no evangelho de hoje são o
exclusivismo, a intolerância, a tendência ao fechamento e fanatismo. Tudo isso
vem expresso logo no primeiro versículo: «João disse a Jesus: “Mestre, vimos
um homem expulsar demônios em teu nome. Mas nós o proibimos, porque ele não nos
segue”» (v. 38). Como se vê, a atitude e a fala do apóstolo João
revelam uma mentalidade contrária a tudo o que Jesus já tinha vivido e ensinado
até então. Para compreender melhor tal atitude, é importante recordar que, no
momento da formação do grupo dos Doze, João e seu irmão Tiago receberam o nome
de Boanerges, que significa “filhos do trovão” (Mc 3,17), em alusão ao
temperamento difícil dos dois. Ambos se destacavam pela arrogância,
intolerância e ambição. Além do episódio de hoje, os evangelhos mostram mais
duas ocasiões em que se evidenciam as características negativas dos filhos de
Zebedeu: quando pedem a Jesus para ocuparem os primeiros lugares no Reino,
sentando-se um à direita e outro à esquerda (Mc 10,35-40), e quando queriam
eliminar os samaritanos de um povoado com fogo, somente porque não os acolheram
(Lc 9,51-55). Juntamente com Pedro, João e Tiago eram os discípulos mais
difíceis de lidar no grupo; por isso, quando Jesus ficava somente com eles,
como no episódio da transfiguração (Mc 9,2-8; Mt 17,1-8; Lc 9,28-36), não se
tratava de privilégio, mas de necessidade. Pelo comportamento e temperamento, eles necessitavam
de uma catequese mais intensa, por isso, também sofriam as repreensões mais duras
A atividade de
“expulsar demônios” nos evangelhos, e principalmente em Marcos, significa a
promoção da liberdade e da dignidade das pessoas. É, acima de tudo, uma atitude
de humanização. Mais do que uma demonstração de poder, a expulsão de demônios
nos evangelhos revelam o potencial humanizante do amor de Deus pelo mundo com
as pessoas que nele habitam. Trata-se de abrir as portas do Reino de Deus,
tornando-o acessível à humanidade inteira. É a difusão da boa nova que
transforma vidas, rompendo com as estruturas de morte e opressão vigentes em
qualquer sistema. Uma atividade assim, de promoção plena do bem das pessoas,
não pode ser estranha ao programa e à mensagem de Jesus, independentemente de
pertença ou não a algum grupo ou movimento denominado cristão. Quem faz o bem
ao próximo, está em sintonia Deus. Ao afirmar que o homem estava «expulsando
demônios em nome de Jesus», o evangelista evidencia que ele estava em
sintonia e comunhão plena com Jesus, mesmo sem pertencer ao grupo dos Doze, e
nem os seguir. Logo, a proibição imposta por João denuncia o fechamento e o
fanatismo dele e dos seus companheiros de grupo. Uma atitude dessas coloca em
risco a eficácia e a credibilidade do Evangelho.
Tão grave
quanto a atitude é a justificativa de João: ele e seus companheiros de grupo
proibiram o exorcista autônomo de expulsar demônios em nome de Jesus porque não
seguia a eles, aos discípulos mesmos. Ele não alega que aquele homem não seguia
Jesus, mas que não “os seguia”, ou seja, não seguia aos discípulos, não pertencia
ao gueto deles. Além da tentativa de monopolizar o poder, eles se colocavam no
lugar de Jesus, reivindicando o seguimento para eles próprios. A expressão “nós
o proibimos” denuncia que não foi uma atitude isolada de João, mas do grupo dos
Doze. É importante recordar que o evangelista faz memória do episódio pensando
na sua comunidade e nas comunidades futuras. Ora, na época da escrita do Evangelho, as comunidades passavam por
grandes transformações, vivendo novas experiências de organização, à medida em
que cresciam e novas gerações eram formadas. Com isso, havia uma forte
tendência à hierarquização. As lideranças queriam monopolizar o “nome de
Jesus”. Por isso, o evangelista faz a advertência, ensinando que nenhuma pessoa
e nenhuma instituição podem controlar o nome de Jesus, pois sua mensagem
libertadora é universal, visando a humanização de todo o mundo. E é o próprio
Jesus quem não aceita ser controlado por ninguém. É normal e necessário que as
comunidades se organizem, que tenham lideranças, mas com a clara consciência de
que o “nome de Jesus” extrapola os limites de qualquer religião, igreja, grupo
ou movimento.
Diante do absurdo
verificado na fala de João, a reação de Jesus não poderia ser outra senão de reprovação
total e repreensão: «Jesus disse: “Não o proibais, pois ninguém faz
milagres em meu nome para depois falar mal de mim. Quem não é contra nós é a
nosso favor”» (vv. 39-40). Ora, fazer qualquer coisa em nome de Jesus,
como expulsar demônios e outros tipos de milagres, significa, na linguagem do
evangelista, estar em plena sintonia com ele; só faz isso quem reconhece a sua
autoridade e conduz a vida de acordo com o seu Evangelho, quem aceita seus
ensinamentos e os recebe como instrumento de libertação. Ninguém pode ser
impedido de fazer o bem, em nome de ninguém, muito menos quando for em nome de
Jesus, que veio ao mundo para fazer o bem a todas as pessoas, sobretudo as mais
necessitadas de libertação. Ora, proibir alguém de agir em nome de Jesus é
querer aprisionar a sua mensagem e delimitar a ação do Espírito Santo, o que é
impossível. Dos discípulos, exige-se abertura, compreensão e consciência de que
a mensagem do Evangelho não é propriedade de nenhuma instituição religiosa, mas
dom acessível a quem tem sede de justiça e de amor. Com um simples, embora
profundo, provérbio, Jesus fecha a questão: «Quem não é contra nós é a
nosso favor». Ser contra, significa optar pelo mal e fechar-se
aos valores do Reino; quem não faz isso, já está, consequentemente, a favor e,
portanto, apto a agir em seu nome, independentemente de pertencer ou não a
algum grupo religioso. Os sinais distintivos da pertença a Jesus são apenas
estes: amar, fazer o bem e não compactuar com mal, jamais.
Como sempre,
as repreensões de Jesus aos discípulos são seguidas de catequeses mais
aprofundadas e práticas, o que se acentua ainda mais neste contexto do início
do caminho, marcado por uma grande crise entre eles: «Em verdade eu vos
digo: quem vos der a beber um copo de água, porque sois de Cristo, não ficará
sem receber a sua recompensa» (v. 41). Embora seja um gesto,
aparentemente, simples, dar um copo de água era, na cultura semita, uma das
maiores demonstrações de hospitalidade e acolhida. A recompensa, aqui, não
significa um prêmio no futuro, mas a pertença a Jesus e sua comunidade; é a
comunhão com ele. Essa pertença não depende de discursos ou formulações
doutrinárias, mas de gestos e atitudes que revelem amor e justiça, como dar um
simples copo de água a uma pessoa sedenta. O que importa, de acordo com o
evangelista, é que tudo seja feito em “nome de Jesus”, ou seja, em comunhão com
ele, motivado pelo seu amor. Aqui, o ensinamento é dirigido exclusivamente aos
discípulos: eles não devem esperar muita coisa, nem grandes adesões; basta um
simples gesto de reconhecimento da pertença a Cristo, para que os destinatários
sejam recompensados, ou seja, entrem em comunhão com sua vida. Merece atenção o
fato de ser essa a primeira vez que Jesus aplica a si o título “Cristo”, que
significa Messias. Até então, esse título sido empregado apenas duas vezes, no
Evangelho de Marcos: pelo narrador, logo na abertura do livro (1,1) e por Pedro,
no caminho de Cesareia (8,29). Com ele, Jesus assume sua verdadeira identidade
messiânica, e ensina que seus discípulos não receber mais do que o necessário, sem
privilégios.
Na sequência,
a catequese é continuada com a retomada da importância dos “pequeninos” para o
Reino de Deus, já introduzida no domingo passado com o exemplo da criança. Eis
o que diz o texto de hoje: «E, se alguém escandalizar um destes
pequeninos que creem, melhor seria que fosse jogado no mar com uma pedra de
moinho amarrada ao pescoço» (v. 42). Escandalizar, aqui, é criar
obstáculo ou impedimento à fé e à vida digna. Os maiores exemplos de escândalo
numa comunidade são: autoritarismo, ambição, fanatismo, intolerância e
indiferença aos “pequeninos”. O termo “pequeninos” (em grego: μικρός – mikrós), é a síntese de todas as categorias de pessoas vulneráveis e
historicamente excluídas: pobres, mulheres, pecadores, enfermos, etc. Quando os
membros da comunidade cristã são motivos de escândalo para essas pessoas, isto
é, quando não favorecem a acolhida e a inclusão, Jesus os reprova e adverte
severamente. Por sinal, os evangelhos mostram que Jesus tolerava muitas
incoerências nos seus discípulos. Ele conhecia perfeitamente os limites da
condição humana. A única a única coisa que ele não tolerava era a indiferença e
o desprezo aos pequeninos, os seus prediletos. A sorte de quem os rejeita é
trágica. Por isso, emprega-se uma linguagem bastante severa para denunciar e
advertir os seus discípulos e, sobretudo, para motivá-los a manter os
“pequeninos” como prioridade na comunidade.
Para a
mentalidade semita, ser jogado no mar com uma grande pedra amarrada ao pescoço
era a certeza de que esse corpo jamais seria resgatado; assim, não poderia
receber uma sepultura digna e, consequentemente, não teria sequer direito à
ressurreição dos mortos no último dia, como acreditavam os judeus. Esse destino
exclui qualquer possibilidade de salvação. O mar era símbolo do caos, a morada
do mal. Por isso, dentre as tantas possibilidades de morte, a mais temida pelos
judeus era o afogamento no mar, pois significava ser engolido pelo mal. Jesus
emprega tal imagem para mostrar a gravidade do “escândalo aos pequeninos”. A
chamada de atenção aos discípulos continua com a demonstração de certas
ocasiões, através dos principais membros do corpo, que podem levar os
discípulos a causarem “escândalo” aos pequeninos. A mão, o pé e o olho (vv.
43-47) eram considerados os membros do corpo responsáveis pelo bom ou mau
comportamento das pessoas, segundo a mentalidade semita. Eram, portanto, os
membros essenciais. As mãos, representam todo o agir da pessoa; quando a pessoa
não age conforme o Evangelho, é melhor não as ter, conforme essa mentalidade.
Os pés representam a conduta, podendo levar a pessoa por caminhos justos e
injustos; é melhor não ter pé do que andar por caminhos errados. O olho, como
“lâmpada do corpo” (Mt 6,22) é a porta de entrada dos sentimentos e desejos
alimentados no coração da pessoa. Tudo o que é processado no coração,
sentimentos bons e maus, passa pelo olho. Diante disso, se tais membros, que
são os essenciais para a vida de uma pessoa, forem usados para o mal, é melhor
o ser humano privar-se deles.
É claro que,
com o uso destas imagens tao fortes, Jesus não recomenda a amputação de membros
do corpo, mas adverte que a vida não tem sentido se não for toda voltada para o
bem, sobretudo o bem dos pequeninos, as pessoas mais necessitadas. Também não
está apontando o destino futuro, nem descrevendo a vida “pós-morte”. Porém, não
vale a pena ter um corpo são e uma vida perdida, sem sentido, o que corresponde
ao ser jogado no “fogo que não se apaga”. Essa expressão funciona
como explicação para o termo grego que o lecionário traduz por inferno. Porém,
é uma tradução insuficiente. O texto original não fala de inferno, mas de
“geena” (em grego: γέεννα - gheena).
É uma palavra estranha, mas poderia ser mantida, já que o próprio texto fornece
a explicação: “fogo que não se apaga”. A “geena” era um vale, ao sul de
Jerusalém, onde ficava o lixão da cidade; era sinônimo de imundície e de fogo
constante. Inclusive, corpos humanos já tinham sido lá sacrificados, em cultos
pagãos, por isso, esse local passou a ser símbolo de condenação completa para
os judeus. Além do fogo, lá predominava também o mau cheiro constante. Era um
símbolo concreto da negação da vida. Por ser depósito de todo o lixo de uma
grande cidade, numa época em que o saneamento não era sequer imaginado, todos
os tipos de resíduos iam para lá, por isso possuía um “fogo que não se
apaga” (v. 48). “Geena” e fogo são, portanto, imagens de uma vida sem
sentido. E o que dá sentido à vida é a adesão à pessoa de Jesus, com todas as
exigências e consequências que o seu seguimento implica.
Que o
evangelho de hoje, portanto, nos ajude na renovação das convicções do
seguimento de Jesus. Que imprima em nós cristãos e cristãs um espírito de
abertura, tolerância e acolhida, levando-nos a reconhecer que, também em outras
experiências há seguimento e presença de Jesus. Onde há fanatismo e
intolerância, não há seguimento nem discipulado. O critério de identificação
com ele não é um vínculo institucional, mas a prática do bem, sobretudo aos
pequeninos e carentes de humanização, para que sejam humanizados e emancipados.
Pe. Francisco
Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN