sábado, dezembro 14, 2024

REFLEXÃO PARA O 3º DOMINGO DO ADVENTO – LUCAS 3,10-18 (ANO C)

 


Todos os anos, a liturgia do segundo e terceiro domingos do advento evidencia a figura de João, o Batista ou simplesmente “o que batizava”, apresentando-o como o profeta que antecede imediatamente a missão de Jesus e, desse modo, a prepara. De fato, no itinerário catequético-espiritual proposto pelo advento, conhecer a missão e a mensagem de João é imprescindível, pois ele se aproxima verdadeiramente de Jesus. Por isso, ficou conhecido como o profeta “precursor do Messias”. Neste ano, como a liturgia do segundo domingo foi substituída pela Solenidade da Imaculada Conceição, ficou apenas este terceiro domingo para a apresentação de João como o profeta da preparação imediata da missão de Jesus. Na verdade, o evangelho de hoje – Lc 3,10-18 – mostra que João não apenas prepara, mas até antecipa a missão de Jesus. Com efeito, Lucas é o evangelista que dá mais destaque à missão de João, colocando-o sempre em paralelo com Jesus, desde o anúncio do nascimento. É claro que ele faz isso para evidenciar a superioridade de Jesus, mas não deixa de ser uma valorização da figura de João na sua obra.

O evangelho que deveria ter sido o do domingo passado – Lc 3,1-6 –, fazia uma ampla introdução à missão de João: começava afirmando que a Palavra de Deus lhe fora dirigida no deserto, nos tempos do imperador Tibério e dos sacerdotes Anás e Caifás (Lc 3,1-2), confirmando as opções de Deus pelas margens e a intolerância com os sistemas de poder vigentes na época. Faz parte do estilo literário de Lucas apresentar os eventos da história da salvação dentro da história geral, a fim de mostrar que é no mundo concreto com seus fatos, por contraditórios que seja, que Deus liberta e salva. Isso significa também uma opção teológica clara. Ele recorda os grandes personagens do mundo do império e da religião judaica, mas mostra que é aos pequenos que Deus se dirige. Naquela ocasião, ele afirmava que João pregava um batismo de conversão, se auto apresentando como a voz de quem clama no deserto (Lc 3,3-6), citando o profeta Isaías (Is 40,3-5) como fundamentação. O conteúdo da pregação de João foi saltado pela liturgia (Lc 3,7-9), mas, pela reação dos seus ouvintes no evangelho de hoje, é possível imaginar o quanto repercutiu, causando grandes efeitos em quem o escutou.

É claro que nem todas as pessoas que ouviram João gostaram da sua pregação, afinal, até de “raça de víboras” ele chamou os seus ouvintes (Lc 3,7); contudo, é certo que muita gente se interessou pelo seu ensinamento, percebendo que o modelo vigente de religião, controlado pela hierarquia do templo de Jerusalém, conivente com a dominação romana, já não permitia um encontro verdadeiro com Deus; o templo tinha se transformado em mercado, como Jesus vai denunciar, no ápice de seu ministério. Por isso, muitas pessoas que escutaram João, interessadas em conhecer mais o seu programa, o procuraram, perguntando “o que devemos fazer?”para assimilar melhor o novo jeito de relacionar-se com Deus. A curiosidade dessas pessoas mostra a decadência da antiga religião e como os caminhos estavam, realmente, sendo aplainados para a vinda do Senhor ao encontro da humanidade. O evangelho de hoje apresenta a reação de três grupos de ouvintes do profeta precursor – multidões, cobradores de impostos e soldados – e as respostas concretas do próprio João a esses grupos. Assim, de uma pregação ampla e generalizada, João passa a uma mais particularizada, de acordo com as situações específicas de quem lhe procurava.

Feita a devida introdução contextualizadora, olhemos, então, para o texto de hoje, que começa afirmando que «As multidões perguntavam a João: “Que devemos fazer?”» (v. 10). Por multidões (em grego: ὄχλοις – oklois), supõe-se que se trate de um grupo amplo e diversificado, mas composto majoritariamente por gente simples e pobre, como as multidões que seguirão Jesus posteriormente. A pergunta sobre o que fazer reflete um sincero desejo de acolher a proposta de conversão apresentada por João, para entrar na nova dinâmica da salvação. E chega a ser surpreendente a resposta de João: «Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida faça o mesmo!» (v. 11). Ora, ele estava anunciando um batismo de conversão e, na época, o que os líderes religiosos exigiam como sinais de conversão era o jejum, a intensidade na oração, a penitência, a oferta de sacrifícios no templo, uma solene profissão de fé e, por último, a esmola. A resposta de João foi uma novidade para as multidões, embora estivesse plenamente alinhada à pregação dos profetas do Antigo Testamento, o que reforça o quanto ele antecipa, aqui, a missão de Jesus. É claro que a mensagem dos antigos profetas nunca perdeu a validade, mas tinha sido ofuscada pela hierarquia sacerdotal, interessada em lucrar às custas dos sacrifícios oferecidos no templo. Alimento e vestimenta são necessidades básicas do ser humano, coisas do cotidiano, e conversão é algo concreto, diz respeito ao modo de gerir a vida e a relação com o próximo; assim, é convertido quem não pensa em acumular, quem partilha com o próximo, não o que lhe sobra, mas aquilo de que o próximo necessita. João parte do que é mais simples: roupa e alimento, para mostrar que a partilha é indispensável, até mesmo para os que tem pouco.

Na sequência, o texto apresenta, de modo surpreendente, membros de dois grupos específicos também sedentos de conversão e interessados pela proposta de João: cobradores de impostos e soldados (vv. 12-14). Aqui está uma das grandes novidades do Evangelho de Lucas. É claro que nem todos os cobradores de impostos e soldados estavam ali para ouvir o Batista; certamente, muitos tinham ido até para vigiá-lo. Toda vez que surgia um novo pregador e multidões se reuniam para ouvi-lo, o aparelho repressor do estado (império romano), em conluio com a religião, ligava o sinal de alerta e passava a monitorar, a fim de evitar possíveis motins. Por isso, é muito importante o interesse de cobradores de impostos e soldados pela pregação de João. Provavelmente, foram para espioná-lo e terminaram se interessando pela pregação, que consistia num forte convite à conversão. Ora, Cobradores de impostos e soldados eram as profissões mais odiadas da época, na Palestina. Ambos os grupos, eram colaboradores diretos da administração romana e, por isso, muito mal vistos pelo povo, inclusive excluídos da religião, principalmente os cobradores de impostos. Na hierarquia socioeconômica, estavam bem posicionados, mas religiosamente eram pessoas marginalizadas. Somente Lucas apresenta esses grupos interessados em conversão, o que reforça a sua teologia da inclusão e da universalidade da salvação: ninguém é excluído pela condição social, étnica ou religiosa; a salvação é oferecida a toda a humanidade, e não a grupos privilegiados específicos. De fato no decorrer da sua obra, Lucas vai mostrar a salvação sendo acolhida por cobradores de impostos e soldados (Lc 5,27-39; 19,1-10; At 10,1-48).

A pergunta dos cobradores de impostos e dos soldados é a mesma das multidões: “O que devemos fazer?”. Essa pergunta funciona como um refrão neste trecho do evangelho, e como um convite do evangelista aos seus leitores de todos os tempos para também se perguntarem sobre o que devem fazer para viver o Evangelho e fazer o Reino de Deus acontecer. E o evangelista mostra que todos tem responsabilidade e devem colaborar nesse processo.  Ninguém deve sentir-se isento de responsabilidade na construção do Reino de Deus, e nem excluído. Também dos cobradores de impostos, João não exige penitência nem sacrifícios, nem qualquer gesto devocional, mas apenas a prática de justiça: «Não cobreis mais do que foi estabelecido» (v. 13). Por serem representantes do opressivo sistema romano de dominação, os cobradores de impostos eram automaticamente mal vistos, e a população tinha toda razão em vê-los negativamente. Ora, os impostos que Roma cobrava já eram bastante altos, além disso, os cobradores ainda exigiam quantias muito maiores do que as estabelecidas, assim, além do salário, ainda lucravam com a exploração, pois o que cobravam acima dos valores legais ficava para si; eram reconhecidos publicamente como corruptos e ladrões profissionais. A resposta de João a eles também é surpreendente: basta agir corretamente. Não deveriam abandonar a profissão, pois dependiam dela para sobreviver; deviam, no entanto, exercê-la com justiça e ética.

A exigência aos soldados tem o mesmo sentido: «Não tomeis à força dinheiro de ninguém, nem façais falsas acusações; ficai satisfeitos com o vosso salário!» (v. 14). Como se vê, também a eles, João não pede penitência, nem devoção, nem que abandonem a profissão, mas exige que a exerçam com justiça, retidão e sem violência. Muitas vezes, os soldados trabalhavam juntos com os cobradores de impostos, talvez por isso Lucas tenha recordado e mencionado os dois grupos em paralelo. Ora, como os cobradores de impostos exageravam nas taxas, cobrando além do estabelecido, muitas pessoas se recusavam a pagar e, diante disso, os cobradores pediam ajuda aos soldados, tomando o dinheiro à força, e depois repartiam entre si o valor cobrado além do estabelecido oficialmente. Quando as pessoas não tinham como pagar o exigido de maneira alguma, os soldados praticavam violência, inclusive violentando as mulheres e as crianças. Havia abuso de poder, corrupção generalizada e conivência entre os dois grupos. De todo o aparato administrativo, os cobradores de impostos e os soldados eram os que estavam diretamente em contato com o povo, por isso eram muito rejeitados e, sem dúvidas, davam muitos motivos para isso. Por isso, eram totalmente excluídos pela religião, inclusive o templo tinha seus próprios guardas, porque os soldados romanos eram considerados impuros e não podiam entrar lá. Com maestria, Lucas mostra João antecipando claramente a missão de Jesus. O que João pede aqui, como sinal de conversão, é praticamente o mesmo que Jesus exigirá como critério de pertença ao Reino de Deus.

A expectativa pela chegada do messias era muito grande, inclusive muitos pregadores, vez por outra, se apresentavam como tal; por isso, muitos perguntavam se João não seria o próprio messias (v. 15), até pela novidade da sua pregação. De acordo com o evangelista, o próprio João esclareceu não ser ele o messias, em atitude de humildade e reconhecimento do seu verdadeiro papel: «Eu vos batizo com água, mas virá aquele que é mais forte do que eu. Eu não sou digno de desamarrar a correia de suas sandálias. Ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo. Ele virá com a pá na mão: vai limpar sua eira e recolher o trigo no celeiro; mas a palha ele a queimará no fogo que não se apaga» (v. 16-17). Esse esclarecimento era muito necessário, tanto para os ouvintes diretos da pregação de João, quanto para a comunidade do evangelista e os futuros leitores de sua obra, como nós. O próprio Lucas registra, no segundo volume de sua obra – Atos dos Apóstolos –, que o batismo de João continuava sendo realizado como se fosse o batismo cristão, pois as pessoas não compreendiam a diferença entre um e outro, e isso gerava confusão em algumas comunidades, como em Éfeso, por exemplo (At 19,1-7). Por isso, a necessidade de fazer a distinção com o uso de imagens tão fortes. Ora, o movimento de João não desapareceu automaticamente após a sua morte; tudo indica que continuou e cresceu, chegando até a rivalizar com o movimento de Jesus. Após a morte de cada um, houve momentos de tensão em que os seguidores de cada um disputavam sobre qual era o maior dos dois mestres. Isso justifica a insistência dos evangelistas, sobretudo de Lucas, em mostrar o próprio João reconhecendo a superioridade de Jesus.

O batismo de João, com água, era apenas um sinal, um alerta sobre o tempo novo que estava por vir; batismo por excelência é o de Jesus, com o Espírito Santo; esse batismo é definitivo, é o cumprimento de profecias e critério para Israel e toda a humanidade voltar à condição de povo de Deus (Ez 36,24-28), e ao mesmo tempo sinal de universalização da salvação: o Espírito Santo, como superação e substituição da Lei, dará condições, ao ser acolhido, para que todos os povos sejam contemplados com a libertação inaugurada por Jesus. O uso das imagens da pá e do fogo não é de julgamento, mas significa a força da mensagem de Jesus (v. 17); a ele não interessam as aparências, mas somente os frutos; assim como só fica o trigo no celeiro, só pertence ao Reino quem vive segundo a justiça e o amor; a palha a ser queimada é a injustiça, a indiferença, o orgulho, a ambição e todos os males que afetam a dignidade humana, e não as pessoas. O “fogo que não se apaga” não é sinal de condenação, significa a falta de sentido para a existência, como é a vida de quem não faz opção pelo Reino.

Conclui o evangelista afirmando que «ainda de muitos outros modos, João anunciava ao povo a Boa-Nova» (v. 18). Aqui Lucas reforça que a pregação de João constituía também uma boa notícia, como será a de Jesus. Essa boa notícia era, sobretudo, a possibilidade de cada pessoa se relacionar com Deus sem depender das imposições do sistema religioso vigente. Fazer parte do Reino de Deus não depende da autorização de um sistema religioso, mas da atitude interior e decisão pessoal de cada um e cada uma que descobriu «o que é preciso fazer». E o que realmente é preciso fazer é humanizar-se e ajudar na humanização do mundo, a partir da mensagem de Jesus. É importante perceber e recordar que a nenhum dos grupos que o procuraram João pediu para se tornarem pessoas mais religiosas e devotas; pediu apenas que se tornassem pessoas melhores, se solidarizando com o próximo e praticando a justiça. A religião só tem sentido se nos ajudar a fazer isso!

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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