sexta-feira, janeiro 31, 2025

REFLEXÃO PARA A FESTA DA APRESENTAÇÃO DO SENHOR – LUCAS 2,22-40



Há exatos quarenta dias do Natal, a Igreja celebra a Festa da Apresentação do Senhor, substituindo, neste ano, a liturgia do quarto domingo do tempo comum. Apesar de já ser celebrada em pleno tempo comum, essa festa funciona como a conclusão definitiva do natal e um pré-anúncio da páscoa. É uma festa muito antiga. Surgiu no Oriente, ainda no quarto século da era cristã, com o título de “festa do encontro”. No Ocidente, passou a ser celebrada no século sexto com o mesmo título, o qual foi mudado no décimo século para “festa da purificação da Bem-aventurada Virgem Maria”, quando passou a ser uma festa mariana. O título atual – festa da apresentação do Senhor – é bem recente: foi introduzido com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, recolocando o Senhor como centro e, assim, recuperando o seu sentido cristológico. No Oriente, continua sendo celebrada com o título original de “festa do encontro”. O evangelho desta festa é sempre o mesmo: Lc 2,22-40. Trata-se do relato do episódio conhecido como apresentação de Jesus no templo de Jerusalém, texto que fundamenta e justifica o título da festa. 

De início, é importante recordar que, com este relato, o evangelista não pretendia apresentar um tratado sobre a família, mas revelar a identidade messiânica de Jesus e, ao mesmo tempo, a sua “normalidade”, mostrando que ele não caiu do céu, mas nasceu e criou-se no seio de uma família judaica comum, condicionado aos costumes e leis da sua época, embora capaz de contradizê-los e até negá-los, quando for necessário, como será demonstrado ao longo do Evangelho. Trata-se, portanto, de um texto de alta concentração cristológica, no qual convergem diversos elementos do Antigo Testamento para a novidade de Jesus, como preparação para o seu reconhecimento como salvador universal e “luz de todas as nações (v. 32). Inserido no chamado “evangelho da infância” de Lucas (Lc 1–2), faz parte de uma sequência de episódios iniciada com o relato do nascimento de Jesus (Lc 2,1-7): o anúncio do anjo aos pastores (Lc 2,8-12), o canto dos anjos glorificando a Deus (Lc 2,13-14), a visita dos pastores à manjedoura em Belém (Lc 2,15-20), até a circuncisão e imposição do nome Jesus (Lc 2,21).

Além do relato da apresentação do menino e da purificação da mãe, como cumprimento dos preceitos da Lei (vv. 22-24), o texto compreende também os testemunhos de Simeão (vv. 25-35) e Ana (vv. 36-38), o que lhe confere uma riqueza ainda maior. De fato, o simples cumprimento dos preceitos da Lei não revela nada de extraordinário, pois todas as famílias da época faziam a mesma coisa. Inclusive, a intenção do evangelista, ao mencioná-lo, é mostrar a inserção de Jesus na história, na vida concreta de um povo, vivendo o seu cotidiano. O que, de fato, desconcerta e apresenta grande novidade neste texto são os testemunhos de Simeão e Ana, enriquecendo a cristologia do texto com suas respectivas revelações sobre a identidade messiânica de Jesus. Inclusive, o ponto alto do episódio é o cântico de Simeão. Na conclusão, o autor fala do retorno de Jesus com seus pais à vida cotidiana de Nazaré e apresenta uma pequena síntese do seu crescimento acompanhado da força e a graça de Deus (vv. 39-40). Tudo isso faz parte das intenções teológicas e das capacidades literárias de Lucas, respondendo às necessidades de suas respectivas comunidades. Por tratar-se de um texto bastante longo, não comentaremos todos os versículos. Por último, recordemos que tudo o que Lucas apresenta no seu “evangelho da infância” funciona como introdução e chave de leitura para toda a sua obra.

Feitas as devidas observações a nível de contexto, olhemos para o texto, buscando a sua compreensão. Como afirmamos anteriormente, esse texto possui uma alta concentração cristológica; o seu centro é o Cristo, e isso já pode ser percebido no primeiro versículo, que diz: «Quando se completaram os dias da purificação da mãe e do filho, conforme a Lei de Moisés, Maria e José levaram Jesus a Jerusalém, a fim de apresentá-lo ao Senhor» (v. 22). Ora, o preceito de purificação era aplicado somente à mãe: quarenta dias após o parto, se a criança fosse menino, e oitenta dias se fosse menina (Lv 12,1-8). A lei exigia apenas que a mãe se apresentasse ao sacerdote, levando a oferta prescrita. Ao inserir Jesus na cena, Lucas pretende evidenciar a sua importância e centralidade, mostrando que tudo no Evangelho gira em torno dele. Ora, não havia nenhum preceito que exigisse a apresentação da criança. A Lei determinava apenas a consagração do primogênito (v. 23 = Ex 13,2). Para essa consagração não havia necessidade de levar a criança ao sacerdote, mas apenas o pagamento do seu resgate (Ex 34,19-20). Ora, em Israel, todo primogênito menino pertencia a Deus, sendo consagrado para o serviço do templo, mas como esse serviço já era exercido pela tribo de Levi, os primogênitos de outras tribos ficavam mesmo com seus pais, que deveriam pagar um valor ao templo, como resgate. Exigia-se apenas que o pai fosse levar a oferta. As motivações de Lucas são estritamente teológicas, ao inserir no episódio elementos que, de certo modo, não se aplicavam à situação. Com isso, ele apresenta Jesus inserido na vida concreta do povo judeu com suas tradições, mas com plena liberdade para transgredir. Isso quer dizer que nenhuma tradição ou doutrina é capaz de conter Jesus e seu agir, como será mostrado nos relatos da sua vida pública.

Além de evidenciar a centralidade de Jesus na cena, mesmo sem correspondência com um preceito legal, com a apresentação dele no templo o evangelista introduz um dos temas mais  relevantes de seu projeto teológico: a cidade de Jerusalém como destino da missão de Jesus e, posteriormente, como ponto de partida da missão cristã que, de lá, deverá se estender por todo o mundo (At 1,8). Por isso, ainda no “evangelho da infância”, ele vai mostrar Jesus indo a Jerusalém mais uma vez, aos doze anos, quando se perde de seus pais e é encontrado em meio aos doutores, discutindo teologia, no templo (Lc 2,41-49). É, portanto, do interesse teológico de Lucas mostrar Jesus em Jerusalém. Além, disso, para ele é importante também mostrar Jesus em movimento, percorrendo caminhos desde os primeiros dias de sua vida. Inclusive, ele já apresentou Jesus em caminho antes mesmo de nascer, tão logo foi gerado no ventre de Maria, tanto no episódio da visitação a Isabel, quanto na viagem de Nazaré a Belém, para o recenseamento, terminando com o nascimento. Com isso, ele antecipa, de modo prefigurativo, alguns dos traços mais característicos da identidade da Igreja: a missionariedade e a condição de peregrina permanente, temas que serão introduzidos ao longo do ministério de Jesus, no Evangelho, e desenvolvidos no segundo volume de sua obra, o livro dos Atos dos Apóstolos.

Outro tema relevante de toda a obra de Lucas introduzido neste episódio é a identificação de Jesus com os pobres e a consequente opção por eles, o que também deve nortear a vida da Igreja em todos os tempos. Neste episódio, esse tema vem evidenciado, em primeiro lugar, pela descrição da oferta de José e Maria pela purificação da mãe: «Foram também oferecer o sacrifício – um par de rolas ou dois pombinhos – como está ordenado na Lei do Senhor» (v. 24). Ora, para a purificação da mãe, a oferta deveria ser de um cordeiro, com exceção para as famílias pobres que podiam oferecer um par de rolas ou dois pombinhos (Lv 12,8), como fizeram José e Maria. Aqui, o evangelista diz com clareza que eles fizeram a oferta dos pobres. Com isso, isso, ele evidencia que Jesus veio ao mundo pobre, pelos pobres, para os pobres e para ficar com os pobres, sobretudo. Sua identificação é clara com os últimos de Israel e, consequentemente, de todo o mundo: humildes, pecadores, mulheres e todas as categorias de pessoas marginalizados em geral. É com esse detalhe que o evangelista encerra as descrições rituais do episódio. Portanto, é conveniente lembrar que a “Sagrada Família” foi uma família pobre e o evangelista a propõe como protótipo da Igreja. Nos versículos seguintes ele apresentará os testemunhos de Simeão e Ana como centro do relato. Na verdade, ele usou os preceitos da Lei e os ritos apenas como pretexto para tratar da identidade messiânica de Jesus, como faz em seguida.

Simeão e Ana são personagens exclusivos de Lucas. São frutos da sua teologia e são personalidades corporativas, ou seja, representam uma coletividade: a parcela do povo de Israel que permaneceu fiel às promessas de Deus, especialmente os mais pobres, e que reconhece Jesus como o cumprimento das promessas e a plenitude da Lei. Eis a descrição de Simeão: «Em Jerusalém havia um homem chamado Simeão, o qual era justo e piedoso, e esperava a consolação do povo de Israel. O Espírito Santo estava com ele e lhe havia anunciado que não morreria antes de ver o Messias que vem do Senhor» (v. 25-26). As qualidades de justo e piedoso sintetizam o que Deus espera do ser humano. É sinônimo de conduta reta diante de Deus e do próximo. Esperar a consolação significa reconhecer e assumir uma situação de tristeza, de negação da vida. Por isso, Lucas enfatiza tanto a alegria ao longo do seu Evangelho. Israel vivia uma situação caótica e triste e, diante disso, muitos perderam a esperança e o gosto pela vida. Simeão, cujo nome significa “o que foi ouvido por Deus”, soube esperar e reconhecer em Jesus o consolo definitivo, a salvação de quem estava literalmente perdido, sem perspectivas, devido à opressão causada pelos sistemas de poder, tanto o político-econômico quanto o religioso. Certamente, ele clamou muito ao Senhor e, por isso, foi ouvido, literalmente, recebendo a consolação que tanto esperava. Vivendo em situação tão adversa e caótica, somente tendo consigo o Espírito Santo, Simeão poderia sentir a libertação definitiva tão próxima. Esse dado também é muito importante: é o Espírito Santo quem credencia o ser humano a reconhecer Jesus como Messias e Salvador e a acolher a novidade de Jesus e do seu Evangelho.

E o Espírito Santo é citado três vezes como fonte de inspiração e revelação para Simeão (vv. 25.26.27), embora a ocorrência do versículo 26 tenha sido omitida pela tradução do lecionário. É importante recordar esse dado porque o Espírito Santo também constitui um tema e personagem determinante para todo o conjunto da obra lucana (Lc-At). Por sinal, a consolação, objeto da espera de Simeão, na língua original dos evangelhos (em grego: παράκλησις – paráclesis), possui a mesma raiz de “paráclito” – consolador –, um dos títulos atribuídos ao Espírito Santo no Evangelho de João e adotado posteriormente no desenvolvimento da teologia cristã. Portanto, tudo o que Simeão faz é motivado pelo Espírito Santo, como mostra a continuação do texto, a começar pelo seguinte gesto: «Simeão tomou o menino nos braços e bendisse a Deus» (v. 28). Com esse gesto, Lucas quer afirmar que o velho acolheu o novo, os dois testamentos (alianças) se encontraram e podem, de agora em diante, conviver em harmonia, desde que haja abertura ao Espírito Santo da parte do antigo. O povo da antiga aliança é consolado ao participar da nova aliança, cedendo aos apelos do Espírito Santo. Isso requer um aprofundamento na vivência da fé, graças ao Espírito Santo. Conforme já profetizara Isaías (Is 49,6), Simeão percebe que é preciso abrir mão de certos pensamentos hegemônicos: a glória de Israel é compatível com a luz das nações. Ora, luz é também sinal de glória. Portanto, se Israel encontra sua glória, os povos de todo o mundo são também iluminados, e não dominados, como esperavam os movimentos mais nacionalistas e radicais.

Lucas aproveita a cena para introduzir mais um cântico no seu “evangelho da infância”, colocando-o, dessa vez, na boca de Simeão (vv. 29-32), conforme já fizera com Maria (Lc 1,46-55), com Zacarias (Lc 1,68-79), e com os anjos (Lc 2,14). Somente com olhos e coração atentos ao Espírito Santo, era possível afirmar que a salvação foi vista, contemplada. Assim, Simeão e, nele, todo o Israel fiel, pode dizer, finalmente: «podes deixar teu servo partir em paz» (v. 30). Com essa fala de Simeão, podemos dizer que, de fato, o Antigo Testamento deu ao Novo seu lugar! Simeão, ajudado pelo Espírito Santo, antecipa a missão de Jesus e o efeito dessa: ser sinal de contradição e causa de queda e reerguimento para muitos em Israel (v. 34). O Evangelho não será acolhido por todos e, portanto, a sua acolhida causará divisão, angústia e, consequentemente, queda e elevação. Na verdade, Lucas está reforçando o que já tinha apresentado no cântico de Maria: o Deus de Israel e de Jesus eleva os humildes e faz cair os soberbos (Lc 1,52ss). Quanto ao que Simeão diz em relação a Maria, a mãe, não é uma profecia sobre o drama da cruz, como muitas interpretações afirmam. A espada é uma imagem da palavra de Deus no Antigo Testamento (Is 49,2). Portanto, será a Palavra de Deus, revelada plenamente em Jesus, a atravessar a alma de Maria: o Evangelho dividirá o povo judeu; uns o acolherão, outros não. Como imagem e figura de Israel, Maria viveu em si esse drama: ela acolheu a Palavra de corpo e alma (Lc 1,38), mas assistiu a uma grande parcela do seu povo rejeitá-la.

Quanto a Ana, seu papel é semelhante ao de Simeão, embora a sua descrição seja bem diferente: «Havia também uma profetisa, chamada Ana, filha de Fanuel, da tribo de Aser. Era de idade muito avançada; quando jovem, tinha sido casada e vivera sete anos com o marido» (v. 36). É característica de Lucas atribuir importância a pessoas praticamente destinadas ao esquecimento, conforme os condicionamentos da época. Assim ele faz com Ana. Ao mencioná-la, ele quer enfatizar o papel da mulher na nova aliança, resgatando uma importância que a antiga lhe tinha negado. Ao qualificá-la como profetisa, o evangelista lhe atribui um papel muito importante, pois cinco mulheres, em toda a Bíblia, receberam esse título; quatro no Antigo Testamento: Miriam, a irmã de Moisés (Ex 15,20), Débora (Jz 4,4), Hulda (2Rs 22,14), e a esposa de Isaías (Is 8,3); e ela no Novo. A tribo de Aser, da qual Ana era proveniente, localizada no extremo norte da Galileia, era a mais distante de Jerusalém, e sua população era considerada semi-pagã pelas autoridades religiosas da época. Esse dado também evidencia a predileção de Deus pelo que é rejeitado e marginalizado. Todos os dados sobre Ana, portanto, são muito significativos para o plano teológico de Lucas e para o projeto do Reino de Deus que será anunciado por Jesus e deve ser continuado pela comunidade cristã, ao longo da história.

A continuação da caracterização de Ana possui rico significado teológico, servindo também de introdução e chave de leitura para o conjunto da obra de Lucas. Eis o que se diz dela: «Depois ficara viúva, e agora já estava com oitenta e quatro anos. Não saía do templo, dia e noite servindo a Deus com jejuns e orações» (v. 37). O estado de viuvez já é suficiente para Ana ocupar um espaço relevante na obra de Lucas, o autor do Novo Testamento mais atento à situação das viúvas (Lc 4,25-26; 7,12; 20,47; 21,2-3; At 6,1ss; 9,31.41), como exemplo de pessoas vulneráveis e necessitadas, que se tornam protagonistas da nova história e do mundo novo inaugurado por Jesus. Com isso, ele recupera o sentido do cuidado com as viúvas previsto na legislação de Israel, mas esquecido ao longo da história (Ex 22,22-23; Dt 24,19-21; Is 10,1), e reafirma as opções de Jesus, reforçando quais devem ser as opções da comunidade cristã. A idade de Ana também é bastante significativa: 84 anos, é idade plena para uma pessoa judia. Significa 7 vezes 12, ou seja, Israel (número 12) chegando à perfeição (número 7); portanto, Ana representa o Israel ideal que encontrou em Jesus a sua razão de ser. Por isso, ela «pôs-se a louvar a Deus e a falar do menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém» (v. 38). O louvor é consequência de quem se reencontra com a alegria e o gosto pela vida, algo que Lucas valoriza bastante em sua obra (Evangelho e Atos). Ana, ao louvar a Deus, se solidariza com todos aqueles que esperavam a libertação. Ora, libertação é o desejo de quem se sente na escravidão. Ela reconhece Jesus como a libertação definitiva de quem se encontrava escravizado pelos poderes econômico, político e religioso da época.

Diante de tudo o que se dizia do menino, a reação dos seus pais não poderia ser diferente: estavam maravilhados (v. 33). Assim como Simeão e Ana, José e Maria também estavam cansados da vida com suas mazelas, exploração e desencantos. Porém, mantiveram a esperança viva; não desanimaram, esperaram no Senhor e viram a chegada da libertação e da consolação. Por isso, são para nós testemunhas autênticas de um Deus que não deixa de cumprir as suas promessas e que olha, especialmente, pelos mais necessitados de todos os tempos. Em Jesus, as promessas de Deus são realizadas, o Antigo Testamento é cumprido, porém, de modo surpreendente: a mensagem salvífica de Jesus é tão grande que Israel não é capaz de comportá-la; por isso, transcende, é luz para todos os povos! Maravilhar-se é admirar-se, encantar-se. Em Jesus, uma nova história começa tendo como protagonistas os pobres, pequenos e humildes, ou seja, os necessitados de consolação e de libertação.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN


sábado, janeiro 25, 2025

REFLEXÃO PARA O 3º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 4,1-4; 4,14-21 (ANO C)



Com a liturgia deste terceiro domingo do tempo comum, inicia-se, de fato, a leitura semi-contínua do Evangelho de Lucas, como é característico do ano litúrgico C. No ano de 2019, o Papa Francisco instituiu este dia como o Domingo da Palavra de Deus, com o objetivo de promover uma aproximação maior das pessoas com a Palavra de Deus, evidenciando sua centralidade na vida da Igreja e ainda visando despertar o interesse pelo estudo das Sagradas Escrituras. Na Igreja do Brasil, particularmente, o “Domingo da Palavra de Deus” ainda não foi tão bem assimilado como tal, provavelmente pelo fato de já existir o “dia da Bíblia”, celebrado no último domingo de setembro, o mês da Bíblia, uma tradição bastante consolidada em nossas comunidades. O tema proposto para este ano é “Espero na tua Palavra”, inspirado no Salmo 119. O evangelho proposto para este dia – Lucas 1,1-4; 4,14-21 – contém duas partes: o prólogo do Evangelho (1,1-4) e o primeiro trecho do discurso programático de Jesus na sinagoga de Nazaré (4,14-21), inaugurando a sua vida pública e pregação. Embora separadas por três capítulos, é inegável a unidade entre as duas partes do evangelho de hoje, sobretudo no contexto do uso litúrgico. Ora, como o “Evangelho da Infância” (Lc 1,5 – 2,52) e os relatos da missão de João Batista e do batismo de Jesus (Lc 3) já foram lidos durante os tempos do advento e do Natal, e o episódio das tentações será lido na Quaresma (Lc 4,1-13), é justo que o evangelho de hoje tenha essa composição (1,1-4; 14-21).

Lucas é o único evangelista que abre a sua obra com um prólogo literário. É importante recordar que o prólogo do Evangelho de João (Jo 1,1-18), é exclusivamente teológico. Um prólogo é o conjunto de considerações iniciais que antecedem o texto propriamente. Literalmente, significa “antes das palavras” (em grego: προλογος = prólogos) ou seja, é o que antecede o escrito, e visa anunciar o plano da obra: tema, método, destinatário e objetivos, de forma breve e objetiva. Era um elemento fundamental na literatura greco-romana da antiguidade. Como se sabe, Lucas escreve o seu Evangelho cerca de cinquenta anos após a ressurreição de Jesus, quando já não havia mais nenhum apóstolo vivo, as testemunhas autênticas dos acontecimentos narrados. Ele começa a obra reconhecendo não ser o primeiro a escrever sobre Jesus: «Muitas pessoas já tentarem escrever a história dos acontecimentos que se realizaram entre nós, como nos foram transmitidos por aqueles que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e ministros da palavra» (1,1-2). Além das tradições orais que circulavam nas comunidades, nessa época já haviam sido escritos o Evangelho segundo Marcos, mais concentrado nas ações de Jesus, e um outro, de origem desconhecida, mais focado nas palavras de Jesus, denominado pelos estudiosos de “Fonte Q”, ambos utilizados por Mateus e por Lucas.  

Ele não se dá por satisfeito com o material existente escrito por outros, e resolve também escrever o seu, como confessa claramente: «Assim sendo, após fazer um estudo cuidadoso de tudo o que aconteceu desde o princípio, também eu decidi escrever de modo ordenado para ti, excelentíssimo Teófilo» (1,3). Como bom conhecedor das necessidades do seu tempo e dos seus leitores futuros, ele reconhece a necessidade de apresentar um escrito mais consistente, organizado e ordenado, não para contrapor aos escritos que já havia sobre Jesus, mas para reforçar o que já era utilizado na catequese das suas comunidades, personificadas pelo desconhecido destinatário Teófilo. Ora, certamente, novas dúvidas surgiam a respeito de Jesus, à medida em que o tempo passava e as comunidades se distanciavam cronologicamente do evento fundante da fé cristã, a saber, a ressurreição. O evangelista percebia que, aquilo que era anunciado nas comunidades, embora sólido, pois fora transmitido pelos apóstolos – as testemunhas oculares – já não era mais suficiente. Era necessário, por isso, uma mensagem mais consistente para Teófilo «verificar a solidez dos ensinamentos que havia recebido» (1,4). É isso o que motiva Lucas a escrever a sua obra; a maior prova da sua consistência é a continuidade em Atos dos Apóstolos: não bastava dizer como Jesus viveu e o que ele fez, mas também mostrar como as primeiras comunidades viveram a sua mensagem após a ressurreição e ascensão.

A propósito de Teófilo, destinatário primeiro da obra, muito se tem discutido a respeito da sua identidade desconhecida. Devido ao uso da forma de tratamento “excelentíssimo” ou “ilustre” (em grego: κράτιστος – kratistos), cogitou-se que Teófilo tenha sido um alto funcionário do império romano, convertido ao cristianismo e, possivelmente, financiador da obra lucana. Essa posição continua sendo defendida pela maioria dos estudiosos, até hoje, embora não haja unanimidade. Considerando o nome “Teófilo” (em grego: Θεόφιλος – Theófilos), cujo significado é “amigo de Deus”, um número também considerável de estudiosos defende que se trata de um personagem fictício, no qual o evangelista projeta o leitor ideal da sua obra, ao mesmo tempo em que faz uma crítica velada à filosofia, tão difusa no mundo greco-romano. Ora, filosofia significa “amor ao saber” ou “amizade à sabedoria”, e filósofo, por consequência, (em grego: φιλόσοφος = filósofo) significa “amigo da sabedoria” ou “amigo do saber”. A verdadeira e necessária amizade para Lucas, portanto, não é com a sabedora grega, tão difundida na época, mas com o Deus revelado em Jesus. Por isso, o objetivo principal de sua obra é que cada leitor e leitora se tornem autênticos(a) “Teófilos”, ou seja, amigos(a) de Deus.

Na segunda parte do evangelho de hoje, nós temos a inauguração solene do ministério de Jesus na sinagoga de Nazaré, em dia de sábado. Mas, antes disso, o evangelho nos oferece outras informações bastante relevantes, como a declaração de que «Jesus voltou para a Galileia, com a força do Espírito» (4,14a). Ora, no batismo, Jesus fora confirmado como portador do Espírito Santo (Lc 3,21-22); o mesmo Espírito pelo qual fora concebido no ventre de Maria (Lc 1,35); após o batismo, ele foi conduzido pelo Espírito Santo ao deserto, onde foi tentado pelo diabo (Lc 4,1-13). Foi, portanto, do deserto, após as tentações, que Jesus voltou para a Galileia, a região mais empobrecida e explorada de Israel, onde tinha se criado, e onde inicia sua vida pública. Ele inicia sua vida pública a partir da margens, ou seja, da periferia, como era considerada a Galileia na época. Contudo, mais importante aqui, para o evangelista, é mostrar que tudo o que Jesus faz e para onde vai, é impulsionado pelo Espírito Santo. Quando o Espírito Santo faz de uma pessoa o seu ninho, toda a vida dessa pessoa será conduzida pelo Espírito e, consequentemente, seu agir será genuinamente libertador, como foi o de Jesus. De todos os evangelistas, Lucas é o que mostra essa dinâmica com mais clareza, seja no Evangelho, com Jesus, seja em Atos dos Apóstolos com a comunidade cristã.

É importante recordar que, como mostra o texto de hoje, embora o episódio da sinagoga de Nazaré seja o primeiro evento descrito após o batismo e as tentações, essa não foi a primeira pregação pública de Jesus, pois diz o evangelista que sua fama já tinha se espalhado: «e sua fama espalhou-se por toda a redondeza» (4,14b), pois «Ele ensinava nas suas sinagogas e todos o elogiavam» (4,15). De fato, os outros evangelhos sinóticos relatam uma ida de Jesus a Nazaré, com pregação na sinagoga, já no auge do seu ministério na Galileia. Portanto, Lucas localiza esse episódio logo no início do ministério de Jesus por interesses teológicos e literários, com a finalidade de transformá-lo na introdução programática da vida pública. Mas, considerando que Jesus foi pregar na sinagoga de Nazaré já no auge de seu ministério, é natural que essa pregação tenha sido esperada com bastante expectativa, até porque era lá onde viviam seus parentes e pessoas mais conhecidas. Portanto, tanto deveria ser grande a expectativa da população de Nazaré quanto a responsabilidade de Jesus, que retornou ao seu povoado de origem como um pregador de fama já reconhecida pelas redondezas. Assim, diz o texto que «Ele veio à cidade de Nazaré, onde se tinha criado. Conforme seu costume, entrou na sinagoga no sábado, e levantou-se para fazer a leitura» (4,16). 

O sábado era o dia de culto por excelência, para o povo judeu, aliás, continua sendo. O culto na sinagoga acontecia logo pela manhã, pois era grande a ânsia do judeu para escutar a Lei, os Profetas e receber as bênçãos de Deus. Porém, o dia santo para o seu povo, será o dia preferido de Jesus para criar polêmicas com o seus conterrâneos e irmãos de religião, como mostram os evangelhos e, em especial, esse episódio de Lucas, como vê na continuidade, que corresponde ao evangelho do quarto domingo (Lc 4,21-30) que, neste ano, será substituído pela Solenidade da Apresentação do Senhor. De fato, como hoje se lê apenas a primeira parte do episódio, a polêmica ainda não se evidencia. O evangelista faz questão de mostrar Jesus iniciando sua pregação “na sinagoga em dia de sábado”, como também farão os seus discípulos-missionários em Atos dos Apóstolos (At 13,14; 17,1-2; etc). Porém, é na sinagoga, o lugar de culto, onde a sua mensagem será mais rejeitada, conforme acontecerá também com os discípulos-missionários em Atos dos Apóstolos. Assim, o evangelista confirma Israel como destinatário primeiro da salvação, ao mesmo tempo em que justifica a abertura aos pagãos: Israel, ou seja, os judeus, majoritariamente, rejeitam, se fecham à Boa Nova de Jesus.

O culto da sinagoga iniciava com a proclamação do “Shemá” – «Escuta, ó Israel: Iahweh nosso Deus...» Dt 6,4 –, a oração do povo de Israel, por excelência, e depois era feita a leitura de um texto da Lei, o ponto alto da liturgia; em seguida, lia-se um texto dos profetas e se fazia uma pequena homilia. Embora a estrutura fosse fixa, o seu desenvolvimento era bastante flexível: para a leitura dos textos proféticos e a homilia, priorizava-se pessoas de fora ou filhos da terra que moravam longe, e que se encontravam no povoado de passagem; isso se dava, sobretudo, nos pequenos povoados, onde a população era mais rude e carente de novidades, como Nazaré, por exemplo; após o homilia, o pregador podia até perguntar se alguém na assembleia teria algo a acrescentar, como o próprio Lucas atesta em Atos dos Apóstolos (At 13,15). Isso tornava a liturgia dinâmica e participativa. Nos pequenos povoados, as pessoas torciam, a cada sábado, que surgisse um pregador diferente, para fugir da monotonia. Naquela ocasião, Jesus já era considerado um filho ilustre de Nazaré, pois sua fama tinha se espalhado pela região (Lc 4,14), mas os seus conterrâneos nazarenos ainda não conheciam sua pregação. Quando a conhecem, o rejeitam e até tentam matá-lo, como mostra a conclusão do episódio (Lc 4,28-30).

Como, certamente, havia muita expectativa entre os conterrâneos e parentes de Jesus para ouvi-lo, deram-lhe a oportunidade de fazer a leitura e a pregação naquele sábado, conforme o relato do evangelista: «Deram-lhe o livro do profeta Isaías. Abrindo o livro, Jesus achou a passagem em que está escrito: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção para anunciar a Boa-nova aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos cativos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos, e para proclamar o ano da graça do Senhor”» (4,17-19). O texto citado por Lucas como lido por Jesus é Isaías 61,1-2a, um anúncio de salvação e consolo ao povo recém-libertado do cativeiro da Babilônia. O primeiro objetivo do evangelista, aqui, é apresentar Jesus como cumprimento e intérprete autêntico das Escrituras. De fato, à luz das Sagradas Escrituras, Jesus confirma sua vocação e missão de ungido, ou seja, o Messias de Deus para libertar definitivamente o seu povo. É importante perceber até onde o evangelista mostra a leitura de Jesus: ele não lê a passagem completa do texto profético! Depois do anúncio “do ano da graça do Senhor”, o profeta anuncia o “dia da vingança de Deus” (Is 61,2b). O Deus que Jesus veio revelar é somente amor, compaixão, justiça e misericórdia! Por isso, ele não fala em vingança. Na condição de ínterprete e critério de interpretação da Escritura, ao mesmo tempo, Jesus colhe somente o que faz bem. Ele não usava as Escrituras para impor medo nas pessoas, mas apenas para ajudá-las a descobrir o rosto misericordioso de Deus. 

O evangelista deixa claro que a Boa Nova de Jesus está em continuidade com o anúncio de libertação feito pelos antigos profetas de Israel, mas com sinal claro de ruptura. Outro objetivo do autor, com essa citação profética, é apresentar, de modo sintético, o programa de Jesus: o que ele veio anunciar e quais são os seus destinatários primeiros. Assim, o evangelista alerta sua comunidade a não perder de vista esse aspecto: os primeiros destinatários da mensagem de Jesus são os pobres, os prisioneiros, os cegos e os oprimidos; essa lista representa os marginalizados e necessitados de um modo geral. São a síntese da humanidade ferida que Jesus veio humanizar com a sua mensagem de amor e libertação. Ao longo da história, obviamente, esse elenco de categorias de pessoas é ampliado, à medida em que outras categorias de pobres e excluídos são geradas pelos diversos sistemas econômicos que não priorizam a vida. É  a essas pessoas que a comunidade cristã deve olhar e dar atenção, em primeiro lugar. E a prioridade a essas pessoas é o critério de verificação se uma comunidade eclesial é fiel ou não ao programa de Jesus. Ora, a mensagem de Jesus comporta mudanças radicais, enfatizadas no texto pelas imagens da «libertação dos cativos e recuperação da vista aos cegos»; por isso, não é uma doutrina, nem um conjunto de fórmulas, ritos e normas, mas um programa de vida que comporta ações transformadoras. Com a imagem destas categorias de pessoas, o evangelista denuncia os sistemas dominantes que geram exclusões e antecipa o programa do Reino de Deus, que é um mundo humanizado e livre. 

O evangelista Lucas valoriza muito os pequenos detalhes e gestos de seus personagens, sobretudo de Jesus, através dos quais enriquece a sua teologia. Por isso, observa que ele «Depois fechou o livro, entregou-o ao ajudante e sentou-se. Todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos nele» (4,20). Sentar-se, nesse contexto, é o gesto de quem tem autoridade para ensinar. O gesto de fechar o livro é explicado pelo versículo seguinte, quando começa a pregação: «Então começou a dizer-lhes: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir”» (4,21). Com isso, ele ensina que a Escritura se cumpriu, o Antigo Testamento se concluiu e, de agora em diante, a comunidade cristã tem um único horizonte: Jesus e o seu Evangelho. O livro fechado quer dizer, de fato, que o Antigo Testamento não só se cumpriu em Jesus, mas cumpriu a sua missão. O que passa a contar daquele momento em diante é o ensinamento de Jesus. Tudo o que ele diz deve ser ouvido e vivdo. Surpreende aqui a brevidade da pregação de Jesus: ele não inventa nada, apenas mostra a Escritura se tornando vida. A partir da Escritura, mostrou as situações concretas da vida que precisam de transformação, e se a Escritura não for instrumento de libertação, não tem sentido a sua existência. Ele não deu uma longa explicação ao texto, como talvez esperassem seus conterrâneos; apenas mostrou que a sua pessoa e sua mensagem são a verdadeira explicação da Escritura.

É, portanto, para Jesus que a comunidade deve olhar, ou seja, deve orientar-se somente pela sua mensagem. O “hoje”, termo tão caro para Lucas, significa a urgência do Reino de Deus e da salvação que esse comporta. “Os pobres, cativos, cegos e oprimidos” não podem mais esperar. É necessário, portanto, “fixar os olhos” atentamente em Jesus, ou seja, tê-lo como única fonte de vida, configurar-se a ele e ser também sinal e instrumento de “libertação” e “recuperação de vista” para os “pobres, cativos, cegos e oprimidos” de hoje e de sempre.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sexta-feira, janeiro 17, 2025

REFLEXÃO PARA O 2º DOMINGO DO TEMPO COMUM – JOÃO 2,1-11 (ANO C)



Independentemente do ciclo litúrgico vigente, o evangelho do segundo domingo do tempo comum é sempre um texto do Evangelho segundo João (Ano A: Jo 1,29-34; Ano B: Jo 1,35-42). Neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico “C”, o texto proposto é Jo 2,1-11, que corresponde ao relato do episódio conhecido como as “Bodas de Caná”. Como se sabe, ao longo do ano, a liturgia do tempo comum faz uma apresentação contínua da vida pública de Jesus, desde os seus primeiros passos na Galileia até o seu final, em Jerusalém, onde viveu a paixão e morreu na cruz. Para começar o tempo comum, recorre-se, portanto, ao Evangelho de João no segundo domingo, como estratégia didática e catequética, porque é esse o Evangelho que melhor introduz a vida pública de Jesus, através de uma sequência de eventos denominada pelos estudiosos de “semana inaugural” (Jo 1,19–2,11). Essa semana começa o envio de uma comitiva pelas autoridades religiosas de Jerusalém para fiscalizar a atividade de João, o batizador (Jo 1,19-28), e concluída com o episódio das bodas de Caná, texto empregado na liturgia de hoje.

Embora simples do ponto de vista narrativo, pois trata-se de uma história com trama, cenário e personagens bem definidos, o texto apresenta uma grande complexidade teológica. Por isso, preferiu-se, ao longo dos séculos, uma interpretação quase literal, limitada a fundamentar uma suposta intercessão de Maria e, assim, fomentar a devoção mariana, sem explorar a riqueza teológica empregada pelo evangelista. Tem sido grande, portanto, o esforço da exegese das últimas décadas para restituir ao texto o seu valor cristológico, praticamente ofuscado pela leitura devocionista aplicada ao longo dos séculos. O primeiro passo para isso é situar o texto no seu devido contexto. Como foi acenado acima, o evangelista João introduz a vida pública de Jesus com uma série de episódios distribuídos ao longo de uma semana, chamada pelos estudiosos de “semana inaugural”. E o ponto alto dessa semana é exatamente o episódio das bodas de Caná, que funciona como introdução e porta de entrada para todo o Evangelho. Tudo o que será desenvolvido ao longo do Quarto Evangelho, portanto, será desdobramento desse episódio. Inclusive, esse é o primeiro episódio que tem Jesus como o real protagonista. Até então, os protagonistas tinham sido João e alguns discípulos – André, que era discípulo de João, seu irmão Simão Pedro, Filipe e Natanael.

O texto começa com um dado importante, infelizmente, omitido pela tradução litúrgica: a expressão “No terceiro dia”, substituída pela genérica e desnecessária fórmula de introdução “Naquele tempo”. Embora já se trate do dia conclusivo da semana, o evangelista omite alguns dias de propósito, para que este episódio se realize no “terceiro dia”. Ora, o último episódio narrado tinha sido o encontro de Jesus com Filipe e Natanael (Jo 1,43-51), que correspondia ao quarto dia da semana; as bodas de Caná, portanto, acontecem no “terceiro dia” após esse episódio. Mais do que um dado cronológico, a expressão “terceiro dia” é um indicativo teológico: significa uma manifestação especial de Deus, uma intervenção divina. De imediato, esta expressão leva o leitor a pensar na ressurreição de Jesus, o maior dos fatos acontecidos no “terceiro dia”, conforme o conjunto das Escrituras. No entanto, há diversos episódios importantes da Bíblia que também aconteceram no “terceiro dia”. De fato, diz a Bíblia que foi no “terceiro dia” que Abraão subiu à montanha para sacrificar Isaac, provando a sua fé (Gn 22,4), e foi no “terceiro dia” que Deus manifestou a sua glória no Sinai e entregou a Lei a Moisés (Ex 19,16ss). O maior de todos, como acenado anteriormente, obviamente, é a ressurreição de Jesus, a intervenção definitiva de Deus. Ora, ao apresentar o primeiro sinal de Jesus ao “terceiro dia”, João sinaliza que toda a sua vida será manifestação e intervenção de Deus na história, cujo ápice será a ressurreição. Portanto, “terceiro dia” é uma expressão teológica que indica o agir de Deus. Tudo isso ajuda a compreender a importância do episódio das bodas de Caná para o conjunto do Quarto Evangelho.

Eis, então, que no “terceiro dia”: «houve um casamento em Caná da Galileia. A Mãe de Jesus estava presente» (v. 1). As festas de casamento, na cultura semita, eram esperadas com muita ansiedade. Era a festa dos sonhos; normalmente, duravam uma semana, mas a depender das condições dos noivos, poderia se estender por até duas semanas. Em Israel, Além do seu sentido social, o matrimônio servia como símbolo da relação entre Deus e o seu povo, desde os tempos do profeta Oséias (século VIII a.C.). Com essa festa, portanto, o evangelista quer mostrar a situação da aliança, como o povo de Israel estava se relacionando com o seu Deus, e a necessidade urgente de uma intervenção, com uma verdadeira mudança de rumo. Como se vê, a Mãe de Jesus não é mencionada pelo seu nome próprio nesse episódio, porque ela é uma personalidade corporativa, quer dizer, representa uma coletividade, ou seja, uma comunidade, e não apenas a pessoa individual de Maria. Quando os profetas denunciavam as injustiças e a corrupção reinantes em Israel, mencionavam também um “resto” fiel que veria a realização das promessas de Deus. Portanto, a Mãe de Jesus é, nesse relato, a imagem do resto fiel de Israel que nunca se distanciou de Deus. Por isso, ela já “estava presente” no casamento, porque fazia parte daquela comunidade.

Ao contrário da Mãe que já “estava presente”, o evangelista diz que «Jesus e os discípulos foram convidados para o casamento» (v. 2). Embora sutilmente, o evangelista faz uma distinção: Jesus e os discípulos foram à festa como convidados, mas não faziam parte. Ao longo de todo o seu Evangelho, João mostrará como Israel não aceitou Jesus, tratando-o como um estranho e até como inimigo, inclusive no prólogo ele já tinha antecipado: «Veio para os seus, mas os seus não o acolheram» (Jo 1,11). Porém, para conhecer as reais necessidades e problemas de um povo, é necessário estar inserido e fazer parte da realidade; tampouco basta conhecer as necessidades e os problemas; é preciso tomar iniciativa e buscar soluções, como fez a Mãe: «Como o vinho veio a faltar, a Mãe de Jesus lhe disse: “Eles não têm mais vinho”» (v. 3). A Mãe de Jesus, como imagem do resto fiel de Israel, é a mais legítima conhecedora das carências e falhas na relação de seu povo com Deus, por isso, ela apresenta uma triste realidade: a falta de vinho. É importante recordar, como mostra claramente o texto, que ela não faz um pedido a Jesus, como insinuam as interpretações mais devocionistas. Ela constata uma situação e faz uma denúncia: a falta de vinho nessa festa de casamento é, na verdade, a falta de amor e de alegria na antiga aliança. A Mãe constata que Israel falhou em sua relação com Deus e, portanto, a aliança fracassou. O vinho era essencial numa festa e, na Bíblia, é sinal de alegria, amor e felicidade.

A Mãe de Jesus é a primeira a perceber a esterilidade e a superficialidade da relação de Israel com Deus. Ora, o povo de Israel imaginava que entrava em comunhão com Deus através de sacrifícios, purificações e ritos, independentemente da prática da justiça e da conduta ética, sem qualquer compromisso nas relações com o próximo. Praticava-se a religião do mérito com muitas ofertas, sacrifícios e pouco amor. Foi isso que a Mãe de Jesus constatou ao lhe dizer que não havia mais vinho na festa. Não havia mais amor e alegria na maneira do povo relacionar-se com Deus. Ela percebeu também que somente Jesus poderia contornar aquela situação, por isso lhe comunicou a carência. Ela sabia que a proposta de vida que Jesus veio oferecer ao mundo, fundamentada no amor, era a única saída para Israel reencontrar-se consigo mesmo e com Deus, e continua sendo, para toda a humanidade. Como a Mãe, nesse episódio, representa toda a comunidade do resto fiel de Israel, a sua relação com Jesus carrega um certo formalismo, como se vê na resposta de Jesus: «Jesus respondeu-lhe: “Mulher, por que dizes isto a mim? Minha hora ainda não chegou”» (v. 4). Jesus não a chama de Mãe, mas apenas de mulher, e esclarece que não depende somente dele para contornar aquela situação; de fato, ao dizer que a sua hora ainda não chegou, ele confessa depender do Pai, sobretudo, pois foi aquele que o enviou. Na dinâmica do Quarto Evangelho, a hora de Jesus é preparada e aguardada com muita expectativa. Definitivamente, ela chegará na cruz. Mas, assim como a cruz não foi um ato isolado, e sim consequência de uma vida inteiramente doada, também a “hora” será construída paulatinamente, à medida em que serão encontradas situações necessitadas de transformação.

Mesmo sem receber uma resposta positiva, a Mãe confia na providência, como modelo de crente. Conhecedora da situação, ela vê como urgente a intervenção de Deus, através de Jesus; por isso, ordenou aos que estavam servindo: «Fazei o que ele vos disser» (v. 5). Ora, a antiga aliança foi concluída com uma resposta solene do povo a Moisés: «Sim, nós faremos tudo o que Iahweh disse!» (Ex 24,7). Porém, a história mostra que Israel falhou e não fez a vontade de Deus, ou seja, não fez o que “Iahweh disse”. Logo, a antiga aliança fracassou exatamente porque o povo não cumpriu essa promessa, e a Mãe de Jesus sabia disso; por isso a recomendação para fazer o que ele disser, de agora em diante, mediante Jesus, o revelador por excelência. Com esta ordem – Fazei o que ele vos disser – a Mãe de Jesus reconhece não ser a dona da mensagem. De fato, ela reconhece que não tem o que dizer a não ser indicar a Boa Nova de Jesus como único caminho de vida. Ela confessa que não pode fazer nada. Não se trata de uma carência ou fraqueza dela; reconhecer que não tem o que dizer e nem o que fazer é, na verdade, a maior virtude da Mãe de Jesus. Essa deve ser a postura de todos os discípulos e discípulas em todos os tempos: apontar para o que Jesus diz, pois só ele tem palavras de vida, como também reconhecerá Pedro, mais tarde (Jo 6,68). Nesse caso, a Mãe se antecipa. Quando Jesus ainda não tinha manifestado qualquer sinal de glória e poder, ela acreditou que ele poderia fazer algo. Por isso, ela é modelo.

A partir da constatação da Mãe e da sua ordem aos que estavam servindo, o evangelista prossegue denunciando ainda mais a esterilidade da religião de Israel: «Estavam seis talhas de pedra colocadas aí para a purificação que os judeus costumam fazer. Em cada uma delas cabiam mais ou menos cem litros» (v. 6). Essas talhas (jarros) de pedra simbolizam a Lei; estavam vazias porque a Lei tinha chegado ao seu limite; através delas, os judeus faziam ritos de purificação, mas não se encontravam verdadeiramente com Deus. De fato, a expressão «a purificação que os judeus costumam fazer» indica toda a situação de carência em que Israel se encontrava. A necessidade de purificar-se indica que eles não se sentiam plenamente em comunhão com Deus. A relação que a religião da Lei proporcionava era superficial e momentânea, não gerava laços de comunhão. A grande capacidade das talhas – cerca de cem litros cada uma – indica ainda mais profundidade da decadência. Era necessária muita água para a purificação, e era uma purificação apenas exterior, não alcançava o coração. E mesmo assim as talhas estavam vazias. Isso quer dizer que nem mesmo aquela relação superficial estava garantida. Criava-se um abismo entre a religião ritualista e o Deus Criador e Pai. A constatação desse abismo ficará mais evidente no episódio seguinte, quando o evangelista vai narrar a denúncia de Jesus ao templo de Jerusalém, com a expulsão dos cambistas e vendedores (Jo 2,13-22). Naquela ocasião, ao invés de purificar o templo, como apontam algumas interpretações, Jesus propõe a destruição completa. 

A continuação do episódio ressalta o quanto Jesus se solidariza com seu povo e intervém, após a constatação da Mãe. Ele percebe que nem tudo está perdido. Na figura da Mãe, ele vê um sinal de esperança no seu povo; por isso, toma a iniciativa, como conta o evangelista: «Jesus disse aos que estavam servindo: “Enchei as talhas de água”. Encheram-nas até a boca» (v. 7). Aqui, “Os que estavam servindo” (em grego: διακονος = diáconos) são prefiguração da comunidade ideal de discípulos e discípulas que devem agir conforme “tudo o que Jesus disser”; são esses que devem preencher o vazio de amor em Israel e, posteriormente, em toda a humanidade, enchendo as talhas até a boca, quer dizer, servindo e amando sem medidas. E Jesus dá mais uma ordem: «“Agora tirai e levai ao mestre-sala”. E eles levaram» (v. 8). O mestre-sala era o responsável pela organização e coordenação da festa; era ele quem deveria vigiar e ficar atento se estava faltando alguma coisa. Porém, negligenciou completamente o seu papel, não percebeu que o vinho tinha acabado. Nesse episódio, ele representa os anciãos e sacerdotes (a classe dirigente de Israel) que tinha se distanciado de suas responsabilidades, não conheciam mais as reais necessidades do povo, estavam alheios à vida cotidiana das pessoas.

Distante da realidade, o mestre-sala não sabia sequer que o vinho tinha acabado, menos ainda de onde tinha surgido o vinho novo e bom: «O mestre-sala experimentou a água que se tinha transformado em vinho. Ele não sabia de onde vinha, mas os que estavam servindo sabiam, pois era eles que tinham tirado a água» (v. 9). Enquanto isso, os que estavam servindo, sabiam de tudo, pois fizeram o que Jesus ordenou, conforme aconselhou a Mãe. Isso mostra, mais uma vez, que eles e a Mãe são mesmo prefiguração da nova comunidade; a Mãe é o resto de Israel que encontra a nova humanidade disposta a pôr em prática as palavras de Jesus. Quanto ao mestre-sala, mesmo sem conhecer a origem do vinho novo, ele ficou surpreso com o sabor: «O mestre-sala chamou então o noivo e lhe disse: “Todo mundo serve primeiro o vinho melhor e, quando os convidados já estão embriagados, serve o vinho menos bom. Mas tu guardaste o vinho melhor até agora!”» (v. 10). Aqui, o evangelista ironiza e denuncia o distanciamento dos chefes de Israel em relação ao cotidiano das pessoas. Apesar de desconhecer a origem, o mestre-sala reconhece a qualidade do vinho, e se expressa até com surpresa, certamente por estar provando vinho bom pela primeira vez, tendo em vista que, enquanto representação das autoridades religiosas de Israel, nunca tinha experimentado vinho de verdade, mas apenas a água parada das talhas. O que ele tomava antes, imaginando ser vinho, não passava de água, pois sua relação com Deus não era movida pelo amor, e sim pelo medo. É por isso que ele se surpreende. Mais adiante, pela surpresa introduzida por Jesus no modo de se relacionar com Deus, as autoridades religiosas, aqui simbolizadas pelo mestre-sala, tramarão a sua morte. Acostumadas à água das talhas, elas não suportarão o vinho novo e abundante de Jesus. 

Pela primeira vez no relato, o evangelista faz referência ao noivo, quem deveria ser o verdadeiro protagonista da festa. Esse noivo é o próprio Deus; a missão de Jesus, fornecendo amor em abundância, representado pelo vinho, é reatar os laços entre o Deus, o noivo-esposo, e a humanidade inteira, a nova noiva-esposa. Como esse episódio é a verdadeira porta de entrada para todo o Evangelho de João, ele diz que «este foi o início dos sinais de Jesus. Ele o realizou em Caná da Galileia e manifestou a sua glória e seus discípulos creram nele» (v. 11). Um sinal, como sabemos, não é um fim em si mesmo, mas aponta para uma realidade muito mais profunda. O sinal da mudança da água em vinho preconiza muitas transformações que Jesus irá fazer e propor ao longo de todo o evangelho. A principal transformação, a primeira e mais necessária, diz respeito à maneira de relacionar-se com Deus. De uma relação servil e ritualista, ele nos convida a uma relação de amor, cuja imagem mais visível e clara é a do matrimônio, pois pressupõe um amor recíproco, com liberdade e confiança. O vinho novo, de qualidade superior, representa essa nova relação. É nisso que a sua glória se manifesta, e o que fortalece a fé.

Para ser autenticamente discípulo e discípula é necessário ser como a Mãe e os servidores, ao mesmo tempo: perceber as reais necessidades do próximo, tomar iniciativas concretas e fazer tudo o que Jesus disser. A abundância do vinho, imagem do amor, depende unicamente da disposição de fazer o que Jesus disser. E fazer o que Jesus disser é o único caminho para o cristianismo recuperar sua originalidade e, consequentemente, sua força transformadora.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, janeiro 11, 2025

REFLEXÃO PARA A FESTA DO BATISMO DO SENHOR – LUCAS 3,15-16.21-22 (ANO C)


Com a festa do Batismo do Senhor, conclui-se oficialmente o tempo do Natal. O evangelho desta festa varia conforme o ciclo litúrgico vigente. Como o batismo é um acontecimento narrado pelos três evangelhos sinóticos, a cada ano se lê o episódio segundo o evangelho predominante para o respectivo ano litúrgico. Neste ano, por ocasião do “ano C”,  o texto proposto é Lc 3,15-16.21-22. Pelo fato de tratar-se de um dos poucos episódios da vida de Jesus atestado pelos quatro evangelhos, os estudiosos consideram o batismo um dos acontecimentos com mais probabilidade de ter sido mesmo um fato histórico, um evento real, embora cada relato esteja revestido de elementos teológicos e simbólicos. De fato, o batismo de Jesus é narrado explicitamente pelos sinóticos – Mt 3,13-17; Mc 1,9-11; Lc 3,21-22 – e implicitamente pelo Quarto Evangelho – Jo 1,19-34. Além da ampla atestação literária, o que mais tem contribuído para a aceitação do batismo de Jesus como um acontecimento real são os problemas de interpretação deste evento desde as primeiras gerações cristãs. Diante de tais problemas, os estudiosos consideram que, se não se tratasse de um fato histórico e importante da vida de Jesus, certamente os evangelistas o teriam omitido de seus escritos.

Os principais problemas e questionamentos suscitados pela presença do batismo nos evangelhos, observados por teólogos e exegetas, são os seguintes: sendo o batismo um rito de purificação destinado a pecadores arrependidos, por que Jesus passou por esse rito, uma vez que não era pecador? Supondo que o ministro do batismo tem autoridade sobre a pessoa batizada, porque Jesus aceitou ser batizado por João, se era superior a ele? Questões desse tipo surgiram muito cedo. Por isso, acredita-se que dificilmente os relatos evangélicos teriam recordado um evento tão problemático se não fosse realmente importante e histórico. A historicidade do evento, no entanto, não isenta o relato de conter artifícios literários e elementos simbólicos. Na verdade, os relatos evangélicos contêm a interpretação teológica do evento, e não uma mera crônica descritiva. Ao colocá-lo como marco inaugural do ministério de Jesus, os evangelistas – especialmente os sinóticos (Mt, Mc e Lc) – apresentaram o batismo como um evento de revelação, revestindo-o de elementos típicos de teofanias do Antigo Testamento. Além disso, cada evangelista relatou o evento à sua maneira conforme as informações recebidas de suas fontes e as necessidades de suas respectivas comunidades. A presença de tantos elementos comuns pode levar o leitor a pensar que os relatos são todos iguais. Por isso, enfatizaremos, ao longo da reflexão, as particularidades do relato de Lucas. 

Além de marcar o início da vida pública de Jesus, o batismo marca a transição entre a pregação de João e a sua. É certo que a pregação de João estava gozando de um grande êxito (Lc 3,1-14); ele pregava um batismo de conversão (Lc 3,3) e proponha um jeito novo de viver, incentivando o povo a produzir frutos (Lc 3,8), já que a religião judaica se encontrava em plena esterilidade, com a decadência ética, moral e espiritual dos dirigentes do templo de Jerusalém. A mensagem de João foi além do esperado: até mesmo cobradores de impostos e soldados, pessoas abomináveis para a religião judaica da época, se interessaram pela sua mensagem (Lc 3,12-14). A pregação de João, portanto, sinalizava que um novo tempo estava surgindo. Ora, o povo vivia sufocado por uma dupla exploração: do império romano e do templo de Jerusalém; Roma cobrava impostos em excesso e o templo exigia ofertas e dízimos também em excesso, em nome de Deus. Por isso, a expectativa pela chegada do Messias libertador era muito grande, inclusive muitos pregadores, vez por outra, se apresentavam como tal; daí que muitos perguntavam se João não seria o próprio messias, como mostra o primeiro versículo do texto: «O povo estava na expectativa e todos se perguntavam no seu íntimo se João não seria o Messias» (v. 15). A expectativa do povo é um dado exclusivo de Lucas. Com esse detalhe, o evangelista indica que o povo estava insatisfeito com a realidade vigente, não suportava mais tanta exploração. À expectativa do povo somava-se a novidade da pregação de João, sobretudo sua coragem de denunciar os desmandos dos poderosos e a hipocrisia da sociedade em geral. Sua atuação profética, portanto, levava o povo a associá-lo ao Messias esperado. 

Diante da dúvida do povo em relação à identidade de João, foi ele mesmo quem tratou de esclarecer que não era o Messias: «Eu vos batizo com água, mas virá aquele que é mais forte do que eu. Eu não sou digno de desamarrar a correia de suas sandálias. Ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo» (v. 16). Esse esclarecimento era muito necessário, tanto para os ouvintes diretos da pregação de João, quanto para a comunidade do evangelista e os futuros leitores de sua obra, como nós. Ora, o próprio Lucas registra, no segundo volume de sua obra – Atos dos Apóstolos –, que o batismo de João, mesmo depois de sua morte, continuava sendo realizado como se fosse o batismo cristão, pois as pessoas não compreendiam a diferença, e isso gerava confusão em algumas comunidades, como em Éfeso, por exemplo (At 19,1-7). Por isso, a necessidade de fazer a distinção com o uso de imagens tão fortes. De fato, o movimento de João não desapareceu automaticamente após a sua morte; tudo indica que continuou e cresceu, chegando até a rivalizar com o movimento de Jesus. Após a morte de cada um, houve momentos de tensão em que os respectivos seguidores disputavam sobre qual era o maior dos dois mestres. Isso justifica a insistência dos evangelistas, sobretudo de Lucas, em mostrar o próprio João reconhecendo a superioridade de Jesus.

Na distinção entre o seu batismo e o que Jesus iria inaugurar depois, João esclarece a natureza do seu: ele batizava com água, como um sinal externo de purificação e penitência. A água não penetra no íntimo da pessoa; embora seja um sinal importante, permanece na exterioridade. Por isso, é necessário que venha «aquele que é mais forte» para batizar «no Espírito Santo e no fogo»; assim, o batismo de Jesus, praticado pelas comunidades cristãs, inclusive na do evangelista, terá uma outra dimensão. Na verdade, o fato de ser o batismo inaugurado por aquele que é “mais forte” já deixa clara a superioridade. Jesus é o “mais forte” porque é o Messias e Filho de Deus. Obviamente, não se trata de força física a mais em relação a João. Ele é o mais forte porque traz em si a plenitude dos dons do Pai, inclusive a capacidade de inaugurar um novo batismo. E o principal elemento distintivo do batismo de Jesus é o fato de ser um batismo «No Espírito Santo»; isso significa que esse batismo penetra no íntimo da pessoa e realmente transforma, como o efeito do fogo. Embora o fogo seja também um elemento externo, usado nos ritos cristãos posteriores (junto com a água), possui uma força transformadora mais forte do que a água. Se ambos os batismos permanecessem no plano simbólico, o de Jesus ainda seria superior, considerando que o efeito visível do fogo é mais forte do que o da água. O fato de a Igreja ter conciliado água e fogo no único batismo cristão indica respeito e estima por João. Para evitar possíveis desentendimentos, poderia se ter renunciado ao uso da água. A sua preservação indica que o legado de João foi indispensável. 

A verdadeira distinção entre os dois batismos, no entanto, está no conferimento do Espírito Santo, e esse só pode ser conferido por Aquele sobre o qual o Espírito Santo realmente desceu, como mostra a sequência do texto de hoje. Além de reconhecer a superioridade do batismo de Jesus, João faz outra distinção, ainda mais importante: a superioridade de Jesus em relação a ele. Isso se evidencia pela afirmação «Eu não sou digno de desamarrar a correia de suas sandálias». Essa declaração reforça quem é o “mais forte” entre os dois. Infelizmente, a liturgia de hoje salta alguns versículos (vv. 17-20), privando-nos de uma informação importante para compreender o batismo de Jesus no contexto da catequese de Lucas: a prisão de João Batista (vv. 19-20). Para combater equívocos e confusões a respeito dos papéis de João e de Jesus, e os efeitos de seus respectivos batismos, Lucas faz questão de tirar João de cena para poder colocar Jesus em evidência; por isso, antes de apresentar Jesus indo ao batismo, ele diz que João foi preso. Certamente, os discípulos de João continuaram batizando, mesmo após a sua prisão.

A obra toda de Lucas (Evangelho e Atos dos Apóstolos) tem as características de uma peça de teatro com as cenas e os personagens bem distribuídos, com bastante clareza de seus papéis. Em sua engrenagem episódica, Lucas nunca coloca Jesus e João na mesma cena, exceto na visitação, quando cada um ainda estavam no ventre de suas mães, Maria e Isabel, respectivamente (Lc 1,39-56). O evangelista faz tudo isso a fim de deixar claro para a sua comunidade que, embora contemporâneos, João e Jesus fazem parte de tempos diferentes no conjunto da história da salvação, como afirmará o próprio Jesus mais na frente: «A lei e os profetas até João! Daí em diante, é anunciada a Boa Nova do Reino de Deus» (Lc 16,16). Tudo isso reflete o cuidado do evangelista com a catequese da sua comunidade, para não confundir João com Jesus. João é um personagem da antiga aliança, embora faça parte do processo de transição para a nova aliança. Em outras palavras, para Lucas, ele ainda faz parte do Antigo Testamento, como o último representante da lei e dos profetas.

Na continuação do texto temos a confirmação do batismo de Jesus, contado por Lucas de modo único: «Quando todo o povo estava sendo batizado, Jesus também recebeu o batismo. E, enquanto rezava, o céu se abriu» (v. 21). É importante a forma como Lucas passa essa informação: Jesus está junto com o povo, não se separa; entra na fila dos pecadores, sem necessidade de separar-se. O povo estava lá por necessidade de conversão e de sentido para a vida; Jesus não tinha necessidade disso. No entanto, por solidariedade, ele se junta a esse povo; com isso, o evangelista antecipa a dinâmica da atuação de Jesus: ele não pregará de púlpitos ou tronos, mas no meio do povo, olhando no rosto das pessoas, tocando nas suas chagas, abraçando, dando a mão aos necessitados; isso indica que seu ministério que está sendo inaugurado será acessível a todos e todas e, por isso, será instrumento de humanização. Mais tarde, ele será criticado pelos judeus mais devotos exatamente por se misturar com os pecadores, fazendo até refeições com eles. Ora, o meio do povo é o campo de atuação de Jesus e, consequentemente, o lugar do encontro com ele e com o Deus que ele revela. Portanto, quem deseja encontrar-se verdadeiramente com Jesus e seu Deus deve ir ao meio do povo, pois é lá onde ele se encontra. E esse povo no meio do qual Jesus estava era o povo sofrido e explorado pelo poder político e religioso, como continua sendo até hoje.

Um outro traço característico de Jesus apresentado por Lucas ao longo de todo o seu Evangelho, e antecipado no trecho lido hoje é a sua assiduidade na oração. Desde o batismo até à cruz, Jesus é pintado por Lucas como o homem da oração, por isso é tão íntimo do Pai (Lc 22,46). Nesse intervalo, entre o batismo e a cruz, são frequentes e significativos os momentos orantes de Jesus no Evangelho de Lucas: ele ora enquanto cura (Lc 5,16), antes de escolher os doze apóstolos (Lc 6,12), antes de fazer o primeiro anúncio da paixão aos discípulos (Lc 9,18), antes e durante a transfiguração (Lc 9,28-29), ensina seus discípulos a orar como ele, durante o caminho para Jerusalém (Lc 11,1-2). Na paixão, a oração será ainda mais intensa (Lc 22,32; 22,39-46; 23,34.46). Com isso, Lucas revela a intimidade de Jesus com o Pai e apresenta um modelo para a sua comunidade ser assídua na oração, como é demonstrado em diversas passagens do livro dos Atos dos Apóstolos (At 1,14; 1,24; 2,1.41; 6,6; etc). E o resultado da oração é a abertura do céu, que significa a disposição de Deus em se comunicar com a humanidade. Quando os tempos estavam muito difíceis, imaginava-se que Deus tinha fechado os céus e não mais se comunicava com a humanidade. Quando o profeta Isaías (Terceiro Isaías) se lamenta do julgo da dominação persa, após o exílio, expressa o desejo de ver «os céus se rasgando para Deus descer em socorro» (Is 63,19). A abertura do céu no evangelho de hoje, portanto, significa que em Jesus a comunicação entre Deus e a humanidade é restabelecida definitivamente. E isso é fruto da relação íntima entre Jesus e o Pai, fortalecida por meio da oração. 

Por meio da oração se cria intimidade com o Pai e se abre caminho para o Espírito Santo se manifestar: «E o Espírito Santo desceu sobre Jesus em forma visível, como pomba. E do céu veio uma voz: Tu és o meu Filho amado, em ti ponho o meu bem-querer» (v. 22). A imagem do Espírito Santo assumindo a “forma corpórea” é uma novidade na linguagem bíblica; embora a tradução litúrgica traduza por “visível”, o mais correto é “forma corpórea”, de acordo com o termo grego usado pelo evangelista (σωματικω = somatikô). De fato, com esse termo o evangelista enfatiza mais a concretude do Espírito Santo na vida da Igreja, de cada discípulo e na história, de um modo geral. Quer dizer que se trata de uma realidade concreta. Embora alguns estudiosos tenham tentado conciliar essa imagem da pomba com o “pairar” do Espírito de Deus sobre as águas no princípio da criação (Gn 1,2), ou com a pomba que Noé soltou da arca durante o dilúvio (Gn 8,8), essas interpretações já não são mais convincentes. O acontecimento é inovador em tudo, até mesmo na simbologia. Ora, as imagens mais usadas para o Espírito de Deus na Bíblia são o fogo e o vento, inclusive, o próprio Lucas as aplica no episódio de Pentecostes (At 2,1-13). Porém, tanto o fogo quanto o vento, simbolizam o Espírito Santo pela força, pela capacidade de criação e transformação; em Jesus essas imagens não teriam sentido, pois o Espírito não desceu sobre ele para transformá-lo, mas apenas para confirmá-lo como o Filho amado do Pai, e para tornar pública essa confirmação. O Espírito preenche e transforma quem é carente dele; em quem já o possui em plenitude, como Jesus, apenas confirma. Desde a sua geração na eternidade e encarnação no ventre de Maria, Jesus já possuía o Espírito Santo em plenitude. 

Além de mostrar que em Jesus o Espírito Santo habita permanentemente, como uma pomba no ninho, trata-se de uma imagem que evoca serenidade, tranquilidade, paz e consolo; não causa assombro algum. É esse o sentido da manifestação do Espírito com essa forma no batismo de Jesus: ele não foi transformado pelo Espírito naquele momento, porque já era fruto desse mesmo Espírito. Mais importante do que a forma corpórea da pomba, assumida pelo Espírito, é a comunicação restabelecida entre a humanidade e Deus, não passando mais pela mediação das lideranças religiosas de Jerusalém, mas somente pela pessoa de Jesus. O céu se abre, Deus fala e afirma que o “seu bem-querer”, ou seja, a sua satisfação, não está nos inúmeros sacrifícios oferecidos no templo de Jerusalém, mas no seu Filho Amado. Mesmo com ecos antico-testamentários (Is 42,1; Sl 2,7), a afirmação de Deus aqui é completamente nova de significado, superando todas as expectativas e promessas: «Tu és o meu Filho amado, em ti ponho o meu bem-querer». O Messias que o povo esperava era apenas um servo de Deus e filho de Davi, o que seria um mediador a mais. Deus envia o seu próprio Filho como único mediador. A voz que sai do céu significa Deus falando diretamente com a humanidade. Isso é realmente a inauguração de um novo tempo.

Para concluir, é importante recordar que a leitura do evangelho de hoje deve ser associada a outro texto de Lucas, que também marca o início de ministério: o episódio da sinagoga de Nazaré (Lc 4,14,-21). No batismo, Lucas diz que o Espírito Santo desceu sobre Jesus, fez nele o seu ninho, ou seja, a sua morada. Na sinagoga de Nazaré o evangelista diz qual o papel do Espírito Santo: promover a libertação dos oprimidos, gerar vida, recuperar o que estava perdido… enfim, é preciso reconhecer que o Espírito Santo é doado para animar a missão da Igreja em favor da promoção da justiça e da libertação. 

Que a recordação do batismo de Jesus reforce em nós a necessidade de estarmos em sintonia com o Pai, ouvindo a sua voz com sensibilidade aos impulsos do Espírito Santo que se manifesta nas diversas situações cotidianas. Que nos sentindo “ninhos” do Espírito Santo, façamos o que Jesus fez: ser promotores de justiça e libertação.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sexta-feira, janeiro 03, 2025

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA EPIFANIA DO SENHOR – MATEUS 2,1-12



Neste domingo, a Igreja no Brasil celebra a solenidade da Epifania do Senhor, uma festa que pode ser considerada um verdadeiro prolongamento do Natal. Epifania quer dizer manifestação, deriva do verbo grego “epifaino” (ἐπιφαίνω), cujo significado literal é manifestar, aparecer, resplender. Nesta solenidade celebramos, então, a manifestação de Deus em Jesus como luz, guia e Senhor de todo o universo. O evangelho desta festa é o mesmo para todos os anos: Mt 2,1-12, texto que compreende o episódio da visita dos magos do Oriente, os primeiros personagens do Evangelho de Mateus a reconhecer Jesus como rei; eles saíram de longe para adorar à criança recém-nascida, configurando-se como uma das primeiras surpresas da obra de Mateus. É importante observar que, embora a celebração recorde a manifestação de Deus, o texto apresenta um movimento inverso: é o mundo com sua pluralidade de raças e culturas, representadas pelos magos do Oriente, que manifesta sua adesão e aceitação ao senhorio de Jesus, indo ao seu encontro.

A nível de contextos narrativo e literário, é importante recordar que o episódio dos magos é exclusivo de Mateus, constituindo-se uma das principais novidades do seu “evangelho da infância” de Mateus (Mt 1–2). Na verdade, tudo o que faz parte dos “evangelhos da infância” configura-se como novidade, tendo em vista que há apenas dois relatos dessa natureza no Novo Testamento: Mt 1–2 e Lc 1–2, respectivamente. E os dois são substancialmente diferentes entre si, por isso, o que um traz é sempre novidade em relação ao outro, à exceção da concepção virginal de Jesus, os nomes de José e Maria e do próprio Jesus, além do nascimento em Belém. Todos os demais elementos são próprios de cada evangelista, sobretudo a maneira de narrar cada episódio. O episódio dos magos está para Mateus como o dos pastores para Lucas. No entanto, o dos magos se torna ainda mais surpreendente, tendo em vista a origem inusitada dos personagens. Trata-se de um texto muito rico em teologia e simbologia, além da grande beleza que possui. É um dos textos que melhor revela as habilidades teológicas e literárias do evangelista. Certamente, é o episódio mais recordado de todo o “evangelho da infância” de Mateus, sobretudo porque em relação anúncio do nascimento de Jesus as tradições cristãs priorizaram a versão de Lucas, mais focada na pessoa de Maria, enquanto Mateus valorizou mais a figura de José. Ao longo da história, o episódio dos magos foi interpretado mais folcloricamente do que teologicamente. Daí a dificuldade de termos uma interpretação mais fidedigna ao sentido real do texto, tendo em vista que as interpretações folclóricas, inclusive adotadas pelo cristianismo oficial, estão muito enraizadas no imaginário popular, a começar pela transformação dos magos em reis.

Começamos o estudo do texto partindo dos primeiros versículos: «Tendo nascido Jesus na cidade de Belém, na Judéia, no tempo do rei Herodes, eis que alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém, perguntando: ‘Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo’» (v. 1-2). Ao contrário de Lucas, Mateus não narra o momento do nascimento de Jesus, mas apenas o menciona como um fato já acontecido, dando, porém, informações muito importantes de tempo e espaço: nasceu em Belém, no tempo do rei Herodes. A princípio, já é possível perceber a intenção do autor com essa informação: está surgindo uma alternativa de poder e realeza diferente do sistema vigente; há um deslocamento do centro para a periferia; começa uma descentralização, o que vem a indicar que o poder exercido até então na capital Jerusalém é um poder ilegítimo e, por isso, está desmoronando. É claro que é necessário o complemento da informação para termos clareza da oposição que o autor quer apresentar entre o poder centralizado em Jerusalém e o projeto alternativo que surge em Belém: «nasceu um rei para os judeus» (v. 2); esse dado indica que alguém estava reinando de maneira ilegítima, no caso, Herodes e o poder imperial em geral, de quem Herodes era representante. As indicações de tempo e espaço também servem para legitimar a historicidade do homem Jesus de Nazaré. Ora, os cristãos da comunidade de Mateus não tinham conhecido o homem Jesus e, por isso, poderiam questionar a sua existência. Com esses dados, o evangelista quer reforçar que Jesus foi um homem concreto, gente de carne e osso que nasceu e viveu em um período histórico determinado.

A outra grande novidade do relato, percebida ainda no primeiro versículo, está na peculiaridade dos personagens apresentados pelo autor: «alguns magos do Oriente» (v. 1). Ora, os magos (em grego: μάγοι – mágoi), eram estudiosos orientais, responsáveis pela interpretação dos sonhos e pela leitura dos fenômenos da natureza e dos astros. No mundo greco-romano, e sobretudo em Israel, os magos eram vistos como feiticeiros e charlatões, operadores da magia. Eram, na verdade, os sacerdotes de cultos pagãos da Pérsia e Babilônia; pertenciam a uma categoria condenada pelo judaísmo e pelo cristianismo das origens. De fato, dois episódios nos ajudam a perceber o quanto a magia era condenada na Bíblia: a saga de Balaão, no Antigo Testamento (Nm 22–24), e a tentativa de compra do dom do Espírito Santo pelo mago Simão, no Novo Testamento (At 8,9-24). Inclusive, por causa desse episódio, é do nome Simão que deriva o termo “simonia”, que significa a comercialização – compra e venda – de bens sagrados e espirituais. Portanto, os magos eram pessoas abomináveis à luz da religião de Israel e dos primeiros cristãos. E quando Mateus os apresenta como os primeiros adoradores de Jesus, em seu Evangelho, tem a intenção de denunciar todos os tipos de preconceitos e exclusivismos, evidenciando a necessidade da comunidade aceitar e promover a diversidade, mostrando que Jesus veio ao mundo como a manifestação definitiva de Deus ao mundo inteiro, revelando-se acessível a todas as pessoas.

Para encobrir a rejeição que estes personagens tão controversos poderiam sofrer, a tradição cristã dos primeiros séculos resolveu caricaturá-los, atribuindo-lhes características que o texto bíblico não cita, como a condição de reis. Ao invés de ajudar na compreensão do texto, esse tratamento real aos magos terminou distorcendo o sentido aplicado pelo evangelista. É importante reforçar que esses personagens são fruto da inteligência e criatividade teológica do evangelista, ou seja, os magos não são personagens reais, mas simbólicos. A intenção do evangelista e de sua comunidade ao apresentá-los era exatamente mostrar que também aos distantes e sem reputação Deus se revela, e são exatamente esses os que com mais sinceridade buscam o verdadeiro rosto de Deus, tão difícil de ser reconhecido na pessoa de uma frágil e pobre criança, como as elites religiosa e política de Jerusalém não foram capazes de reconhecer. Ainda sobre o revestimento dado pela tradição, é importante recordar que o texto bíblico não faz menção alguma ao número dos magos; não diz que eram três, como tradicionalmente eles são representados, com base apenas no número dos dons por eles oferecidos: ouro, incenso e mirra. Além do número três, sem fundamento no texto bíblico, a tradição também lhes deu nomes (Gaspar, Baltasar e Melchior) e meio de transporte (camelos). Por isso, como afirmamos no início, é necessário distanciar-se da imagem romântica do presépio para compreender bem o texto de Mateus.

Está mais do que clara a oposição: os magos vieram de longe para adorar o Deus verdadeiro. Foram a Jerusalém, mas lá não era possível encontrar o verdadeiro Deus porque a elite religiosa o tinha monopolizado e distorcido a sua imagem, inclusive determinando quem poderia entrar no templo, onde imaginavam que Deus estava confinado lá. Como gentios, os magos eram barrados pelas paredes do templo que separava os pagãos dos judeus piedosos. Com a pergunta «Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer?» (v. 2a), os magos afirmam que não reconhecem a autoridade de Herodes, ou seja, o consideram um rei ilegítimo, mesmo tendo ido ao seu encontro, inicialmente, mais por falta de conhecimento. Com a afirmação «nós vimos sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo» (v. 2b), eles desafiam também a elite religiosa, mostrando que as paredes do templo já não conseguem mais conter esse Deus que se revela em todo o universo e a todos os povos, como luz que brilha e ilumina a humanidade inteira. Portanto, os poderes político e religioso vigentes são desmascarados com o nascimento de Jesus, pois perdem totalmente o controle que imaginavam ter sobre Deus e seu agir libertador sobre o mundo. E os magos são os primeiros a constatarem esse fato.

Enquanto Herodes exercia o poder pela força e a violência, Jesus exercerá a sua autoridade pelo serviço; enquanto a relação com Deus, monopolizado pela elite religiosa, era mediada por uma casta sacerdotal corrompida e através de sacrifícios e ofertas, em Jesus é Deus quem se manifesta plenamente, sendo Ele mesmo quem se oferece à humanidade, ao invés de exigir sacrifícios e oferendas. Por isso, «o rei Herodes ficou perturbado, assim como toda Jerusalém» (v. 3), pois viam que um novo tempo estava surgindo, novas relações estavam sendo gestadas, uma sociedade alternativa estava nascendo, enfim, o Reino de Deus estava começando e, portanto, todos os reinos humanos deveriam desaparecer. Como sempre, a força dos pequenos gera desconforto nos grandes. Herodes significa o poder político da época, “toda Jerusalém” significa o poder religioso. Juntando os dois na mesma frase e com os mesmos sentimentos, o evangelista denuncia o conluio que havia entre eles. O verbo grego traduzido por “ficou perturbado” é o mesmo empregado para expressar a agitação das águas do mar (ταράσσω – tarásso). Trata-se, portanto, de uma agitação incontrolável, como ficam as elites quando percebem sinais de mudança nas bases, com a possibilidade de perda de poder e privilégios.

As preocupações de Herodes e de “toda Jerusalém”, compreendida como a elite política, religiosa e intelectual predominantes, ou seja, sacerdotes e escribas, leva-os a um medíocre pacto (vv. 4-6), o qual se repetirá posteriormente e levará Jesus à morte de cruz, com as mesmas motivações: o medo que as autoridades tinham de um autêntico “Rei dos Judeus” (Mt 27,11). Isso significa que exerciam poder de modo ilegítimo, em favor de seus próprios interesses, sem preocupação alguma com o bem do povo. Era um poder usurpado. A pedido de Herodes, a elite religiosa usa as Escrituras em favor de um projeto de morte, e isso serve de advertência para as comunidades cristãs de todos os tempos: a Palavra não pode ser instrumentalizada para interesses pessoais nem projetos de poder. Portanto, a reunião de Herodes com os sacerdotes e mestres da Lei prefigura o conluio que levará Jesus à morte, no final do Evangelho. No nascimento, o pacto é feito entre Herodes e toda Jerusalém; na paixão será entre Pilatos e o sinédrio, mas são as mesmas forças, com as mesmas práticas. Como último recurso, Herodes tenta a fraude e o suborno, exigindo que os magos retornem a ele quando encontrarem o menino (vv. 7-8).

Ajudados pela Escritura e pelo próprio Herodes, os magos foram a Belém e lá, de fato, encontraram o que estavam procurando: Jesus, Deus e luz que ilumina todos os povos, inclusive eles, operadores de práticas abomináveis aos olhos do judaísmo. A reação deles não poderia ser outra: «Ao verem de novo a estrela, os magos sentiram uma alegria muito grande» (v. 10). A luz de Deus, até então sufocada por uma religião ritualista e segregadora, agora ilumina o universo inteiro e o convida a alegrar-se com isso, pois significa o fim de todas as barreiras, o desmoronamento de todos os muros e sinais de separação. É neste versículo que aparece pela primeira vez a palavra alegria no Evangelho de Mateus. É importante recordar que, enquanto o “evangelho da infância” de Lucas (Lc 1–2) é um relato alegre do começo ao fim, inclusive as primeiras palavras que o anjo dirige a Maria são um convite á alegria – “alegra-te cheia de graça!” –, o relato da infância de Mateus (Mt 1–2) é totalmente dramático, marcado por angústia, dúvida e medo (Mt 1,19.13-13). Por isso, é muito relevante perceber a primeira alegria e, ainda mais, considerando que ela parte de pessoas sem credibilidade para os padrões religiosos de Israel.

Se os magos se alegraram por verem a estrela, a alegria deles deve ter aumentado ainda mais «Quando entraram na casa, viram o menino com Maria, sua mãe» (v. 11a). Por serem pagãos e magos, eles não podiam adentrar além do pátio do templo reservado para os gentios e, portanto, não podiam contemplar nem adorar verdadeiramente a divindade nacional dos judeus. Agora, é tudo diferente: na casa, eles entram e vêem porque é o próprio Deus quem se deixa ver e conhecer em Jesus e na comunidade cristã, personificada em Maria, a mãe. Essa passagem é muito importante, pois em todo o primeiro capítulo de Mateus houve uma centralidade e importância dadas à figura de José. Nesta cena, ele não é mencionado, mas apenas Maria, como imagem da comunidade cristã, lugar privilegiado do encontro com Jesus e da verdadeira adoração. Certamente, Mateus teve uma intenção especial com esse detalhe: quis mostrar que Deus se deixa conhecer parcialmente na criação, representada pela estrela (vv. 2.9.10), de maneira mais clara ele se revela na Escritura (vv. 4-6), mas para fazer uma autêntica experiência com ele é necessário reunir-se em comunidade, personificada em Maria (v. 11).

Para compreender a atitude dos magos, é necessário recordar o que o texto diz, desde o início, sobre a intenção deles: «adorar o rei dos judeus» (v. 2). Para isso, eles tinham empreendido um longo caminho, inclusive errando a rota, pois foram primeiro a Jerusalém, mas lá não o encontraram, devido à estrutura rígida e decadente da religião oficial aliada ao poder político tirano de Herodes e do império romano. Ao contrário de Lucas, Mateus tem uma visão extremamente negativa sobre Jerusalém e o templo. Para Mateus, Jerusalém é sinônimo de trevas, é sinal de morte e ameaça para o reinado de Deus. Inclusive, pós a ressurreição, para encontrarem o Ressuscitado, os discípulos deverão retornar à Galileia (Mt 28,16-20). Por isso, somente deslocando-se para a periferia os magos puderam, de fato, experimentar o Deus que tanto buscavam. Aqui, está o ápice do contraste que o evangelista quer apresentar: o templo perdeu seu sentido, Deus não habita mais nele; é necessário retirar-se para a periferia, inserir-se na comunidade e, assim, adorar e experimentar a beleza desse Deus que quer apenas misericórdia e amor, e não mais sacrifícios.

Quando perceberam que encontraram aquele que tanto buscavam, os magos «ajoelharam-se diante dele e o adoraram» (v. 11). Essa atitude mostra que, finalmente, os magos se saciaram, encontraram sentido para suas vidas e buscas e, portanto, esvaziaram-se de si, oferecendo tudo o que tinham. Não ofereceram porque lhes fora exigido, como acontecia na religião do templo, mas porque sentiram-se confortados e correspondidos. Enquanto os poderes oficiais se uniam para matar, os magos, como figuras dos marginalizados, se prostram unidos para adorar. A adoração verdadeira, ou seja, o autêntico culto, não depende mais de um espaço específico delimitado pela religião; é feita na própria casa; a única exigência é que seja feita em «espírito e em verdade» (Jo 4,24). Ajoelhar-se em adoração será a atitude das mulheres e dos discípulos no primeiro encontro com o Ressuscitado (Mt 28,9.17). Com isso, o evangelista apresenta os magos como inauguradores do novo e autêntico culto, sendo modelos para o discipulado de Jesus.

Os presentes oferecidos pelos magos, ouro, incenso e mirra (v. 11b) são simbólicos e revelam, por um lado a identidade de Jesus e, por outro, a nova relação entre a humanidade e Deus. O ouro, revela que Jesus é rei enquanto o recebe, mas ao mesmo tempo diz que todas as nações podem participar do seu reino, enquanto foi oferecido por pagãos; assim, o privilégio de Israel como povo escolhido perde o seu sentido, pois a pertença ao Reino de Deus não é determinada por raça ou cultura, mas pela sinceridade de coração. O incenso representa a divindade de Jesus, ou seja, é o reconhecimento de que Ele é Deus, mas a humanidade não precisa mais dos sacerdotes do templo para se comunicar com Ele, pois qualquer pessoa e em qualquer lugar pode fazer isso. A mirra é o mais ambíguo dos três presentes: é, antes de tudo, o sinal da humanidade de Jesus, uma vez que era um perfume usado pelos judeus para embalsamar os cadáveres, como acontecerá com o corpo do próprio Jesus, quando morrer; porém, no Cântico dos Cânticos, em diversas passagens, a mirra é citada como o perfume da esposa amada (Ct 5,5.13) e, com muita probabilidade, Mateus quis dizer que a esposa amada de Deus deixou de ser Israel e passou a ser toda a humanidade.

Na conclusão do texto, encontramos uma afirmação muito significante para a comunidade cristã de todos os tempos: «Avisados em sonho para nãos voltarem a Herodes, os magos retornaram para sua terra seguindo outro caminho» (v. 12). Seguir outro caminho é a primeira atitude de quem faz um encontro autêntico com Jesus. Desse encontro, surge uma nova maneira de relacionar-se com Deus e com o próximo. Consequentemente, brota uma nova mentalidade que rejeita qualquer forma de poder que oprime e mata, inclusive amparado pela religião, como o complô de Herodes com os sacerdotes do templo. Para viver bem a nova relação com Deus é necessário desviar-se das antigas rotas e estruturas, como fizeram os magos, ao perceberem que Jerusalém só oferecia exploração e perigo. A experiência autêntica com Deus, portanto, provoca no ser humano a necessidade de percorrer novos caminhos, o que pode ser compreendido como uma nova maneira de viver, com novas atitudes parecidas com as de Jesus.

À guisa de conclusão, podemos nos questionar sobre quais caminhos que o Natal nos instiga a percorrer de agora em diante. Se serão os caminhos de sempre, ou seja, se continuarmos com as mesmas maneiras de pensar e compreender as coisas, principalmente a nossa relação com Deus e o próximo, é sinal de Jesus não nasceu em nós, ou seja, o Natal não aconteceu em nossas vidas. E Jesus se não nasceu em nós, não poderemos manifestá-lo ao próximo. Também é importante recordar o atual contexto eclesial: que o “outro caminho” seguido pelos magos estimule a reflexão sinodal em curso e que cada vez mais caminhos sejam abertos em nossas comunidades. Quanto mais disposição de “caminhar juntos” houver, mais a luz de Cristo iluminará o mundo.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA SANTÍSSIMA TRINDADE – JOÃO 16,12-15 (ANO C)

No primeiro domingo depois de Pentecostes, a Igreja celebra a solenidade da Santíssima Trindade. Os textos bíblicos empregados nesta solen...