Neste ano, a Igreja no Brasil celebra a solenidade de todos os santos no próprio dia – primeiro de novembro –, o que pode ser considerado um fenômeno raro no calendário litúrgico do nosso país, uma vez que se costuma transferi-la para o domingo seguinte, o que neste ano coincide com a comemoração de todos os fiéis defuntos – dia dois de novembro –, a qual terá prioridade. O evangelho proposto para essa solenidade de todos os santos é um texto fixo, lido todos os anos, certamente porque nenhuma outra passagem bíblica expressa tão bem o sentido da santidade como este: Mt 5,1-12a. Trata-se da introdução do primeiro dos cinco discursos de Jesus no Evangelho de Mateus, conhecido como “discurso ou sermão da montanha”. Essa introdução ficou conhecida como “bem-aventuranças”, devido à repetição constante do termo grego makárioi (μακάριοι), cujo significado é benditos, felizes ou bem-aventurados. Esse é, certamente, um dos trechos mais lidos e conhecidos de todo o Novo Testamento, apreciado por cristãos e não cristãos, pois contém o mais completo programa de humanização que o mundo já conheceu. Gandhi, por exemplo, definiu as bem-aventuranças como «as palavras mais altas que a humanidade já escutou».
As bem-aventuranças compreendem a
síntese do programa de vida de Jesus e, consequentemente, daquilo que seus
discípulos e discípulas de todos os tempos devem viver. É um texto belo, mas
muito fácil de ter seu sentido deformado, se interpretado de modo equivocado,
como geralmente tem acontecido. Ora, falar em todos os santos e santas tem tudo
a ver com o autêntico seguimento de Jesus de Nazaré. Por isso, é importante
refletir cada vez mais sobre as palavras de Jesus que o Evangelho apresenta. Na
verdade, todo o discurso da montanha é um indicador de direção para o
discipulado de Jesus e, portanto, para a santidade. Devemos, pois, concentrar
nossa reflexão na mensagem evangélica, evitando que esta solenidade se
transforme em mera apologia ao devocionismo fundamentalista que tanto tem se
difundido nos últimos anos. Por isso, é preciso ter clareza do programa de vida
de Jesus com seu projeto de sociedade e, consequentemente, das suas exigências.
De todas as palavras atribuídas a
Jesus que encontramos ao longo dos evangelhos, as bem-aventuranças são as mais
interpelantes e revolucionárias, embora sejam as mais fáceis de serem
deturpadas, passando de uma mensagem de transformação a uma de resignação.
Infelizmente, isso tem acontecido com muita frequência. Por isso, é necessário
compreendê-las bem, para que sua mensagem seja sempre de encorajamento e
transformação. Na versão mateana, encontramos oito bem-aventuranças, embora
alguns comentadores considerem nove, devido à ocorrência do termo grego
makárioi (μακάριοι) por nove vezes. Não consideramos a nona ocorrência do termo
(v. 11) como uma nova bem-aventurança, mas como uma recapitulação e síntese das
oito para os discípulos, reforçando a exigência para que eles de fato vivessem
intensamente todas elas.
Para compreendermos as
bem-aventuranças em seu sentido original, é necessário fazer mais uma
consideração semântica. Como já afirmamos anteriormente, o termo grego
empregado no Evangelho é makárioi (μακάριοι), o qual pode ser traduzido por
benditos, felizes ou bem-aventurados; é uma fórmula que introduz uma mensagem
de felicitação. É importante recordar que, embora escritos em grego, os
evangelhos foram construídos segundo uma mentalidade semítica, sobretudo o de
Mateus. Por isso, é importante recordar o sentido da palavra na língua original
de Jesus, o hebraico. Ora, o termo correspondente ao grego μακαριοι – makárioi,
em hebraico é (אשרי)
“ashrei”, o qual significa uma felicitação, mas é, ao mesmo tempo, uma forma
imperativa do verbo caminhar, seguir em frente, avançar ou pôr-se em marcha.
Expressivas correntes da exegese atual propõem que o evangelista pensou nos
dois sentidos ao formular o seu texto. De fato, sem esse segundo sentido, as
bem-aventuranças podem facilmente ser transformadas em discurso de conformismo
ou resignação; com ele, passam a ser uma mensagem de transformação.
Olhemos, pois, para cada uma das
situações contempladas por Jesus como necessitadas de transformação. Eis a
primeira bem-aventurança: «Bem-aventurados os pobres em espírito,
porque deles é o Reino dos Céus» (v. 3). De todas, tem sido essa a
bem-aventurança que tem recebido as interpretações mais equivocadas ao longo da
história, infelizmente. Longe de ser um convite ao conformismo, é um impulso à
transformação. Na língua grega a palavra pobre (πτωχός – ptokós) deriva do
verbo acocorar-se de medo, dobrar-se, abaixar-se, encurvar-se; designa,
portanto, uma condição de humilhação extrema. O convite de Jesus é para que não
desanimem, mas sigam em frente, não desistam, coloquem-se em marcha para
alcançarem o Reino que foi criado para eles, o Reino dos Céus, mas não no céu,
aqui mesmo na terra, como sinônimo de vida digna e plena. Aqui o termo espírito
(em grego: πνεύμα – pneuma) é empregado como sinônimo de consciência da
situação em que se encontram os pobres, encurvados de medo pela opressão do
império romano e pela religião oficial da época. A esses, Jesus convida a
perder o medo e, conscientemente, seguir em frente lutando pelo Reino. O pobre
que se encontra encurvado pelo sistema, deve tomar consciência da sua situação
insuportável e lutar, seguindo em busca de seus direitos de herdeiro do Reino.
A segunda bem-aventurança diz: «Bem-aventurados
os aflitos, porque serão consolados» (v. 4). De todas as
bem-aventuranças, certamente, essa é a mais paradoxal. Numa tradução mais
literal, o termo aflitos seria substituído por “os que choram”, e essa
bem-aventurança mistura felicidade com lágrimas e lágrimas com a consolação. É
um paradoxo que escapa a qualquer lógica humana. É claro que Deus não compactua
com as causas das aflições, mas ele está sempre do lado dos aflitos, daqueles
que choram. Ora, jamais será consolado o aflito que se fecha em suas aflições,
mas sim aquele que consegue mover-se, apesar do sofrimento. Ser consolado na
mentalidade bíblica é ter o sofrimento eliminado por completo. A implantação do
Reino dos Céus em um mundo tão hostil traz muitas aflições para os discípulos
de Jesus. Mesmo assim, eles devem avançar, jamais recuar, para encontrar a
consolação.
Na terceira bem-aventurança, Jesus
diz: «Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra» (v.
5). O termo manso equivale a humilde, e significa a pessoa que reivindica
alguma coisa sem violência. Nesse caso particular, equivale às pessoas que
lutam pela terra sem fazer uso da violência. A luta sem violência se torna mais
lenta e, aparentemente, mais difícil de conseguir o objetivo. Por isso, Jesus
encoraja, pede paciência, determinação e ação; em outras palavras, é como se
ele dissesse: «não parem, continuem caminhando e lutando». Era muito comum os
pequenos camponeses perderem suas terras por dívidas, com possibilidade de
resgate. À medida que o tempo passava, as esperanças de resgate diminuíam e
muitos desanimavam. Por isso, Jesus os consola e os encoraja.
Como não poderia deixar de ser,
Jesus coloca para os discípulos, conforme ele mesmo o fizera, a justiça como
uma busca incessante. Por isso, a quarta bem-aventurança é tão forte: «Bem-aventurados
os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados» (v. 6). A
fome e a sede são as necessidades que mais incomodam o ser humano. Assim como o
alimento e a bebida são essenciais para a vida, também deve ser a luta por
justiça entre seus discípulos. A comunidade cristã não tem vida quando não se
alimenta cotidianamente de justiça. Onde não há justiça, não há dignidade, não
há paz. É preciso seguir em frente na luta por justiça.
Na quinta bem-aventurança,
temos: «Bem-aventurados os misericordiosos, porque encontrarão
misericórdia» (v. 7). É importante recordar que misericórdia, na
Bíblia, não é um sentimento, mas uma ação em favor dos necessitados. Com isso,
Jesus pede que seus discípulos prossigam sempre no caminho do bem, pois é do
bem que o bem é gerado. Quando mais se ama mais possibilidades se tem de ser
amado também. Isso faz parte da pedagogia divina e da própria essência do Deus
revelado por Jesus, que é todo amor e misericórdia. De fato, a misericórdia é
uma das principais características do Deus de Jesus, por isso, deve ser também
para os seus seguidores. Seguir fazendo o bem ao próximo, sem distinção, é uma
das principais exigências do discipulado.
Com a sexta bem-aventurança, Jesus
se contrapõe claramente aos ritos de purificação da religião judaica: «Bem-aventurados
os puros de coração, porque verão a Deus» (v. 8). Os antigos ritos de
purificação do judaísmo tinham escondido o rosto verdadeiro de Deus. Jesus
proclama a nulidade daqueles ritos e pede para seus discípulos caminharem em
outra direção, avançarem por outro caminho que não seja o da religião que
divide, exclui e até mata. Só há um tipo de pureza: aquela interior, e essa não
é proporcionada por nenhum rito, mas somente pela disposição do ser humano em
seguir os propósitos de Deus. Vê a Deus quem olha para o próximo com os olhos
de Deus. É nessa direção que o discípulo de Jesus deve marchar, avançar.
A sétima bem-aventurança diz: «Bem-aventurados
os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus» (v. 9).
Na marcha da comunidade formada por discípulos e discípulas de Jesus, a
promoção da paz é requisito básico e essencial. Não se trata de uma falsa paz
como aquela imposta por Roma, intitulada “pax romana”. A paz que Jesus propõe
não é uma mera ausência de conflitos, mas um retorno ao ideal hebraico expresso
pela palavra (שלום)
shalom: paz como bem-estar total do ser humano, harmonia com Deus, com o
próximo e consigo mesmo. É por essa paz que a comunidade de discípulos e
discípulas deve lutar enquanto caminha, fazendo dessa paz o rumo da caminhada.
Não há prêmio para quem caminha promovendo a paz, mas há consequências: ser
chamados filhos de Deus. Na tradição bíblica, ser filho é ser parecido com o
pai. Quando alguém caminha promovendo a paz, se torna parecido com Deus, por
isso, será chamado seu filho.
A oitava bem-aventurança funciona
como uma espécie de credencial para o reconhecimento do discípulo e sua
pertença ao Reino: «Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da
justiça, porque deles é o Reino dos Céus» (v. 10). A justiça, por
excelência, é a prática de todas as bem-aventuranças anteriores. A quem adere
plenamente à lógica do Reino, não há outra consequência a não ser a
perseguição. Mas, mesmo diante da perseguição, a palavra de Jesus continua sendo
de ânimo e encorajamento: continuai caminhando, avançando, marchando em busca
do Reino que é vosso!
Viver as bem-aventuranças é,
portanto, abraçar um projeto de sociedade alternativa que, inevitavelmente,
entra em conflito com os sistemas dominantes baseados na exploração, no lucro,
na sobreposição de uns sobre os demais e pela violência. Mas é diante de tudo
isso, ou seja, no conflito, que a comunidade cristã deve avançar, seguir em
frente sem jamais desanimar. Por isso, Jesus reforçou todo o ensinamento
anterior, direcionando diretamente para os discípulos a conclusão com as
consequências do abraçar o seu projeto: «Bem-aventurados sois vós,
quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo tipo de mal
contra vós, por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa
recompensa nos céus» (vv. 11-12a). Alguns estudiosos vêem essa
afirmação como uma nova bem-aventurança, enquanto outros, a maioria, a vêem
como um reforço e síntese conclusiva das oito anteriormente apresentadas.
Aquelas oito são inseparáveis. Jesus não as apresenta como sugestões para os
discípulos escolherem uma ou outra. É preciso viver todas elas para ser
discípulo e discípula de Jesus, pois nelas ele traça o seu próprio retrato, diz
como ele mesmo viveu, caminhou ou avançou; e o discípulo deve, inevitavelmente,
viver como ele.
Assim, recordando que Paulo e os
demais cristãos de suas comunidades chamavam-se mutuamente de santos, e eram
cristãos porque levavam a sério as bem-aventuranças, podemos compreender que
celebrar todos os santos é recordar todos os que não aceitam as coisas como são
impostas, mas sabem mover-se, avançar e seguir um outro caminho, não para fugir
da realidade, mas para transformá-la à maneira de Jesus.
Para seguir Jesus é preciso estar em
estado permanente de marcha, caminhando contra tudo o que impede a realização
do Reino já aqui na terra. A comunidade cristã não pode mais aceitar que uma
mensagem tão encorajante e transformadora se transforme em sinal de resignação
e aceitação passiva diante de tudo o que impede o advento do Reino. A mensagem
das bem-aventuranças é libertadora porque convida o discípulo e a discípula a
sair de si, colocar-se em movimento rumo a um mundo melhor, mais justo e mais
fraterno. Enfim, as bem-aventuranças constituem o mais completo programa de
humanização que esse mundo já conheceu.
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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