Todos os anos, a liturgia do segundo domingo da Quaresma propõe a leitura de um dos relatos do episódio chamado, tradicionalmente, de “Transfiguração do Senhor”. Esse é um episódio narrado pelos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), o que possibilita à liturgia oferecer um texto para cada ano, conforme o ciclo litúrgico (A, B e C), sem necessariamente repetir, uma vez que, mesmo se tratando do mesmo episódio, cada evangelista o narra à sua maneira, conforme as suas intenções teológicas, suas habilidades literárias e, sobretudo, respondendo às necessidades de suas respectivas comunidades. Isso faz com que os três relatos apresentem diferenças entre si, apesar de serem muito parecidos. Neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico C, o texto proposto é o relato de Lucas – Lc 9,28b-36. Todos os três relatos da transfiguração são altamente ricos em teologia e simbologia, o que torna indispensável uma breve contextualização, para uma compreensão mais adequada, a começar pela definição do gênero literário da teofania, ao qual pertence o texto. Etimologicamente, teofania significa manifestação divina; é uma palavra de origem grega, formada da junção do substantivo “Theós” (Deus) com o verbo “faino” (aparecer, manifestar). Enquanto gênero literário, teofania designa o tipo de relato que descreve uma manifestação solene de Deus. Geralmente, são relatos carregados de elementos simbólicos, o que se vê no episódio da transfiguração, como a brancura, a nuvem e a voz celestial. Embora as teofanias sejam mais frequentes no Antigo Testamento, o Novo Testamento contém algumas, como o batismo de Jesus, a transfiguração, as aparições pascais e o relato de Pentecostes. Apesar da semelhança entre os três relatos, a versão de Lucas se destaca sobre os demais por possuir mais elementos exclusivos, como recordaremos ao longo da nossa reflexão.
Ainda a nível de contexto, é importante recordar o lugar que o relato da transfiguração ocupa no conjunto do Evangelho. Esse episódio é precedido por três importantes momentos da vida de Jesus e dos discípulos que o acompanhavam: a) a confissão de Pedro (Lc 9,18-21); b) o primeiro anúncio da paixão (Lc 9,22); c) a declaração de Jesus com as exigências para o discipulado (Lc 9,23-27). Se trata, portanto, de uma sequência narrativa altamente reveladora da identidade e do destino de Jesus. Por isso, os discípulos deveriam estar à par de tudo isso para decidirem se vale à pena continuar ou não no seu seguimento. Ora, Jesus tinha lhes perguntado sobre a sua identidade: o que dizia o povo e o que os próprios discípulos pensavam a seu respeito. Em nome dos Doze, Pedro respondeu que Jesus é “o Cristo de Deus”, ou seja, o Messias (Lc 9,18-22). Embora correta, a resposta de Pedro poderia ser facilmente distorcida, pois contemplava as expectativas do messianismo nacionalista vigente: um messias (Cristo) glorioso e potente; por isso, Jesus o repreendeu, mandando que não contassem nada a ninguém (Lc 9,21). Em seguida, ele fez o primeiro anúncio da sua paixão, morte e ressurreição, para evitar falsos entusiasmos entre os seus discípulos e as multidões que também o acompanhavam. Lodo depois disso, ele tratou de deixar claro que o seu seguimento compreendia diversas exigências, tais como: renunciar à própria vida e carregar a cruz a cada dia. As palavras de Jesus pareciam não ser suficientes para a compreensão dos discípulos que, contagiados pela ideologia nacionalista, não imaginavam ser possível um Messias sofredor. Outro dado interessante, ainda a nível de contexto, é que a transfiguração antecede o segundo anúncio da paixão (Lc 9,43-45) e, prepara para a viagem decisiva a Jerusalém, a maior seção do Evangelho segundo Lucas (Lc 9,51 – 19,27). Isso confere ainda mais importância a este episódio.
Feitas as devidas observações contextuais, olhemos então para o texto, recordando que o lecionário omite a primeira parte do versículo de abertura, que traz um indicativo temporal importante e mostra a clara relação com os episódios anteriores: «Cerca de oito dias depois destas palavras» (v. 28a). É importante fazer essa recordação, pois ajuda a compreender melhor o episódio em seu conjunto. Ora, o discurso referido é o primeiro anúncio da paixão e da apresentação das exigências básicas para o discipulado (Lc 9,22-27). Sem uma adesão plena, capaz de corresponder às exigências propostas, não há seguimento nem discipulado. O indicativo temporal “oito dias depois” é uma clara alusão do evangelista ao dia da experiência profunda com o Ressuscitado – o domingo –, que vai marcar a vida das primeiras comunidades, e o evangelista faz questão de antecipar aqui. Lucas segue a maneira greco-romana de contar os dias da semana, na qual contavam-se oito dias, pois o domingo ocupava o lugar do primeiro e do oitavo dia, ao mesmo tempo, ao contrário da contagem judaica, que demarcava rigorosamente a semana em sete dias. Com essa sua opção, o evangelista ensina que, para os seguidores e seguidoras de Jesus, o dia de encontro e celebração já não é o sábado, mas o domingo. Antecipa-se, assim, o rompimento com a sinagoga, já praticamente consolidado na época da redação do evangelho, em meados dos anos 80 do primeiro século.
O que aconteceu “cerca de oito dias” após o primeiro anúncio da paixão e a apresentação das exigências indispensáveis para o discipulado foi o seguinte: «Jesus levou consigo Pedro, João e Tiago e subiu à montanha para rezar» (v. 28b). É aqui que começa, de fato, o texto do lecionário. A princípio, é importante recordar que a escolha desses três discípulos não significa privilégio, como às vezes se diz, mas necessidade, embora mais tarde eles serão considerados as “colunas da Igreja” (Gl 2,9). Os evangelhos sinóticos mostram que eles não eram os melhores, mas sim os três mais difíceis de lidar e os que mais tinham dificuldade de assimilar os ensinamentos de Jesus. Pedro é sinônimo de dureza e fechamento; é o discípulo que Jesus mais repreende durante todo o seu itinerário. Como ele sempre se antecipa, sendo o primeiro a responder às perguntas de Jesus, é aquele que mais se expõe e, por isso, é o primeiro a ser corrigido. João e Tiago, conhecidos como “filhos do trovão” (Mc 3,17), eram os mais fanáticos, ambiciosos (Mc 10,35-45), de temperamento difícil, eram também os mais intolerantes. Pouco tempo após este episódio da transfiguração, Jesus repreenderá João por proibir a um homem que não fazia parte do grupo de pregar e expulsar demônios em seu nome (Lc 9,49-50). Os dois, João e Tiago, também serão repreendidos no início da viagem ao proporem tocar fogo nos samaritanos que os rejeitaram (Lc 9,51-55). Portanto, Jesus os chama para estarem mais perto de si pela necessidade de cada um e por não desistir do ser humano, apesar das fraquezas e debilidades. Eles necessitavam estar mais próximos a Jesus e aprender mais com ele.
Já nesse primeiro versículo, encontramos um detalhe importante que distingue o relato de Lucas dos outros dois (Mateus e Marcos): a oração como motivo da subida à montanha. Mateus e Marcos dizem apenas que Jesus subiu à montanha com os discípulos, mas somente Lucas diz o que foram para rezar. A oração é um traço característico de Jesus em todo o Evangelho de Lucas, sobretudo quando antecede os momentos decisivos de sua vida: antes da escolha dos Doze (Lc 6,12), antes de perguntar aos discípulos sobre a sua identidade (Lc 9,18), durante o caminho para Jerusalém (Lc 11,1), e antes de ser preso (Lc 22,39-46). Lucas caracteriza Jesus como um homem de oração: «Ele costumava retirar-se em lugares desertos para rezar» (Lc 5,16). A montanha é, por excelência, na linguagem bíblica, o lugar do encontro com Deus. Essa montanha não é determinada em nenhum dos evangelhos, embora a tradição, a partir de Orígenes – teólogo que viveu entre os séculos II e III – a tenha identificado como o Monte Tabor, o que não se sustenta com dados da Bíblia. É melhor mantê-la anônima, como fizeram os evangelistas, porque não se trata de um dado geográfico, mas teológico; toda ocasião de encontro e intimidade com Deus é uma subida à montanha.
A oração revela a verdadeira identidade de Jesus: «Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante» (v. 29). As vestes brancas e brilhantes são características do que é do céu (Lc 24,4; At 10,30), o que pertence a Deus. São elementos recorrentes na linguagem apocalíptica, muito típica nas teofanias. Com essa imagem, o evangelista revela que Jesus, embora homem, pertence também à esfera divina. Ele reflete a glória do Pai no seu rosto. Não se trata de um milagre; é uma maneira simbólica de dizer que, na oração, o ser humano se comunica claramente com Deus, rompendo as barreiras entre o humano e o divino. Também não se trata de uma antecipação da glória, como às vezes se diz, mas uma demonstração de que o humano e o divino se encontram e se fundem na oração, o que se comprova pela afirmação seguinte: «Eis que dois homens estavam conversando com Jesus: eram Moisés e Elias» (v. 30). Moisés e Elias, representantes da antiga aliança, respectivamente da Lei e dos Profetas, também estavam revestidos de glória, porque já pertenciam ao âmbito do divino; Moisés é aquele que morreu, «mas ninguém sabe onde é a sua sepultura» (Ex 34,6), e isso é um modo de dizer que o seu corpo foi levado para junto de Deus; já Elias, nem sequer morreu para o povo judeu, pois de acordo com o relato de 2Rs 2,11, foi levado para o céu em uma carruagem de fogo. Portanto, de acordo com a tradição hebraica, Moisés e Elias pertenciam ao âmbito celestial e, por isso, se comunicam com Jesus que também pertence a esse âmbito. E é a oração que favorece essa comunicação.
Outra particularidade importante de Lucas é que somente ele diz o assunto da conversa entre Jesus, Moisés e Elias: «Eles apareceram revestidos de glória e conversavam sobre a morte que Jesus iria sofrer em Jerusalém» (v. 31); sobre isso, Mateus e Marcos silenciam. Porém, essa tradução não é suficiente; o evangelista diz que eles conversavam sobre o “êxodo” de Jesus, (em grego: ἔξοδος – êxodos), o que comporta não só a morte, mas todo o mistério pascal: paixão, morte, ressurreição, ascensão e envio do Espírito. Jesus não vai apenas morrer, mas percorrer um itinerário completo de libertação, que comporta sofrimento e morte, mas culminará com a ressurreição, cujo fruto maior é o dom do Espírito Santo para orientar e conduzir as comunidades ao longo da história. Os discípulos não participam da conversa porque se distraem, dormindo: «Pedro e os companheiros estavam com muito sono. Ao despertarem, viram a glória de Jesus e os dois homens que estavam com ele» (v. 32). Aqui aparece outro detalhe exclusivo de Lucas, relacionado à oração: o sono dos discípulos. Esse detalhe é, na verdade, uma denúncia do evangelista: a falta de perseverança na oração pode privar a comunidade da experiência com Deus. Não se trata de um sono real, mas de uma imagem para descrever a desatenção e a falta de perseverança. No Monte das Oliveiras, já no contexto da paixão, Jesus irá repreendê-los exatamente porque estavam adormentados, quando deveriam estar rezando (Lc 22,45-46). Esse sono equivale à cegueira e fechamento de coração nos discípulos de Emaús, durante o caminho com o forasteiro desconhecido, Jesus ressuscitado.
Sem perseverança na oração, as propostas da comunidade tendem a ser superficiais, pois não são geradas da intimidade com Deus, o que o evangelista denuncia com a ideia absurda e ingênua de Pedro: «E, quando estes homens iam se afastando, Pedro disse a Jesus: “Mestre, é bom estarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Pedro não sabia o que estava dizendo» (v. 33). Antes de tudo, percebe-se a tentação do comodismo, pois ficar na montanha em oração é praticamente lavar as mãos para os problemas e sofrimentos do mundo, se trata, portanto, de uma fuga. Deve-se subir à montanha para fortalecer-se para a missão e os desafios que essa implica. No entanto, o mais grave na fala de Pedro, é revelar que Jesus ainda não era o centro da sua vida e nem do grupo dos discípulos: ele(s) continua(m) dando mais importância a Moisés! É esse o sentido de o nome de Moisés aparecer no centro: «uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias»; na mentalidade hebraica, o nome que aparece no centro é sempre o mais importante. Com isso, o evangelista está denunciando, as comunidades que colocam a Lei acima do Evangelho. Esse era um problema encontrado em muitas das comunidades primitivas, que Lucas e Paulo, sobretudo, combateram com muita ênfase em seus escritos (Atos dos Apóstolos e Cartas Paulinas). Onde o Evangelho não é o centro, não há discipulado nem cristianismo autênticos.
Diante do absurdo da fala de Pedro, o próprio Deus intervém e o interrompe: «Ele estava ainda falando, quando apareceu uma nuvem que os cobriu com sua sombra. Os discípulos ficaram com medo ao entrarem dentro da nuvem. Da nuvem, porém, saiu uma voz que dizia: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que ele diz!”» (vv. 34-35). A nuvem com sua sombra, ao longo da tradição bíblica é sinal da manifestação e presença de Deus. Essa cena é, praticamente, uma repetição da cena do batismo de Jesus: o Pai se manifesta, fala e dá testemunho do Filho. Diante das dúvidas e falta de convicção nos discípulos sobre a identidade de Jesus, quem tem mais propriedade para esclarecer é o seu Pai. Por isso, o mais importante aqui são as palavras que saem da nuvem: «Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que ele diz!». Mateus e Marcos mantem a fórmula da cena do batismo; Lucas a modifica, trocando a qualificação do Filho de Amado para Escolhido. “Amado” tem um sentido mais amplo; na verdade, todas as pessoas são amadas pelo Pai; “Escolhido” tem um sentido mais específico, denota a unicidade da missão de Jesus, o que o habilita a ser o único portador de palavras dignas de atenção, daquele momento em diante. Daí, a ordem: «Escutai o que ele diz!».
Moisés e Elias, como representantes da Lei e dos Profetas, já disseram tudo o que tinham a dizer; de agora em diante, somente o Evangelho tem palavras adequadas para a comunidade cristã. O Evangelho não contradiz a Lei e os Profetas, mas é a sua plenitude, ao mesmo tempo em que é diferente e novo. Por isso, enquanto o Pai dá ordem aos discípulos para escutarem seu Filho, o Escolhido, Moisés e Elias desapareceram: «Enquanto a voz ressoava, Jesus encontrou-se sozinho» (v. 36a). Ora, nas primeiras comunidades, inclusive entre os apóstolos, insistiam em usar o Antigo Testamento, sobretudo a Lei, como norma, gerando divisões e exclusões, o que Lucas denuncia com mais clareza no segundo volume de sua obra – Atos dos Apóstolos. O uso do Antigo Testamento (a Lei e os Profetas) deveria ser feito para incluir, para mostrar que o Evangelho de Jesus é o seu pleno cumprimento, e não para separar. Havia uma tendência de reproduzir na comunidade cristã a mesma estrutura e mentalidade do modelo de religião que Jesus combateu: apego à lei e exclusivismo. Por isso, o evangelista ensina que é Jesus o único e autêntico interprete da Escritura (Antigo Testamento); Moisés e Elias falaram o que tinham de falar e, de agora em diante, só vale o que Jesus disser, ou seja, o seu Evangelho.
Marcos (a fonte principal utilizada por Lucas) diz que Jesus proibiu os discípulos de falar sobre essa experiência. Lucas omite a proibição, mas diz que «Os discípulos ficaram calados e naqueles dias não contaram a ninguém nada do que tinham visto» (v. 36b). O silêncio dos discípulos é fruto de uma necessidade: eles devem anunciar Jesus, o Evangelho, mas da maneira certa, sem alimentar falsas ilusões, nem omitir as suas verdades. É melhor silenciar do que anunciar de modo equivocado. Eles perceberam a necessidade de, antes de tudo, escutar, como o Pai ordenou. O anúncio distorcido é, sem dúvidas, consequência de uma escuta superficial. Aqui está um dos ensinamentos mais importantes para as comunidades de todos os tempos: a necessita da escuta de Jesus, o Filho Escolhido. É claro que sua voz ressoará de diversas maneiras, sobretudo onde há dor, injustiça, sofrimento e opressão. É preciso discernimento para reconhecer a sua voz nas vozes anônimas e sofridas dos marginalizados da história. Sem ouvir essas vozes, o Evangelho não será anunciado em sua essência.
Que a liturgia deste segundo domingo da Quaresma ajude a nos conscientizar mais sobre o que é essencial na vida de discípulos e discípulas de Jesus, tornando nossas comunidades sempre mais parecidas com o Reino de Deus, sendo espaços de humanização e fraternidade. Que o percurso da Quaresma favoreça uma escuta sempre mais atenta e profunda ao tudo o que Jesus tem a falar. Somente escutando bem poderemos tornar o mundo mais humanizado e mais parecido com o seu projeto.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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