sábado, março 01, 2025

REFLEXÃO PARA O 8º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 6,39-45 – ANO B


Pelo terceiro domingo consecutivo, o evangelho proposto pela liturgia é tirado do “discurso da planície” do Evangelho de Lucas. Como afirmamos em outras ocasiões, esse discurso é a versão paralela ao “discurso da montanha” do Evangelho de Mateus. Partindo de uma fonte comum – a chamada “Fonte Q” –, cada evangelista montou o discurso conforme suas próprias necessidades pastorais, tendências teológicas e habilidades literárias. Por isso, embora a mensagem central possua significado equivalente em ambos os evangelhos, e haja equivalência na maior parte do conteúdo, há também consideráveis diferenças, que refletem a posição de cada autor e a realidade das primeiras comunidades destinatárias. A passagem selecionada para hoje – o oitavo domingo do tempo comum – é Lc 6,39-45. Esse texto é a continuação imediata daquele do domingo passado (Lc 6,27-38), e já contém alguns dos elementos conclusivos respectivo discurso. Com este domingo, conclui-se a liturgia dominical da primeira fase do tempo comum, que será interrompido para a vivência do ciclo pascal, cujo início se dá na Quarta-feira de Cinzas, que abre o tempo da Quaresma. Com isso, interrompe-se temporariamente também a leitura semi-contínua do Evangelho de Lucas. 

O texto proposto para hoje compreende um conjunto de sentenças proverbiais usadas como advertências e incentivo para a comunidade cristã manter-se coerente e fiel aos ensinamentos de Jesus. O discurso da planície, desde o seu início com a proclamação dos pobres como bem-aventurados e a série de denúncias e lamentos contra os ricos, apresenta a necessidade de uma verdadeira revolução no jeito de viver dos seguidores e seguidoras de Jesus, cuja expressão mais comprometedora é a exigência de amor ilimitado, até para com os inimigos (Lc 6,27.35), e a regra de ouro que ensina a “fazer aos outros o que deseja para si” (Lc 6,31). De fato, se trata de um programa de vida altamente revolucionário, guiado pelo amor, cujo êxito ou fracasso depende essencialmente da adesão e coerência dos discípulos à mensagem de Jesus e ao seu jeito de viver, foco do evangelho de hoje. O modo enfático como o evangelista apresenta estes ensinamentos indica que na época da redação do evangelho, provavelmente nos anos 80 do primeiro século, as comunidades já apresentavam sinais de distanciamento do que é essencial na vida cristã; daí a necessidade de recordar as exigências básicas para o seguimento autêntico de Jesus de modo tão enfático. 

Embora Jesus se encontrasse diante de um auditório numeroso e heterogêneo, pois além dos discípulos havia uma grande multidão, composta por pessoas da Judeia, de Jerusalém e do litoral de Tiro e Sidônia (Lc 6,17), os principais destinatários do discurso são os seus discípulos, os quais, no contexto narrativo do Evangelho, representam os cristão de todos os tempos. São eles, portanto, os que devem viver primeiro e de modo radical o programa de vida proposto por Jesus, que compreende o seu jeito mesmo de viver. Por isso, diz o evangelista que «Jesus contou uma parábola aos discípulos» (v. 39a). Como se vê, são os discípulos os que devem ouvir com atenção e pôr em prática o que Jesus está ensinando, como recorda o evangelista. É claro que o conteúdo do discurso da planície de Lucas, bem como o do equivalente discurso da montanha de Mateus (Mt 5–7), possui um alcance universal, é válido para todos povos e culturas, mas são os cristãos e cristãs de todos os tempos quem têm a responsabilidade de ser os primeiros a viver. Sobretudo, porque é a vivência dos ensinamentos desse discurso que atesta a verdadeira pertença a Jesus. De fato, nele estão as exigências básicas indispensáveis para o viver cristão. A maneira como começa o primeiro versículo indica uma chamada de atenção nos discípulos, os ouvintes principais, o que poderia ser visto como introdução a um novo ensinamento, como também o começo da conclusão de todo o discurso, o que de fato é. Começa aqui o arremate final do discurso, no qual Jesus começa a reivindicar a operacionalidade, a prática de tudo o que ensinou até então, desde que desceu da montanha à planície e ali começou a ensinar (Lc 6,17ss).

A primeira parte do discurso, como vimos há dois domingos, possui um estilo profético, com a proclamação das bem-aventuranças aos pobres e das denúncias e lamentos aos ricos, com a fórmula “ai de vós”. A segunda parte, cuja leitura fora iniciada no domingo passado e está sendo continuada hoje, aproximando-se da conclusão, possui um estilo sapiencial: comporta um conjunto de máximas proverbiais de grande impacto e importância nos ouvintes e leitores, a fim de levá-los à reflexão e à consequente adesão ao projeto de Jesus. No caso da sequência iniciada hoje, o evangelista chama de parábola (em grego: παραβολή – parabolê). Embora no mundo greco-romano a parábola signifique mais uma narrativa ou história, como são a maioria das histórias contadas por Jesus nos evangelhos, no mundo semita – ambiente sócio-cultural de Jesus – a parábola equivale também a provérbio ou máxima sapiencial, e é esse o sentido do termo no contexto do evangelho de hoje. Assim, com um provérbio bastante claro, Jesus chama a atenção dos seus seguidores e seguidoras a viverem como pessoas iluminadas e lúcidas e, sobretudo, abertas aos seus ensinamentos: «Pode um cego guiar outro cego? Não cairão os dois num buraco?» (v. 39b). Além da imagem impactante – um cego guiando outro cego –, Jesus recorre também à pergunta retórica como recurso literário, a fim de impactar os ouvintes leitores. Trata-se de um recurso muito apreciado nas culturas onde as tradições orais possuem grande importância, como era a cultura judaica na época, além de ser um instrumento de persuasão relevante também em ambientes mais refinados culturalmente, como o mundo greco-romano, que era o provável mundo do evangelista Lucas. 

A cegueira, em linguagem bíblica, equivale a trevas, significa ausência de Deus e dos seus mandamentos. Para a comunidade de Jesus, significa fechamento ao Evangelho, o que leva a pessoa ao egoísmo e suas danosas consequências. Se os cristãos são chamados a ser luz, logo devem esforçar-se para evitar a cegueira. Isso se faz vivendo e praticando o que ensina o Evangelho. Só pode ser luz para os outros quem já é portador de luz, ou seja, quem se deixa iluminar pelo Evangelho de Jesus. Quem se fecha ao Evangelho, por outro lado, deixa de ser iluminado, fechando-se em si mesmo e agindo como juiz de si e dos outros. Esse provérbio aparece também no Evangelho de Mateus, mas não no discurso da montanha, e sim numa polêmica de Jesus com os escribas e fariseus, considerados cegos por ele (Mt 15,14). Em Lucas, o provérbio chega a ser mais comprometedor, pois Jesus adverte que os cegos que se fazem de guias podem estar na própria comunidade, por isso é tão indispensável a vigilância pessoal, para não cair na cegueira que ele condena. Os cegos, portanto, apesar de estarem na comunidade, como membros, às vezes até como lideranças, o que é mais preocupante, são aquelas pessoas que não assimilam o jeito misericordioso de ser de Deus e, mesmo assim, reivindicam para si o direito de julgar os demais, ditando regras de comportamento, apresentando-se como defensores da moral e dos bons costumes. No coração do discurso está o amor ilimitado, até para com os inimigos, que sendo amados deixam de ser inimigos, e a misericórdia de Deus, que deve ser o parâmetro do agir humano, como indicava o evangelho do domingo passado (Lc 6,27-38). Na parte conclusiva, portanto, Jesus adverte sobre o perigo da falta de amor e misericórdia, o que torna o ser humano cego e, por isso, incapaz de ser guia para outras pessoas. 

Quando mantida, a cegueira denunciada por Jesus traz consequências sérias para a comunidade, podendo levá-la toda ao precipício, sobretudo quando cultivada pelas lideranças. Por isso, o segundo provérbio possui muita conexão com o primeiro, apesar de imagens empregar imagens tão diferentes.  Nele, temos uma forte uma denúncia aos sinais de divisão e também de prepotência que podem surgir na comunidade. Consequentemente, se torna um convite à humildade e ao reconhecimento dos limites e da própria posição na comunidade: «Um discípulo não é maior do que o mestre; todo discípulo bem formado será como o mestre» (v. 40). Provavelmente, esse versículo reflete mais a situação da comunidade de Lucas do que mesmo a do grupo inicial dos discípulos de Jesus. Tendo se passado quase cinquenta anos da morte de Jesus, já se sentia uma tendência de hierarquização e institucionalização no movimento cristão, o que comprometia bastante a vida comunitária, pois feria o princípio de uma comunidade fraterna, igualitária, como propôs Jesus. Para manter o princípio da igualdade é necessário que estejam todos numa mesma condição e ninguém se atreva a ocupar o lugar de mestre que pertence somente a Jesus. Ao invés de ocupar o lugar do mestre, os discípulos devem esforçar-se somente para ser como ele, vivendo como ele viveu, sobretudo, no jeito de amar, e sempre abertos a novos aprendizados conforme as necessidades de acompanharem os “sinais dos tempos”.

Com o segundo provérbio temos, portanto, um convite para se buscar conhecer Jesus e sua mensagem cada vez mais, para tornar-se semelhante a ele, sobretudo no amor, que é a essência do seu ensinamento. E ser como ele exige disposição de amar até os inimigos, antecipando-se em fazer o bem. Também esse provérbio se encontra em Mateus (Mt 10,24-25), mas deslocado do discurso da montanha. Na verdade, aparece já no discurso missionário, o segundo dos cinco grandes discursos de Jesus no primeiro Evangelho. Na ocasião, Jesus está preparando seus discípulos para a missão e, diante disso, uma recomendação básica é exatamente essa consciência, o que era muito caro ao ideal de discípulo para a mentalidade semita: o discípulo não poderia superar o mestre aprendendo novas doutrinas, o que seria uma desmoralização, pois passaria a ideia de que o ensinamento do mestre não tinha sido suficiente. É claro que, aplicando aos seus discípulos, a preocupação de Jesus não é tanto essa, e sim combater as tendências de carreirismo e competição que poderiam instalar-se na sua comunidade e, certamente, foi isso que Lucas percebeu na época da redação da sua obra. Numa comunidade cristã, quando alguém assume uma condição acima do discipulado, perde-se o princípio da igualdade e, consequentemente, o ideal de fraternidade. Ora, todos devem ser apenas discípulos, uma vez que há um único mestre: Jesus de Nazaré. 

Do risco de alguém na comunidade ocupar o lugar do mestre, emanam diversos outros riscos, como a arrogância e a prepotência, inclusive falsos ideais de perfeição e moralismos. De fato, tudo desmorona numa comunidade quando o discipulado é ignorado e distorcido; o cristianismo se torna peça de ficção. E isso não depende apenas das lideranças, pois também os demais membros podem alimentar, às vezes, projetos de poder e triunfalismos, além de falsos moralismos, talvez o pior dos males do cristianismo atual, distorcendo completamente a essência do que Jesus ensinou e deixou como legado maior: a primazia do amor e da misericórdia, em qualquer nível de relação interpessoal e comunitário. De males como carreirismo, falsos moralismos e puritanismos, emanam tantos outros, como divisões, rivalidades e as mais diversas formas de preconceito e segregação. E tudo isso, obviamente, é contrário ao projeto de Jesus. Por isso, sua séria advertência vai se tornando cada vez mais enfática e denunciadora: «Por que vês o cisco que está no olho do teu irmão, e não percebes a trave que há no teu próprio olho?» (v. 41). Mais do que um risco, esse parece ser um problema já enraizado na comunidade, e combatido pelo evangelista, ao recordar a posição do próprio Jesus diante de tal situação. Existiam e ainda existem pessoas que se consideram puras e irrepreensíveis, atribuindo para si a capacidade e o direito de julgar os outros, escondendo-se em expressões perigosas de devocionismo e tradicionalismo. Esse tipo de comportamento é totalmente alheio ao ensinamento de Jesus e, por isso, inadequado à comunidade cristã. A advertência em forma de pergunta retórica, mais uma vez, ressalta a importância do que está sendo ensinado. 

O próprio Jesus reforça o combate a todas essas tendências, tão prejudiciais ao seu projeto, empregando imagens cada vez mais interpelantes e denunciadoras: «Como podes dizer a teu irmão: “Irmão, deixa-me tirar o cisco do teu olho”, quando não percebes a trave no teu próprio olho? Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás enxergar bem para tirar o cisco do olho do teu irmão» (v. 42). Essa é a primeira vez que Lucas emprega a palavra hipócrita no seu evangelho; esse termo (em grego: ὑποκριτής – hipocritês) significa literalmente “aquele que põe a máscara”, designa o ator ou intérprete no teatro grego. Enquanto Mateus, por exemplo, reserva essa palavra aos fariseus e mestres da Lei (Mt 6,2.5.16; 15,7;22,18), os mais tradicionais adversários de Jesus, Lucas reconhece o perigo da hipocrisia também no seio da comunidade cristã. Certamente, ele já constatava o enraizamento dessa tendência tão nociva na sua própria comunidade. Por isso, recorda tão bem a denúncia de Jesus, aplicando-a ao contexto da sua comunidade, uma vez que se trata de um ensinamento perene, válido para todos os tempos e lugares, inclusive, muito necessário para os dias atuais. Aliás, todos os ensinamentos de Jesus se aplicam a todos os tempos e lugares, sobretudo o conteúdo deste discurso – seja chamado da “montanha” ou da “planície” –, universalmente reconhecido como a maior lição de humanização que a humanidade já conheceu. Geralmente, quem mais vê defeitos no outro, quem se considera irrepreensível diante de Deus, quem tem facilidade em julgar o próximo, são as pessoas mais distantes dos verdadeiros valores do Evangelho. Essa tendência deve ser combatida e denunciada constantemente, pois fere o ideal de vida proposto por Jesus.

À medida em que o discurso se aproxima do final, o emprego de imagens fortes se intensifica ainda mais. Na sequência do texto de hoje, vem empregada a imagem da árvore com os frutos, com a finalidade de animar os cristãos a traduzir na vida concreta a relação com Cristo. Essa imagem é ainda mais significativa, tendo em vista que a relação entre árvore e fruto é muito clara e vital, acessível a todos, em qualquer cultura. Eis o que ele diz: «Não existe árvore boa que dê frutos ruins, nem árvore ruim que dê frutos bons. Toda árvore é reconhecida pelos seus frutos. Não se colhem figos de espinheiros, nem uvas de plantas espinhosas» (vv. 43-44). A pertença de alguém a Cristo e a coerência aos seus ensinamentos serão reveladas naturalmente pelos frutos, ou seja, pelo agir concreto e cotidiano, jamais pelas aparências. De quem se alimenta do Evangelho, não podem brotar frutos que não sejam amor e misericórdia, justiça e solidariedade. Ao invés de julgar o próximo, conforme a advertência anterior (vv. 41-42), os seguidores e seguidoras de Jesus devem preocupar-se com a qualidade dos frutos gerados. A oposição entre frutos bons e ruins deve ajudar o ouvinte e leitor a perceber as consequências de suas ações e pensamentos, levando-os a uma reflexão mais profunda sobre a fonte de todo o agir humano, conforme a mentalidade bíblica: o coração. É claro que a relação entre árvore e fruto apresentada no texto não possui valor científico acerca do ciclo vital das árvores. É um modo figurado de ensinar que aquilo que fazemos e falamos é consequência daquilo que somos, o que torna a advertência tão pertinente. Enfim, é uma maneira de dizer que nosso agir e nossas palavras refletem aquilo que realmente somos, que é a nossa interioridade, ou seja, o coração e tudo o que se tem nele.

No versículo conclusivo – não do discurso em si, mas da passagem litúrgica –, o evangelista mostra Jesus contando, de fato, uma pequena parábola, no sentido de história ou narrativa, propriamente, como se lê: «O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração. Mas o homem mau tira coisas más do seu mau tesouro, pois sua boca fala do que o coração está cheio» (v. 45). Aqui ele emprega novas imagens, ensinando que, além do agir, também as palavras possuem grande importância para a vida cristã, pois revelam a qualidade da fonte que as origina, que é o coração humano. E o coração como um tesouro é uma imagem clássica na linguagem bíblica, sobretudo nos escritos sapienciais (Eclo 29,11), pois é o que o ser humano tem de mais precioso, para a mentalidade semita; é a sede do processamento de todos os sentimentos e pensamentos. Se o comportamento e o agir são importantes e decisivos para o bem da comunidade e da vida em si, cada um e cada uma deve estar atento ao que origina tal agir, que é o coração. Por isso, o cuidado com as disposições interiores, das quais dependem se os frutos produzidos serão bons ou ruins.

À guisa de conclusão, podemos afirmar que o ensinamento do evangelho de hoje já constitui uma verdadeira preparação para a Quaresma, cujo início se dará na próxima quarta-feira. A interrupção temporária da leitura semi-contínua do Evangelho de Lucas, texto característico do ano litúrgico vigente – ano C – acontece justamente no ponto mais alto do ensinamento de Jesus no respectivo livro. Sem a assimilação do jeito de ser de Jesus, tão bem expresso no discurso da planície, não se tornar realidade concreta na vida cotidiana, todas as práticas de penitência e devoção realizadas intensamente no tempo da Quaresma serão apenas teatro, ou seja, hipocrisia. Que as palavras de Jesus ressoadas em nossos ouvidos a partir do evangelho de hoje cure nossas cegueiras e nos leve a produzir frutos dignos do seu seguimento. 

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

Um comentário:

  1. Que maravilha reflexão!
    Inspiradora e comprometedora a um verdadeiro seguimentoa Jesus Cristo!

    Deus abençoe sempre!

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