Assim como no quinto domingo,
também no sexto domingo do tempo da Páscoa o evangelho é tirado do discurso de
despedida de Jesus do Evangelho de João, todos os anos, alternando-se os textos
de acordo com o ciclo litúrgico. Como afirmado na contextualização da reflexão
do domingo passado, conforme a dinâmica narrativa do Quarto Evangelho, Jesus
pronunciou este discurso durante a última ceia com seus discípulos, em
Jerusalém, no cenáculo. Esse discurso é também chamado de “Testamento de
Jesus”, pois contém os elementos essenciais de seu ensinamento, como o
mandamento do amor, por exemplo, que foi o tema central da passagem lida na
liturgia do domingo passado. Também contém as principais promessas de Jesus aos
seus discípulos, como a do envio do Espírito Santo, elemento principal no texto
de hoje. Por isso, à medida em que se aproxima a solenidade da ascensão, é
importante que a comunidade cristã tenha clareza do que Jesus ensinou, quais
certezas deixou e como continuar a experimentar a sua presença, mesmo após o
seu retorno ao Pai. É exatamente isso que o evangelho de hoje – Jo 14,23-29 –
quer mostrar.
No Evangelho de João, o relato da
última ceia ocupa cinco capítulos (Jo 13–17), totalizando cento e cinquenta e
cinco versículos, o que corresponde a um quarto de todo o livro. Não resta
dúvidas de que este dado indica a importância que o evangelista dá ao
acontecimento. Para o autor deste Evangelho,
especialmente, a ceia não significa apenas o consumo de alimentos e nem a
vivência de um rito, tampouco uma mera confraternização. A ceia é, acima de
tudo, um momento forte de catequese e autorrevelação de Jesus; é o momento de
apresentação de seu testamento, como é considerado o seu longo discurso. Após o gesto do lava-pés (Jo 13,1-15), o relato da
ceia é todo ocupado por palavras de Jesus, com pequenas introduções do narrador
e raras interrupções de alguns discípulos, todas muito breves (13,36-38;
14,5.8.22). Entre todos os evangelhos, essa é sequência em que Jesus mais fala
de modo ininterrupto, sendo uma das peculiaridades do Quarto Evangelho. No
entanto, enquanto discursava, alguns discípulos o interromperam com perguntas e
reivindicações, como afirmamos há pouco. O texto empregado pela liturgia para
este domingo corresponde exatamente à resposta de Jesus à interrupção de um dos
discípulos. É necessário recordar este detalhe para o compreendermos melhor.
Jesus tinha acabado de prometer o
Espírito Santo à comunidade dos discípulos (Jo 14,16-17), garantindo, desse modo,
a continuidade da sua própria presença entre eles; presença essa, condicionada
à vivência do mandamento do amor (Jo 13,35; 14,15.21). A quem amasse
verdadeiramente como ele amou e ensinou a amar, Jesus prometeu se manifestar (Jo
14,21). Diante disso, «Judas, não o Iscariotes, perguntou-lhe: ‘Senhor,
por que vais te manifestar a nós e não ao mundo?’» (Jo 14,22). Trata-se
do outro Judas, como o próprio evangelista explica, pois, o Iscariotes não
fazia mais parte do grupo, já tinha inclusive abandonado o cenáculo para
executar o seu plano de traição e entrega de Jesus (Jo 13,31). A pergunta de
Judas não expressa uma dúvida, mas uma reivindicação; antes de tudo, revela uma
concepção triunfalista de messianismo, com manifestações gloriosas e sinais
extraordinário. Isto mostra que ele e os demais discípulos ainda não estavam
convictos da força do amor como único sinal de pertença a Jesus e da sua
presença entre eles (Jo 13,35).
Ao questionamento de Judas, eis então, a resposta de Jesus: «Se
alguém me ama, guardará a minha palavra, e o meu Pai o amará, e nós viremos e
faremos nele a nossa morada. Quem não me ama, não guarda a minha palavra. E a
palavra que escutais não é minha, mas do Pai que me enviou» (vv.
23-24). A resposta de Jesus é tão importante, que ele diz a mesma coisa duas
vezes: na primeira, de maneira afirmativa (v. 23), e na segunda, de maneira
negativa (v. 24). Essa era uma técnica retórica semita de uso bastante frequente,
empregada sempre para se apresentar um ensinamento de grande valor, favorecendo
a assimilação dos ouvintes/leitores. Ao invés de uma manifestação
extraordinária, Jesus afirma que, tanto ele quanto o Pai, irão se manifestar na
vida de quem ama à sua maneira; não através de um evento pontual extraordinário,
mas fazendo morada permanente. Essa é a primeira vez que Jesus reivindica o
amor dos discípulos também para si. Até então, ele tinha exigido apenas que os
discípulos se amassem reciprocamente. Agora, ele diz que é necessário que o
amem também, pois amá-lo é condição para receber o amor do Pai, além de ser o
critério para saber se a sua palavra é, de fato, guardada, ou seja, vivida. Ao reivindicar
o amor para si, Jesus não ao faz como exigência, mas como possibilidade, apresentando
logo as consequências: se o amamos, seremos moradas dele e do seu Pai, o que se
demonstra concretamente com a adesão à sua palavra.
É necessário, portanto, amar
Jesus para guardar as suas palavras. Sem amor, é impossível, pois suas palavras
são bastante comprometedoras e exigentes; inclusive, em outra ocasião, os
discípulos tinham se queixado que as suas palavras eram muito duras e, por
isso, alguns deixaram de segui-lo quando perceberam isso (Jo 6,60ss). Logo,
somente o amor pode motivar a adesão a palavras tão exigentes quanto o
mandamento do amor, por exemplo, núcleo central da sua palavra. Nesse contexto,
o termo palavra possui o mesmo significado que mandamento. Portanto, a palavra
à qual ele se refere aqui é o próprio mandamento do amor, como síntese de todo
o seu ensinamento, tema do Evangelho do domingo passado. Não há outro meio de
manifestação de Jesus e do Pai que não seja o amor, pois quem ama se torna
morada de ambos. Consequentemente, para o mundo conhecer a Deus e ao próprio
Jesus depende da maneira de viver dos seus discípulos e discípulas. Quando
vivem e amam à maneira de Jesus, os discípulos não apenas manifestam Deus ao
mundo, mas também o transformam, promovendo a vida em abundância,
humanizando-se e tornando-se humanizadores, por consequência (cf. Jo 10,10).
Na ceia, Jesus já tinha clareza
do que estava para acontecer; sabia que em pouco tempo seria capturado e
condenado; por isso, com muita franqueza, disse: «Isso é o que vos
disse enquanto estava convosco» (v. 25). Suas horas de presença física
entre os discípulos estavam contadas e ele tinha convicção disso. No entanto,
mesmo partindo para o Pai, ele não deixará de falar à sua comunidade, conforme já
prometera (Jo 14,16) e agora reforça a promessa: «o defensor, o
Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ele ensinará tudo e vos
recordará tudo o que vos tenho dito» (v. 26). Com três funções
anunciadas, o Espírito Santo garante a continuação da missão da missão de Jesus
no mundo, através da vida dos seus seguidores. A primeira função é bastante
ampla: ser “defensor”, embora esse termo não traduza suficientemente a riqueza
da palavra empregada pelo evangelista no idioma original do texto, o grego:
“parácletos” (Παράκλητος). Em todo o
Novo Testamento, somente textos de tradição joanina empregam essa palavra (Jo
14,16.26; 15,26; 16,7; 1Jo 2,1). Embora às vezes esse termo seja empregado como
um título para o Espírito Santo, ele exprime uma de suas funções primordiais.
Além de “defensor”, como aparece na tradução do lecionário, pode ser traduzido
também como “advogado” ou “consolador” ou até mesmo “intercessor”, termos
também insuficientes. Se trata de uma palavra composta (Παρά/pará =
“junto a” + κλητός/kletós = “chamado”) cujo
significado literal é “chamado a estar junto”. É claro que, estando junto, o
Espírito Santo defende, consola e encoraja os discípulos sempre; mas seu papel
é ilimitado e indescritível.
Das funções
mais concretas atribuídas ao Espírito Santo, Jesus garante duas aos seus discípulos:
“ensinar” e “recordar”. Ambas, exigem fidelidade e perseverança da comunidade,
e estão intrinsecamente relacionadas. Como o ensinamento de Jesus, embora
universal e completo, foi condicionado às circunstâncias de tempo e espaço, é
preciso que seja constantemente interpretado e atualizado, conforme a difusão
da sua mensagem pelo mundo. Ora, ao longo da história, os continuadores da sua
missão se deparam com situações que não foram previstas em seu curto ministério
de apenas três anos na Palestina; por isso, é necessário que as comunidades
cristãs de todos os tempos sejam sensíveis ao Espírito Santo para que esse
torne o que Jesus ensinou sempre novo e dinâmico. Não se trata, portanto, de
ensinar novas coisas, pois Jesus já ensinou tudo, mas de atualizar esse
ensinamento e interpretá-lo corretamente, conforme as necessidades das pessoas
e as circunstâncias sócio históricas. Nesse sentido, é imprescindível também a
função de “recordar”, pois são muitos os riscos de esquecimento da essência do
que Jesus ensinou, à medida em que surgem novas realidades e desafios. Nas
tradições bíblicas, o verbo “recordar” não significa apenas lembrar de algo do
passado, mas é tornar vivo e presente o objeto da recordação, o que, neste caso,
é a totalidade do ensinamento de Jesus. Essa recordação compreende também a
interpretação correta do que foi ensinado outrora, conforme as necessidades e
os sinais dos tempos. Portanto, na certeza da presença do Espírito Santo,
enviado pelo Pai em nome de Jesus, para “estar junto” dos seus, a comunidade
cristã é ensinada e pode ensinar, ao mesmo tempo, desde que mantenha viva a
recordação de tudo o que Jesus ensinou aos primeiros discípulos. É assim que o
Espírito Santo faz a missão de Jesus continuar sempre atual, tornando a sua
presença viva e vivificante.
À medida em
que avança no discurso, Jesus confere cada vez mais responsabilidades aos
discípulos, principalmente com essa resposta a Judas, ao dizer que a
manifestação de Deus ao mundo seria apenas a maneira de amar dos discípulos,
acompanhada da vivência da sua palavra. Quem viver assim, será morada de Jesus
e do Pai e terá a assistência perene do Espírito Santo. Para os discípulos,
provavelmente com medo, isso ainda não era suficiente; por isso, Jesus antecipa
o seu primeiro dom de Ressuscitado: «Deixo-vos a paz, a minha paz vos
dou; mas não a dou como o mundo. Não se perturbe o vosso coração» (v. 27). Temos aqui mais
uma herança que Jesus deixa para os seus, reforçando que seu longo discurso de
despedida é mesmo um testamento. O Espírito Santo foi prometido para o futuro
(v. 26), como será dado após a ressurreição (Jo 20,22), mas a paz é dada ainda
no presente: Jesus dá a sua paz antes mesmo de partir para o Pai, pedindo aos
discípulos que não permitam que o medo tome conta de seus corações: «Não
se perturbe o vosso coração». Ora, além da comoção pela partida
do Mestre, os discípulos sofriam também com o medo de terminar como ele, sendo
condenados precocemente à morte. A paz é a superação do medo, uma vez que
comporta a totalidade dos dons divinos e messiânicos.
No vocabulário do Quarto
Evangelho, a paz está na mesma linha de outras palavras caras a João, como luz,
verdade, vida e salvação, indo além do significado vigente no judaísmo, como o
bem-estar total da pessoa, incluindo a saúde e a prosperidade. A paz de Jesus é
muito mais diferente ainda da “pax romana”, imposta pelo império romano, o que
não passava de uma política de controle e repressão, com a imposição de uma
falsa tranquilidade pelo uso da força, em nome da ordem social. Portanto, a paz
de Jesus é única, e sem essa é impossível viver com um amor intenso como o seu.
A sua paz é um dom pascal que, por necessidade, ele antecipou aos discípulos no
momento da ceia; tanto que ao se manifestar (aparecer) nas duas primeiras vezes
como Ressuscitado, no meio deles, o seu primeiro gesto foi dar-lhes a
paz: «a paz esteja convosco!» (Jo 20,19.21.26). A paz e a sua
promoção, portanto, a exemplo do amor, também são sinais distintivos da comunidade
cristã no mundo. São bens salvíficos e meios de humanização das pessoas e do
mundo. Por isso, ser cristão é ser artesão da paz, como tantas vezes recordou o
Papa Francisco.
Na continuação e conclusão do
texto, percebe-se que Jesus se esforça o máximo possível para que seus
discípulos aceitem a sua partida, não como perda, mas como ganho, pois é o
único meio para tornar realidade tudo o que lhes prometera: «Ouvistes o
que eu vos disse: ‘Vou, mas voltarei a vós’. Se me amásseis, ficaríeis alegres
porque vou para o Pai, pois o Pai é maior do que eu. Disse-vos isso, agora,
antes que aconteça, para que, quando acontecer, vós acrediteis» (vv.
28-29). Sua partida para junto do Pai não pode causar tristeza; pelo contrário,
deve ser motivo de alegria, mesmo que comporte a sua morte, pois é prova de que
a sua obra foi consumada e a vontade do Pai foi realizada em plenitude, ou
seja, Jesus viveu intensamente como o Pai quis que ele vivesse, ao enviá-lo ao
mundo: não para condenar, mas para salvar (Jo 3,17). Por isso, a sua fidelidade
ao Pai deve ser motivo de alegria para os discípulos, ao invés de causar medo e
tristeza, como eles estavam sentindo.
Na certeza de que Jesus e o Pai fazem morada em quem vive o mandamento do amor, e ainda confere o Espírito Santo para ficar junto, ensinar e recordar tudo o que Ele mesmo ensinou, cabe aos discípulos e discípulas de todos os tempos, o esforço para que tudo isso seja manifestado também ao mundo. E a condição para que isso aconteça é a vivência do mandamento do amor pelos próprios discípulos. Basta que se amem uns aos outros como ele amou para que sejam reconhecidos como discípulos. Esse reconhecimento já é prova concreta de sua presença no mundo, é sinal de que sua mensagem não acabou, continua viva, sendo a única força de transformar o mundo, humanizando-o por meio do amor. É necessário observar sua palavra para que tudo isso aconteça.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN