sábado, maio 24, 2025

REFLEXÃO PARA O 6º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 14,23-29 (ANO C)

 


Assim como no quinto domingo, também no sexto domingo do tempo da Páscoa o evangelho é tirado do discurso de despedida de Jesus do Evangelho de João, todos os anos, alternando-se os textos de acordo com o ciclo litúrgico. Como afirmado na contextualização da reflexão do domingo passado, conforme a dinâmica narrativa do Quarto Evangelho, Jesus pronunciou este discurso durante a última ceia com seus discípulos, em Jerusalém, no cenáculo. Esse discurso é também chamado de “Testamento de Jesus”, pois contém os elementos essenciais de seu ensinamento, como o mandamento do amor, por exemplo, que foi o tema central da passagem lida na liturgia do domingo passado. Também contém as principais promessas de Jesus aos seus discípulos, como a do envio do Espírito Santo, elemento principal no texto de hoje. Por isso, à medida em que se aproxima a solenidade da ascensão, é importante que a comunidade cristã tenha clareza do que Jesus ensinou, quais certezas deixou e como continuar a experimentar a sua presença, mesmo após o seu retorno ao Pai. É exatamente isso que o evangelho de hoje – Jo 14,23-29 – quer mostrar.

No Evangelho de João, o relato da última ceia ocupa cinco capítulos (Jo 13–17), totalizando cento e cinquenta e cinco versículos, o que corresponde a um quarto de todo o livro. Não resta dúvidas de que este dado indica a importância que o evangelista dá ao acontecimento. Para o autor deste Evangelho, especialmente, a ceia não significa apenas o consumo de alimentos e nem a vivência de um rito, tampouco uma mera confraternização. A ceia é, acima de tudo, um momento forte de catequese e autorrevelação de Jesus; é o momento de apresentação de seu testamento, como é considerado o seu longo discurso. Após o gesto do lava-pés (Jo 13,1-15), o relato da ceia é todo ocupado por palavras de Jesus, com pequenas introduções do narrador e raras interrupções de alguns discípulos, todas muito breves (13,36-38; 14,5.8.22). Entre todos os evangelhos, essa é sequência em que Jesus mais fala de modo ininterrupto, sendo uma das peculiaridades do Quarto Evangelho. No entanto, enquanto discursava, alguns discípulos o interromperam com perguntas e reivindicações, como afirmamos há pouco. O texto empregado pela liturgia para este domingo corresponde exatamente à resposta de Jesus à interrupção de um dos discípulos. É necessário recordar este detalhe para o compreendermos melhor.

Jesus tinha acabado de prometer o Espírito Santo à comunidade dos discípulos (Jo 14,16-17), garantindo, desse modo, a continuidade da sua própria presença entre eles; presença essa, condicionada à vivência do mandamento do amor (Jo 13,35; 14,15.21). A quem amasse verdadeiramente como ele amou e ensinou a amar, Jesus prometeu se manifestar (Jo 14,21). Diante disso, «Judas, não o Iscariotes, perguntou-lhe: ‘Senhor, por que vais te manifestar a nós e não ao mundo?’» (Jo 14,22). Trata-se do outro Judas, como o próprio evangelista explica, pois, o Iscariotes não fazia mais parte do grupo, já tinha inclusive abandonado o cenáculo para executar o seu plano de traição e entrega de Jesus (Jo 13,31). A pergunta de Judas não expressa uma dúvida, mas uma reivindicação; antes de tudo, revela uma concepção triunfalista de messianismo, com manifestações gloriosas e sinais extraordinário. Isto mostra que ele e os demais discípulos ainda não estavam convictos da força do amor como único sinal de pertença a Jesus e da sua presença entre eles (Jo 13,35).

Ao questionamento de Judas, eis então, a resposta de Jesus: «Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e o meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada. Quem não me ama, não guarda a minha palavra. E a palavra que escutais não é minha, mas do Pai que me enviou» (vv. 23-24). A resposta de Jesus é tão importante, que ele diz a mesma coisa duas vezes: na primeira, de maneira afirmativa (v. 23), e na segunda, de maneira negativa (v. 24). Essa era uma técnica retórica semita de uso bastante frequente, empregada sempre para se apresentar um ensinamento de grande valor, favorecendo a assimilação dos ouvintes/leitores. Ao invés de uma manifestação extraordinária, Jesus afirma que, tanto ele quanto o Pai, irão se manifestar na vida de quem ama à sua maneira; não através de um evento pontual extraordinário, mas fazendo morada permanente. Essa é a primeira vez que Jesus reivindica o amor dos discípulos também para si. Até então, ele tinha exigido apenas que os discípulos se amassem reciprocamente. Agora, ele diz que é necessário que o amem também, pois amá-lo é condição para receber o amor do Pai, além de ser o critério para saber se a sua palavra é, de fato, guardada, ou seja, vivida. Ao reivindicar o amor para si, Jesus não ao faz como exigência, mas como possibilidade, apresentando logo as consequências: se o amamos, seremos moradas dele e do seu Pai, o que se demonstra concretamente com a adesão à sua palavra.

É necessário, portanto, amar Jesus para guardar as suas palavras. Sem amor, é impossível, pois suas palavras são bastante comprometedoras e exigentes; inclusive, em outra ocasião, os discípulos tinham se queixado que as suas palavras eram muito duras e, por isso, alguns deixaram de segui-lo quando perceberam isso (Jo 6,60ss). Logo, somente o amor pode motivar a adesão a palavras tão exigentes quanto o mandamento do amor, por exemplo, núcleo central da sua palavra. Nesse contexto, o termo palavra possui o mesmo significado que mandamento. Portanto, a palavra à qual ele se refere aqui é o próprio mandamento do amor, como síntese de todo o seu ensinamento, tema do Evangelho do domingo passado. Não há outro meio de manifestação de Jesus e do Pai que não seja o amor, pois quem ama se torna morada de ambos. Consequentemente, para o mundo conhecer a Deus e ao próprio Jesus depende da maneira de viver dos seus discípulos e discípulas. Quando vivem e amam à maneira de Jesus, os discípulos não apenas manifestam Deus ao mundo, mas também o transformam, promovendo a vida em abundância, humanizando-se e tornando-se humanizadores, por consequência (cf. Jo 10,10).

Na ceia, Jesus já tinha clareza do que estava para acontecer; sabia que em pouco tempo seria capturado e condenado; por isso, com muita franqueza, disse: «Isso é o que vos disse enquanto estava convosco» (v. 25). Suas horas de presença física entre os discípulos estavam contadas e ele tinha convicção disso. No entanto, mesmo partindo para o Pai, ele não deixará de falar à sua comunidade, conforme já prometera (Jo 14,16) e agora reforça a promessa: «o defensor, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ele ensinará tudo e vos recordará tudo o que vos tenho dito» (v. 26). Com três funções anunciadas, o Espírito Santo garante a continuação da missão da missão de Jesus no mundo, através da vida dos seus seguidores. A primeira função é bastante ampla: ser “defensor”, embora esse termo não traduza suficientemente a riqueza da palavra empregada pelo evangelista no idioma original do texto, o grego: “parácletos” (Παράκλητος). Em todo o Novo Testamento, somente textos de tradição joanina empregam essa palavra (Jo 14,16.26; 15,26; 16,7; 1Jo 2,1). Embora às vezes esse termo seja empregado como um título para o Espírito Santo, ele exprime uma de suas funções primordiais. Além de “defensor”, como aparece na tradução do lecionário, pode ser traduzido também como “advogado” ou “consolador” ou até mesmo “intercessor”, termos também insuficientes. Se trata de uma palavra composta (Παρά/pará = “junto a” + κλητός/kletós = “chamado”) cujo significado literal é “chamado a estar junto”. É claro que, estando junto, o Espírito Santo defende, consola e encoraja os discípulos sempre; mas seu papel é ilimitado e indescritível.

Das funções mais concretas atribuídas ao Espírito Santo, Jesus garante duas aos seus discípulos: “ensinar” e “recordar”. Ambas, exigem fidelidade e perseverança da comunidade, e estão intrinsecamente relacionadas. Como o ensinamento de Jesus, embora universal e completo, foi condicionado às circunstâncias de tempo e espaço, é preciso que seja constantemente interpretado e atualizado, conforme a difusão da sua mensagem pelo mundo. Ora, ao longo da história, os continuadores da sua missão se deparam com situações que não foram previstas em seu curto ministério de apenas três anos na Palestina; por isso, é necessário que as comunidades cristãs de todos os tempos sejam sensíveis ao Espírito Santo para que esse torne o que Jesus ensinou sempre novo e dinâmico. Não se trata, portanto, de ensinar novas coisas, pois Jesus já ensinou tudo, mas de atualizar esse ensinamento e interpretá-lo corretamente, conforme as necessidades das pessoas e as circunstâncias sócio históricas. Nesse sentido, é imprescindível também a função de “recordar”, pois são muitos os riscos de esquecimento da essência do que Jesus ensinou, à medida em que surgem novas realidades e desafios. Nas tradições bíblicas, o verbo “recordar” não significa apenas lembrar de algo do passado, mas é tornar vivo e presente o objeto da recordação, o que, neste caso, é a totalidade do ensinamento de Jesus. Essa recordação compreende também a interpretação correta do que foi ensinado outrora, conforme as necessidades e os sinais dos tempos. Portanto, na certeza da presença do Espírito Santo, enviado pelo Pai em nome de Jesus, para “estar junto” dos seus, a comunidade cristã é ensinada e pode ensinar, ao mesmo tempo, desde que mantenha viva a recordação de tudo o que Jesus ensinou aos primeiros discípulos. É assim que o Espírito Santo faz a missão de Jesus continuar sempre atual, tornando a sua presença viva e vivificante.

À medida em que avança no discurso, Jesus confere cada vez mais responsabilidades aos discípulos, principalmente com essa resposta a Judas, ao dizer que a manifestação de Deus ao mundo seria apenas a maneira de amar dos discípulos, acompanhada da vivência da sua palavra. Quem viver assim, será morada de Jesus e do Pai e terá a assistência perene do Espírito Santo. Para os discípulos, provavelmente com medo, isso ainda não era suficiente; por isso, Jesus antecipa o seu primeiro dom de Ressuscitado: «Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; mas não a dou como o mundo. Não se perturbe o vosso coração» (v. 27). Temos aqui mais uma herança que Jesus deixa para os seus, reforçando que seu longo discurso de despedida é mesmo um testamento. O Espírito Santo foi prometido para o futuro (v. 26), como será dado após a ressurreição (Jo 20,22), mas a paz é dada ainda no presente: Jesus dá a sua paz antes mesmo de partir para o Pai, pedindo aos discípulos que não permitam que o medo tome conta de seus corações: «Não se perturbe o vosso coração». Ora, além da comoção pela partida do Mestre, os discípulos sofriam também com o medo de terminar como ele, sendo condenados precocemente à morte. A paz é a superação do medo, uma vez que comporta a totalidade dos dons divinos e messiânicos.

No vocabulário do Quarto Evangelho, a paz está na mesma linha de outras palavras caras a João, como luz, verdade, vida e salvação, indo além do significado vigente no judaísmo, como o bem-estar total da pessoa, incluindo a saúde e a prosperidade. A paz de Jesus é muito mais diferente ainda da “pax romana”, imposta pelo império romano, o que não passava de uma política de controle e repressão, com a imposição de uma falsa tranquilidade pelo uso da força, em nome da ordem social. Portanto, a paz de Jesus é única, e sem essa é impossível viver com um amor intenso como o seu. A sua paz é um dom pascal que, por necessidade, ele antecipou aos discípulos no momento da ceia; tanto que ao se manifestar (aparecer) nas duas primeiras vezes como Ressuscitado, no meio deles, o seu primeiro gesto foi dar-lhes a paz: «a paz esteja convosco!» (Jo 20,19.21.26). A paz e a sua promoção, portanto, a exemplo do amor, também são sinais distintivos da comunidade cristã no mundo. São bens salvíficos e meios de humanização das pessoas e do mundo. Por isso, ser cristão é ser artesão da paz, como tantas vezes recordou o Papa Francisco.

Na continuação e conclusão do texto, percebe-se que Jesus se esforça o máximo possível para que seus discípulos aceitem a sua partida, não como perda, mas como ganho, pois é o único meio para tornar realidade tudo o que lhes prometera: «Ouvistes o que eu vos disse: ‘Vou, mas voltarei a vós’. Se me amásseis, ficaríeis alegres porque vou para o Pai, pois o Pai é maior do que eu. Disse-vos isso, agora, antes que aconteça, para que, quando acontecer, vós acrediteis» (vv. 28-29). Sua partida para junto do Pai não pode causar tristeza; pelo contrário, deve ser motivo de alegria, mesmo que comporte a sua morte, pois é prova de que a sua obra foi consumada e a vontade do Pai foi realizada em plenitude, ou seja, Jesus viveu intensamente como o Pai quis que ele vivesse, ao enviá-lo ao mundo: não para condenar, mas para salvar (Jo 3,17). Por isso, a sua fidelidade ao Pai deve ser motivo de alegria para os discípulos, ao invés de causar medo e tristeza, como eles estavam sentindo.

Na certeza de que Jesus e o Pai fazem morada em quem vive o mandamento do amor, e ainda confere o Espírito Santo para ficar junto, ensinar e recordar tudo o que Ele mesmo ensinou, cabe aos discípulos e discípulas de todos os tempos, o esforço para que tudo isso seja manifestado também ao mundo. E a condição para que isso aconteça é a vivência do mandamento do amor pelos próprios discípulos. Basta que se amem uns aos outros como ele amou para que sejam reconhecidos como discípulos. Esse reconhecimento já é prova concreta de sua presença no mundo, é sinal de que sua mensagem não acabou, continua viva, sendo a única força de transformar o mundo, humanizando-o por meio do amor. É necessário observar sua palavra para que tudo isso aconteça.


Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, maio 17, 2025

REFLEXÃO PARRA O 5º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 13,31-33a.34-35 (ANO C)

 



Todos os anos, a liturgia do quinto e do sexto domingo do tempo pascal utiliza passagens do chamado “testamento de Jesus” do Quarto Evangelho (Jo 13–17). Esses capítulos, que correspondem ao relato da última ceia, contém o ensinamento mais precioso de Jesus no contexto narrativo do Evangelho de João. Trata-se de um conjunto de diversos discursos que o evangelista os reuniu como se fosse apenas um grande discurso, apresentando-o como síntese de tudo o que Jesus fez e ensinou durante a sua vida. Por isso, o conjunto começa com o gesto do lava-pés (Jo 13,1-12), expressão máxima do agir serviçal, por amor, de Jesus, e é concluído com a chamada oração sacerdotal (Jo 17,1-26), na qual Jesus expressa sua intimidade com o Pai, marcada pela confiança e entrega, demonstrando seu cuidado amoroso pela humanidade, suplicando unidade e fraternidade. Do lava-pés à oração de Jesus, portanto, está a síntese de toda a sua vida. O evangelista faz isso como resposta às necessidades da sua comunidade, que passava por crises, deixando essa inseparabilidade entre a vida e a mensagem de Jesus como legado também para as comunidades de todos os tempos, sempre necessitadas de retornar à essência da sua mensagem.

Neste quinto domingo do “Ano C”, o texto proposto é Jo 13,31-33a.34-35. À medida em que o tempo pascal avança, após lermos os diversos relatos das manifestações (aparições) do Ressuscitado junto aos seus discípulos(a), é interessante retornar à essência do que Ele ensinou, tendo em vista a proximidade da ascensão, para que essa não seja sinal de ausência, mas de presença e vivência dos seus ensinamentos. De fato, é através da vivência do que Jesus ensinou que se pode experimentar a sua presença de Ressuscitado ao longo da história. Nesse sentido, a liturgia de hoje chama a atenção para o que Ele ensinou e deixou de mais precioso para os seus seguidores e seguidoras de todos os tempos: o mandamento do amor, tema central do evangelho deste dia. Como já foi acenado anteriormente, o contexto do evangelho de hoje é o da última ceia, ambientada no cenáculo, vivenciada por Jesus e seus discípulos, às vésperas da Páscoa. No Evangelho de João, especialmente, a ceia não é apenas o consumo de alimentos e nem a vivência de um rito, tampouco uma mera confraternização. A ceia é, acima de tudo, um momento forte de catequese e autorrevelação de Jesus; é o momento de apresentação de seu testamento, como é considerado o seu longo discurso.

Ainda a nível de contexto, é importante recordar que o trecho utilizado pela liturgia de hoje está localizado entre os dois momentos mais dramáticos da ceia: o anúncio da traição de Judas (Jo 13,21-30) e a predição da negação de Pedro (Jo 13,36-38). Essa localização é proposital e corresponde às intenções catequéticas e teológicas do evangelista: não obstante às debilidades da comunidade, o que Jesus tem a oferecer é sempre o amor. Quer dizer que o amor oferecido por Jesus aos seus não se deve aos méritos da comunidade, mas porque o amor é a sua essência e, sendo Ele amor, não pode oferecer outra coisa que não seja o amor. Portanto, traição e negação, e tantas outras incoerências dos seus discípulos e discípulas de todos os tempos, não fazem Jesus diminuir o seu amor, embora isso comprometa a sua manifestação no mundo, como Ele mesmo adverte. O primeiro momento da ceia narrado por João foi o lava-pés (Jo 13,1-15); com esse gesto surpreendente, Jesus já sinalizava aos discípulos que viriam novidades no seu ensinamento; e a maior novidade, sem dúvidas, foi o “novo mandamento”.

Feitas as devidas considerações introdutórias, a modo de contexto, olhemos para o texto. Como se vê, começa com uma introdução informativa do narrador, e em seguida é ocupado somente por palavras de Jesus: «Depois que Judas saiu, disse Jesus: “Agora foi glorificado o Filho do Homem, e Deus foi glorificado nele. Se Deus foi glorificado nele, também Deus o glorificará em si mesmo, e o glorificará logo”» (vv. 31-32). A saída de Judas da sala onde estavam ceando é um ato demarcatório para a glorificação de Jesus, e não a sua causa. Judas saiu para traí-lo, rompendo a comunhão e rejeitando o amor que lhe estava sendo oferecido. Certamente, foi doloroso para Jesus ver um dos seus amigos deixar a comunidade para aliar-se aos poderosos que estavam prestes a condená-lo – poder romano e autoridades religiosas de Jerusalém –, trocando o amor gratuito por dinheiro. Ao sentir que nem diante de um fato tão lamentável o seu amor diminuía, Jesus confirmava que, tinha mesmo chegado a sua hora, o momento da glória. Ele sabia, de fato, que sua morte estava muito perto. E ele tinha plena consciência de que sua morte não seria o fim, mas o começo de uma nova história, pois era prova de sua fidelidade ao Pai e do seu amor pela humanidade.

Para falar da sua glória, Jesus aplica a si a imagem misteriosa do “Filho do Homem”, um título conhecido na literatura judaica, que na época de Jesus evocava um ser glorioso e potente. Geralmente, Jesus relaciona essa imagem ao seu sofrimento, tanto aqui em João quanto nos sinóticos (Mt 17,22; 20,18; Mc 9,12.31; 10,33; Lc 9,22.44), contradizendo o uso recorrente da expressão no seu tempo, que evocava poder, acima de tudo. Com ela, Jesus evoca sua humanidade plena, pressuposto para o reconhecimento da sua divindade. Em João, especialmente, glorificação e sofrimento são termos que se completam reciprocamente, ou seja, glória e paixão/sofrimento estão intrinsecamente relacionadas. A certeza de que a traição não diminui o seu amor e nem lhe faz recuar dos seus propósitos de fidelidade incondicional ao Pai, faz Jesus concluir que a o momento da glorificação chegou. Inclusive, essa hora fora bastante esperada na dinâmica do Quarto Evangelho. Em diversos momentos Jesus tinha afirmado que sua hora não tinha ainda chegado (Jo 2,4; 7,30; 8,20). Somente agora, no drama da paixão, tendo a traição como sinal, durante a ceia, Jesus confirma que é chegado a sua hora.

É importante a unidade existente entre Jesus e Deus, o Pai. Como os dois são Um (Jo 10,30; 17,21), ambos são glorificados simultaneamente: «foi glorificado o Filho do Homem, e Deus foi glorificado nele». Ora, a glória do Filho consiste em realizar os propósitos do Pai; a glória do Pai, por sua vez, consiste em ver o Filho sendo-lhe fiel até as últimas consequências. Chama a atenção o fato de que a expressão verbal “glorificar” (em grego: δοξάζω – doxázo) aparece cinco vezes em apenas dois versículos (vv. 31-32), o que confirma ainda mais a importância do tema. Inclusive, o título que recebe a segunda parte do Evangelho joanino é “Livro da glória” (Jo 13–20). Essa glória compreende a paixão, morte e ressurreição de Jesus, e é motivada pelo amor incondicional e recíproco entre o Pai e o Filho. E é esse o modelo de amor que a comunidade cristã deve reproduzir no mundo, o que Judas não assimilou e, por isso, saiu da sala, passando para o lado dos poderosos, aqueles que não aceitaram o amor e, por isso, o combateram, porém, em vão, imaginando eliminá-lo, com a morte de Jesus na cruz.

Apesar do drama de ver um amigo disperso, rejeitando seu amor, preferindo ficar fora da sua comunhão, e a certeza da cruz iminente, o amor e a ternura de Jesus se revelam cada vez mais fortes. Ele não se deixa abalar e, continuando seu discurso de despedida, afirma: «Filhinhos, por pouco tempo estou ainda convosco» (v. 33a). Certamente, estava emocionado ao usar essa expressão de ternura, chamando os discípulos de filhos no diminutivo: “Filhinhos” (em grego: τεκνία = teknía), o que poderia traduzido também por “pequeninos gerados”; é a única vez em que essa palavra aparece no Evangelho de João, embora seja um termo bastante comum no vocabulário da sua comunidade, pois aparece sete vezes na sua Primeira Carta (1Jo 2,1.12.28; 3,7.18 4,4; 5,21). É um termo afetuoso, usado aqui por quem está em clima de despedida e tem recomendações muito sérias para dar aos discípulos que devem continuar a sua obra, pois Ele tinha muita clareza de que lhe restava pouco tempo com eles, em sua existência terrena. Porém, estava dando uma alternativa para que, mesmo após sua morte, a comunidade continuasse tendo a sua presença. E essa alternativa é a vivência do amor.

Tendo preparado os discípulos, expressando-lhes uma ternura única, Jesus lhes transmite a sua maior herança: «Eu vos dou um novo mandamento: amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros» (v. 34). Talvez os discípulos esperassem mais, como um conjunto de normas, ritos, etc. Mas Jesus deixou somente isso: um mandamento novo. Na língua original do Evangelho – o grego – há dois adjetivos que correspondem a “novo”: o primeiro deles (νεός – néos), possui um sentido cronológico; significa algo novo que se soma ao que já existe; o segundo (καινός – kainós), tem um sentido qualitativo; significa algo novo que substitui o velho, superando-o e fazendo-o desaparecer. É essa segunda palavra que o evangelista emprega aqui. Portanto, o mandamento novo dado por Jesus não vem a ser um acréscimo ao decálogo, que era a síntese da Torá, mas o seu completo cumprimento, o que vem a ser também uma superação, por isso, possui valor substitutivo. Quer dizer que, vivendo esse mandamento, a comunidade não necessita mais de nenhum outro. Somente em João o mandamento do amor é dado com essa radicalidade, como veremos a seguir.

É claro que a antiga Lei mosaica já previa o amor ao próximo: «amarás o teu próximo como a ti mesmo» (Lv 19,18). Na tradição sinótica, houve uma adaptação do primeiro mandamento do decálogo com esse do Levítico: «amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças, e ao teu próximo como a ti mesmo» (Mt 22,37-38; Mc 12,33; Lc 10,27). Por sinal, vale a pena recordar que na tradição sinótica o amor constitui-se o mandamento maior, enquanto para o Quarto Evangelho é o único mandamento. Diante disso, a novidade apresentada por João se torna ainda mais evidente, pois Jesus não reivindica nada para si e nem para Deus, o Pai; pede apenas amor recíproco entre os membros da comunidade: «amai-vos uns aos outros»; nesse amor recíproco entre os discípulos, obviamente, estará o amor a Deus, pois é Ele a fonte do amor e, consequentemente, a Jesus, o revelador do amor do Pai. De acordo com o Levítico e os Sinóticos, o critério do amor ao próximo é o amor a si próprio: «amarás o teu próximo como a ti mesmo»; Jesus muda também essa perspectiva: o critério do amor que deve ser vivenciado na comunidade é o seu. O parâmetro é o amor de Jesus: «como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros»; e o seu não é um amor qualquer, mas é aquele amor capaz de dar a vida pelo outro. A medida do amor ao próximo, portanto, deve ser somente o amor de Jesus, cuja expressão visível mais imediata é o serviço, como Ele tinha demonstrado lavando os pés dos discípulos e também recomendando: «Eu vos dei um exemplo para que também vós façais o mesmo» (Jo 13,15).

O mandamento dado por Jesus é tão novo, que a vivência dele se torna o único critério de pertença à sua comunidade: «Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros» (v. 35). É a vivência recíproca desse amor que caracteriza uma comunidade como pertencente a Jesus, e que manifesta a presença do Ressuscitado nela e no mundo. Assim, Jesus deixa muito claro que aquilo que credencia alguém como seu discípulo ou discípula não é a repetição de uma fórmula de fé, não é o uso de símbolos ou adornos, nem a pertença a alguma instituição religiosa, mas somente o amor. Indiscutivelmente, o amor é a identidade e o estatuto do discipulado de Jesus. Logo, somente o amor é suficiente para alguém ser reconhecido como discípulo ou discípula de Jesus, pois quem ama à sua maneira torna concreta a sua presença.

A insistência com o imperativo do amor por Jesus, que por sinal é uma característica de todo o discurso, visa alertar a comunidade para nunca relativizar aquilo que é essencial para a vida cristã e determinante para a fé. Jesus fala da maneira mais clara possível para não ser confundido. A identidade cristã é o amor. Nada pode sobrepor-se e nem substituir o amor. Pode faltar tudo numa comunidade cristã, menos o amor entre os seus membros. É esse amor que atesta se a comunidade é realmente cristã, ou seja, se está unida a Jesus. Por isso, mais do que um preceito, mais do que uma cláusula de um código legislativo, o amor é uma missão.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, maio 10, 2025

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,27-30 (ANO C)

 


Todos os anos, a liturgia do quarto domingo da Páscoa utiliza um trecho do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o único, autêntico e bom pastor. Por isso, este domingo foi declarado como o “domingo do bom pastor” e, oportunamente, instituído como o “Dia mundial de oração pelas vocações”, pelo Papa Paulo VI, no ano de 1964. Embora o evangelho deste dia seja sempre tirado do mesmo capítulo, alternam-se os textos, conforme o ciclo litúrgico vigente. O trecho lido neste “Ano C” é bastante breve, composto de apenas quatro versículos: Jo 10,27-30. Curiosamente, o termo pastor não aparece nessa passagem específica da liturgia de hoje. Mas, ao falar das ovelhas e de sua relação com elas, Jesus mostra também as características e as qualidades da sua condição de pastor. Como o texto faz parte de um amplo discurso que compreende o capítulo inteiro, muita coisa já foi afirmada nos versículos que antecedem o texto de hoje, o que torna ainda mais necessária uma contextualização, para ser compreendido adequadamente, como faremos a seguir. Também a brevidade do texto – apenas quatro versículos – torna a contextualização ainda mais necessária para uma boa compreensão.

De acordo com o evangelista, no momento do discurso, Jesus se encontra em Jerusalém, nas dependências do templo, participando da “festa da dedicação” (Jo 10,22). É importante ressaltar que as idas de Jesus ao templo de Jerusalém são sempre marcadas por polêmicas, nos quatro evangelhos. Toda vez que frequenta o espaço mais sagrados de Israel, como concebiam os judeus, ele entra em confronto com aqueles que tinham transformado ou permitido a transformação da casa do seu Pai em casa de comércio (Jo 2,16) e em covil de ladrões (Mt 21,13; Mc 11,17; Lc 19,46). Embora não figurasse entre as três maiores festas judaicas – Páscoa, Pentecostes e Tendas –, a festa da dedicação também era grande e atraía muitos peregrinos a Jerusalém. Esta festa foi estabelecida por Judas Macabeu no ano 165 a.C., para celebrar a vitória dos macabeus sobre a dominação grega e a nova dedicação do templo e do altar, que tinham sido profanados pelos gregos (1 Mc 4,36-59). Desde então, essa festa que entrou no calendário judaico oficial, era celebrada solenemente em Jerusalém, com duração de uma semana, sendo chamada também de “festa das luzes”. O principal texto bíblico utilizado na liturgia dessa festa era o capítulo 34 de Ezequiel, no qual o profeta faz uma enfática denúncia aos maus pastores de Israel. Estes, segundo o profeta, apascentavam a si mesmos, ao invés de apascentar o (povo) rebanho (Ez 34,1-2). Por isso, de acordo com o profeta, Deus iria destituir os maus pastores e cuidar ele mesmo do rebanho (Ez 34,11).

Foi a partir deste contexto que Jesus aplicou a si a imagem do bom pastor, aproveitando a ocasião em que o texto de Ezequiel estava muito vivo na memória das pessoas ali reunidas, uma vez que era lido e relido diversas vezes durante a festa. É importante recordar que a figura do pastor sempre foi muito significativa para o povo de Israel, devido às suas origens pastoris. Essa imagem foi aplicada a Deus e também aos líderes que assumiram funções de guia e comando sobre o povo, como reis e sacerdotes. Foi a profissão dos principais personagens do Antigo Testamento: Moisés e Davi. Portanto, era muito presente no imaginário popular dos judeus. Atualizando a perspectiva do profeta Ezequiel, Jesus se apresenta como o único e autêntico pastor, e dirige à classe dirigente de Jerusalém, especialmente aos sacerdotes do templo, uma de suas mais pesadas críticas. Ora, ao afirmar ser o bom pastor (Jo 10,14), Jesus denunciava que os sacerdotes do templo eram aqueles maus pastores destituídos por Deus, como profetizou Ezequiel. Indiscutivelmente, suas palavras tiveram grande repercussão porque mexiam com os privilégios da classe dirigente de Israel, composta por funcionários do sagrado, ao invés de pastores verdadeiros. A prova do incômodo causado pelas palavras de Jesus está na reação dos líderes judeus durante e após o seu discurso: primeiro, disseram que ele estava endemoniado (Jo 10,20), depois quiseram apedrejá-lo (Jo 10,31) e tentaram prendê-lo (Jo 10,39).

Feita a contextualização, olhemos para o texto, que começa com a seguinte declaração de Jesus: «As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem» (v. 27). No versículo anterior, que não consta no texto da liturgia, Jesus tinha dito aos seus interlocutores, os líderes do judaísmo, que eles não pertenciam às suas ovelhas (Jo 10,26). Isso porque não correspondiam aos critérios de pertença, ou seja, não lhe ouviam e nem lhe seguiam. É de suma importância essa afirmação de Jesus, pois revela quais são as características fundamentais do seu tipo de pastoreio e os critérios para pertencer ao seu rebanho: escutar e seguir. Esses dois verbos são as principais chaves de leitura para toda a mensagem de Jesus, sobretudo para a compreensão do seu discipulado. Escutar a voz de alguém, na linguagem bíblica, não significa simplesmente a percepção de um som ou ruído, mas é acima de tudo dar adesão completa àquele que fala, é deixar-se transformar e, consequentemente, conduzir-se pelas suas palavras. Por isso, a escuta vem acompanhada de um segundo elemento, que é a sua consequência: o seguimento. Os interlocutores de Jesus não viviam a dinâmica do “escutar-seguir”. Apegados aos ritos e preceitos, tinham sido instruídos a obedecer e cumprir normas, apenas. O seguimento proposto por Jesus, como consequência da escuta, significa seguir os mesmos caminhos dele, com liberdade e disposição. Logo, ao invés de cumpridores de ordens, fazer parte das ovelhas de Jesus é ser descobridores de estradas, buscadores de novos horizontes. O Deus pregado no templo era um soberano que, através de seus representantes ditos pastores, mas na verdade eram mercenários, a casta sacerdotal, ditava normas do alto. Apresentando-se como pastor, Jesus revela que Deus age de maneira completamente diferente: caminha à frente, não dá ordens, apenas aponta a direção; quem escuta a sua voz e o segue torna-se íntimo dele, deixa-se humanizar pelo seu amor cuidadoso.

A quem, motivado pela escuta, se coloca no seguimento de Jesus, o bom pastor, Ele garante o maior dos dons: «Eu dou-lhes a vida eterna e elas jamais se perderão. E ninguém vai arrancá-las de minha mão» (v. 28). Os falsos pastores do templo, denunciados por Jesus, apenas pediam; Jesus, pelo contrário, é quem dá, e não dá qualquer coisa, mas a vida em plenitude, ou seja, a “vida eterna”. É importante recordar que a “vida eterna” dada por Jesus a quem lhe segue não é um prêmio que as pessoas boas receberão no futuro, mas a vida conduzida segundo a escuta da sua voz, desde agora. A adesão a Jesus e ao seu Evangelho, compreendida como a escuta da sua voz e o seu seguimento, eterniza a vida, humanizando-a. Vida eterna, portanto, segundo a perspectiva teológica do evangelista João, não é uma vida para o pós-morte, mas é uma vida tão plena, tão cheia de sentido e autêntica, tão humanizada, a ponto de nem a morte poder destruí-la, como não destruiu a de Jesus.  Por isso, mesmo após a passagem pelo inevitável fenômeno que chamamos de morte, essa “vida eterna” prosseguirá. É a vida presente que se torna eterna à medida em que a pessoa se deixa conduzir pela voz de Jesus. Ora, o próprio Jesus, mais adiante, afirmará que a vida eterna consiste no conhecimento dele e do Pai (Jo 17,2-3). Portanto, quem ouve a sua voz lhe conhece e, por sua vez, conhece também o Pai, já que Ele e o Pai são um (v. 30). Logo, a vida eterna é a vida de toda pessoa que escuta a voz de Jesus e abraça o seu seguimento.

Ninguém consegue arrancar as ovelhas da mão de Jesus (v 28b) porque tudo o que está em sua mão está também na mão do Pai. E Jesus tem profundo zelo por tudo o que recebeu do seu Pai. Sua missão neste mundo foi cuidar das coisas do Pai, e o que o Pai tem de mais precioso são os seus filhos e filhas, por isso, todo ser humano é profundamente amado por Jesus. Por isso, tendo recebido do Pai, Jesus cuida tão bem das ovelhas: «Meu Pai, que me deu estas ovelhas, é maior que todos, e ninguém pode arrebatá-las da mão do Pai» (v. 29). Ora, tudo o que Jesus tem, recebeu do Pai, porque o Pai, amando-lhe tanto, entregou-lhe tudo nas mãos (Jo 3,35), principalmente a vida dos seus filhos, as ovelhas que estavam nas mãos de mercenários (Ez 34; Jo 10,12-13). Quando o Pai decide cuidar ele mesmo das ovelhas, como tinha profetizado Ezequiel (Ez 34,11), na verdade, ele decide entregá-las ao seu Filho, que é Jesus, entregando-lhe em mãos. A mão, na linguagem bíblica, é uma metáfora do poder protetor de Deus, da sua força e dos seus cuidados paternais e maternos (Os 11,3; Dt 33,3; Is 43,13; 49,2; Sl 31,6; 95,4; Sb 3,1; Dn 5,23). As mãos que protegem são as mesmas que acariciam. Com essa imagem, Jesus diz que também é Deus; daí, a afirmação: «Eu e o Pai somos um» (v. 30). Por causa desta afirmação, seus interlocutores quiseram apedrejá-lo, acusando-o de blasfêmia, por fazer-se Deus, sendo apenas um homem (Jo 10,31-33), como eles imaginavam. Ora, Jesus sendo Deus e estando no mundo, é óbvio que aqueles que se diziam representantes de Deus – os sacerdotes do templo – estariam destituídos de suas funções, pois Deus já não necessita mais de ser representado, pois está pessoalmente presente, por meio do Filho. Com efeito, Jesus, o autêntico pastor, não é um representante de Deus, mas é Deus mesmo. Isso revela a superioridade do seu pastoreio e da sua messianidade em relação às expectativas messiânicas da época. E o mais importante é que ele compartilha com a humanidade inteira a sua intimidade com o Pai.

Quem se deixa acariciar pelas mãos de Jesus, é acariciado também pelo Pai. As mãos dos chefes religiosos de Israel faziam o contrário: oprimiam, exploravam, sugavam o povo, ao invés de proteger e acariciar. As mãos de Jesus cuidam, humanizam e salva. E, para receber o toque de suas mãos basta ouvir sua voz e segui-lo. Que o Bom Pastor, único e autêntico, inspire vocações que ajudem a ressoar sua voz no mundo e sejam extensões de sua mão que protege, cuida e defende, sobretudo, as ovelhas mais vulneráveis e necessitadas.  

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, maio 03, 2025

REFLEXÃO PARA O 3º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 21,1-19 (ANO C)

 



A partir do terceiro domingo da Páscoa, a liturgia passa a empregar um texto evangélico específico para cada ano, conforme o ciclo litúrgico vigente, ao contrário do que ocorre no primeiro e no segundo domingo, quando se lê o mesmo texto todos os anos. Neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico C, o evangelho proposto no terceiro domingo é Jo 21,1-19, texto que descreve a terceira e última manifestação do Ressuscitado aos seus discípulos, conforme a dinâmica narrativa do Quarto Evangelho. Nele, a ênfase recai sobre a “pesca milagrosa” e o diálogo franco e sincero de Jesus com Pedro. Inicialmente, este capítulo 21 não fazia parte do Evangelho de João; foi acrescentado posteriormente, devido às necessidades das comunidades destinatárias. A redação original do Evangelho foi concluída em Jo 20,30-31, conforme lemos no domingo passado: «Jesus realizou muitos outros sinais diante dos discípulos, que não estão escritos neste livro. Mas estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome». Como o Quarto Evangelho já tinha um prólogo (Jo 1,1-18), os líderes da(s) comunidade(s) joanina(s) entenderam que poderiam acrescentar um epílogo – o capítulo 21 – sem trair as intenções e nem as características do evangelista, mas até enriquecendo.

Dos diversos motivos que contribuíram para o acréscimo do capítulo 21 ao Evangelho de João, podemos destacar os seguintes: 1) a reabilitação de Pedro; é inegável que após a contestação no lava-pés (Jo 13,6-10) e a negação durante o processo de Jesus (Jo 18,15-27), Pedro ficou abalado psicologicamente, com grande remorso, e teve sua imagem comprometida nas comunidades; 2) se na conclusão original o evangelista afirmara que Jesus tinha realizado “muitos outros sinais” além daqueles descritos até então, é de se imaginar que as comunidades tenham perguntado algo sobre os sinais não narrados, e até pedido exemplos; logo, a “pesca milagrosa” deste capítulo responde a essa indagação; 3) as duas aparições do Ressuscitado narradas no capítulo 20 (conteúdo do evangelho do domingo passado – Jo 20,19-21), aconteceram no domingo, quando a comunidade estava reunida em um lugar fechado; posteriormente, também deve ter surgido dúvidas se o Ressuscitado não estaria presente também nos outros dias da semana e nas atividades cotidianas dos seus seguidores; uma aparição durante uma pesca, responde a esse questionamento. Certamente, houve outros motivos, mas não é possível destacar todos aqui. Na verdade, não é possível sequer conhecer todos. O que estudiosos conseguem é perceber, pelas entrelinhas, os mais evidentes. Pela extensão, não comentaremos todos os versículos separadamente.

Feitas as devidas considerações introdutórias, a nível de contexto, olhemos então para o texto: «Jesus apareceu de novo aos discípulos, à beira do mar de Tiberíades. A aparição foi assim: Estavam juntos Simão Pedro, Tomé, chamado Dídimo (Gêmeo), Natanael de Caná da Galileia, os filhos de Zebedeu e outros dois discípulos de Jesus» (vv. 1-2). Até então, as aparições do Ressuscitado aos discípulos, tinham acontecido numa sala fechada em Jerusalém, à exceção da aparição a Maria Madalena no jardim – não incluímos o episódio dos discípulos de Emaús, Lc 24,13-35, em que o Senhor apareceu no caminho, porque esse pertence às tradições do evangelista Lucas; por questões didáticas, tratamos aqui apenas da tradição joanina. Dessa vez, a aparição acontece na Galileia, a céu aberto. Ao contrário das duas primeiras que tinham acontecido no domingo (o primeiro ou oitavo dia semana), dessa vez o dia não vem indicado. Já temos um primeiro sinal de que o Ressuscitado não está condicionado a nenhum espaço ou tempo determinados. O mar de Tiberíades – também chamado de lago de Genesaré ou mar da Galileia – possui um significado importante para as origens do cristianismo, pois foi o cenário dos primeiros chamados, conforme a tradição sinótica. A manifestação do Ressuscitado nesse ambiente é um sinal de retorno às origens e confirmação da vocação. Quem outrora deixou-se atrair pela proposta de Jesus de Nazaré, deve continuar atraído pelo Ressuscitado, já que é a mesma pessoa. O autor identifica sete discípulos nessa aparição, apesar de só informar o nome de três. O número sete possui um valor simbólico altamente significativo para os propósitos de universalização da mensagem de Jesus; enquanto o número doze representa apenas o povo de Israel, o número sete representa o universo inteiro, e esse deve ser o destino da missão dos discípulos de Jesus de Nazaré, o crucificado que ressuscitou.

A pesca, por ser a atividade da maioria dos primeiros discípulos, se tornou imagem simbólica da missão apostólica no cristianismo das origens. Por isso, essa cena, mais que descrever uma pescaria real, é uma verdadeira parábola da missão da comunidade cristã. O grupo de discípulos está unido, e Pedro continua impetuoso, falando e agindo sem medir as consequências: «Simão Pedro disse a eles: “Eu vou pescar”. Eles disseram: “Também vamos contigo”. Saíram e entraram na barca, mas não pescaram nada naquela noite» (v. 3). A adesão dos companheiros à iniciativa de Pedro recorda sua liderança na comunidade primitiva. Também recorda a unidade: não deve haver projetos individualistas na comunidade; a missão de um é também de todos. Apesar da adesão do grupo, a iniciativa de Pedro não logrou êxito, o que vem indicado pela expressão «não pescaram nada naquela noite»; o indicativo temporal “naquela noite” possui valor simbólico, significando aqui a ausência de Jesus, aquele que é a luz verdadeira, por excelência. Quando falta essa luz, prevalecem as trevas. Por consequência, essa ausência torna ineficazes as iniciativas da comunidade, por mais boa vontade que tenham os seus membros. No Evangelho de João, o paradoxo trevas-luz possui mais relevância do que em qualquer outro escrito do Novo Testamento. 

Como opção de superação e oposição às trevas da noite, surge o novo dia, com o raiar da luz: «Já tinha amanhecido, e Jesus estava de pé na margem» (v. 4a). Na luz do dia, Jesus se faz presente. Obviamente, não é o dia que traz a presença de Jesus, mas é ele quem faz as trevas desaparecerem e o dia surgir, pois ele é a própria luz. E ele estava de pé, a posição de ressuscitado, vivente, em oposição ao sono e à morte. Quer dizer que, ressuscitado, não dorme e nem morre mais, permanece de pé, pronto para acompanhar a comunidade cristã em qualquer travessia, seja por terra, seja por mar. Contudo, habituados a encontrar o Senhor somente no âmbito litúrgico da reunião comunitária do domingo, os discípulos não o reconheceram quando estava de pé (v. 4b), à margem do mar, mesmo ele já tendo se lhes manifestado duas vezes. Com isso, o autor faz um alerta às comunidades de todos os tempos: é preciso reconhecer a presença de Jesus no dia-a-dia, nas margens e nas atividades cotidianas também. Não basta esperar uma semana para encontrar-se com ele no encontro litúrgico da comunidade, pois ele interage no dia-a-dia através dos acontecimentos e das pessoas necessitadas, principalmente. Inclusive, fazendo-se necessitado, como mostra o evangelista: «Então Jesus disse: “Moços, tendes alguma coisa para comer?”» (v. 6). Aqui, ele se revela necessitado e, sobretudo, terno, carinhoso. O termo grego que o lecionário traduziu por “moços” fica mais bem traduzido por “filhinhos” ou simplesmente “filhos” (παιδία – paidía). Expressa uma interpelação íntima e carinhosa, como se dá na relação entre pais e filhos. Com sinceridade e muito provavelmente com decepção, os discípulos responderam que não tinham nada para comer, afinal, a pescaria tinha sido um fracasso. 

À luz do dia, mesmo sem ainda ser reconhecido, Jesus aponta a solução para a comunidade que trabalhou em vão durante a noite: «“Lançai a rede à direita da barca, e achareis”. Lançaram pois a rede e não conseguiam puxá-la para fora, por causa da quantidade de peixes» (v. 6). Guiada somente pelo impulso de Pedro e na escuridão da noite, a comunidade trabalhou em vão; orientada pelas palavras de Jesus, o resultado foi surpreendente: uma pesca abundante. Aqui está a primeira motivação para a transformação da comunidade. Contudo, será um processo lento. Assim como fora o primeiro a acreditar na ressurreição ao ver o sepulcro vazio (Jo 20,8), o discípulo amado também é o primeiro a reconhecer Jesus naquele homem desconhecido à beira do mar, por isso, exclamou convictamente: «É o Senhor!» (v. 7). O Quarto Evangelho insiste que a primeira condição para o encontro autêntico com Jesus é o amor. Não há trabalho intelectual e nem físico que se sobreponha ao amor. Boas intenções não bastam para o crescimento da comunidade, se nessa não reina o amor. De fato, o amor é o que dá credibilidade ao anúncio; por isso, «Simão Pedro, ouvindo dizer que era o Senhor, vestiu a sua roupa, pois estava nu, e atirou-se no mar» (v. 7b). Ora, Pedro conhecia bem a trajetória de amor daquele discípulo, por isso, sabia que seu testemunho era verdadeiro. As atitudes de Pedro aqui, embora ainda impetuosas, mostram o progresso de sua conversão; a passagem do estado de nudez ao de vestido significa uma mudança de atitude e de mentalidade. Com efeito, a afirmação de que ele “estava nu” não quer dizer que estivesse totalmente despido, mas com alguma veste interior. De fato, a veste interior já era considerada um estado de nudez, em muitas culturas, sobretudo as mais conservadoras. O atirar-se no mar é uma imagem do batismo: é preciso passar pelas águas para tornar-se uma nova pessoa. Pedro tem pressa, pois se sente mais necessitado do que os demais de ficar na presença do Senhor (v 8).

O momento privilegiado do encontro da comunidade com o Ressuscitado será sempre a refeição, o banquete, como sinal de partilha, amor e alegria. E é o próprio Jesus quem prepara a refeição (vv. 9-13), pois, o Ressuscitado continua o mesmo que serviu e foi crucificado: é aquele que se fez servo, que lavou os pés dos discípulos. Essa refeição representa a Eucaristia, já consolidada entre as comunidades, na época da redação do texto. Mesmo oferecendo o banquete, Jesus pede a colaboração dos discípulos: «Trazei alguns dos peixes que apanhastes» (v. 10). É claro que Jesus não pede os peixes por necessidade. Se trata de uma oportunidade oferecida aos discípulos para trabalharem com ele, participarem da sua obra, do seu plano de saciar o mundo de amor. Isso mostra que a comunidade deve unir seus esforços aos dons do Ressuscitado para a transformação do mundo. A construção do Reino exige esforço de todos. Os peixes, aqui, são dons do Ressuscitado, e prova de que as palavras dele geram abundância e fertilidade, por isso, são indispensáveis para o banquete; são, acima de tudo, frutos do amor. O convite «vinde comer» (v. 13) é dirigido a todas as pessoas; participar desse banquete é um ato de amor.

A sequência do texto (vv. 15-19) mostra o diálogo decisivo de Jesus com Pedro, que é o coração de todo o capítulo. Essa é, certamente, uma das cenas mais belas de todo o Novo Testamento. Ao longo do(s) Evangelho(s), Pedro tinha demonstrado diversas contradições. Obstinado, procurava sempre demonstrar uma prontidão maior que os demais discípulos; era sempre o primeiro a responder às perguntas de Jesus, queria mostrar mais serviço sempre e de todas formas. Por esse seu caráter, acabava caindo em contradição facilmente. Se manifestou contra a atitude de Jesus no momento do lava-pés e o negou três vezes durante o processo. Esse último fato foi, certamente, o mais dramático e que deixou, inevitavelmente, mais sequelas interiores e remorso, não em Jesus que perdoa tudo, mas no próprio Pedro. É provável que tenha causado desconfiança entre os companheiros e até nas comunidades futuras. Por isso, era necessário reabilitá-lo, e foi esse o principal motivo da inserção deste capítulo num Evangelho que já estava concluído. Aqui, Jesus não faz um acerto de contas com Pedro, mas quer apenas mostrar que, não obstante todas as fragilidades do apóstolo, o amor entre os dois precisa ser confirmado e reforçado, pois é do amor que dependem os frutos da missão confiada. Assim, o evangelista recorda a re-humanização de Pedro pela força do amor de Jesus. 

Jesus pergunta três vezes se Pedro lhe ama, e Pedro responde três vezes. O número três, obviamente, alude ao número de negações; foi essa a marca negativa que Jesus quis tirar do coração de Pedro, mostrando todo o seu amor por ele. Temos aqui uma prova muito clara de que Jesus não desiste do ser humano. Ele insiste de todos os modos para que nenhum dos que o Pai lhe confiou se perca (Jo 6,39), pois essa é sua missão. Jesus age com Pedro como um bom terapeuta que pretende eliminar o mal pela raiz. Eis a primeira pergunta e resposta: «“Simão, filho de João, tu me amas mais do que estes?” Pedro respondeu: “Sim, Senhor, tu sabes que eu te amo. Jesus disse: “Apascenta os meus cordeiros”» (v. 15). Na verdade, Jesus não necessita que Pedro lhe ame mais do que os demais; esse detalhe que aparece somente na primeira pergunta, é apenas uma advertência: quanto mais intenso for o amor do discípulo, maior deve ser a disponibilidade para o serviço. A resposta de Pedro é positiva, inclusive reconhecendo que Jesus sabe tudo, como soube antecipadamente da sua negação (Jo 13,36-38). O amor de Pedro, bem como dos demais discípulos, é fundamental para os propósitos de Jesus, que confirma a missão: «Apascenta os meus cordeiros». Antes de tudo, fica claro que o rebanho é de Jesus e, portanto, os seus discípulos não podem recebê-lo como propriedade sua. Apascentar significa cuidar: proteger dos perigos e prover o alimento, especialmente; em outras palavras, é proporcionar todos os meios para uma vida digna, abundante e humanizada. 

A pergunta é repetida até a terceira vez, com pequenas variações de vocabulário que não comprometem o seu significado, embora alguns estudiosos explorem bastante as mudanças. Para o uso litúrgico, no entanto, é suficiente saber que aquilo que está em questão é a reabilitação de Pedro por meio do amor. Nesse processo de resgate, «Pedro ficou triste, porque Jesus perguntou três vezes se ele o amava» (v. 17); o remorso da negação veio à tona novamente, mas essa tristeza também significa um lamento por não ter descoberto antes que o amor é o único meio para uma relação autêntica com Jesus. A sua prontidão anterior, o apresentar-se sempre como o primeiro, tanto no falar quanto no agir, não tinha tanto efeito porque a motivação para isso ainda não era o amor. Agora sim, Pedro está convicto da necessidade do amor nas relações e do seu papel na comunidade; não se trata de exercer um governo; Jesus lhe pede para cuidar, para servir, não para governar. O serviço, movido pelo amor, é o que conta na comunidade cristã. Está claro, portanto, que o objetivo principal do texto é mostrar a reabilitação de Pedro: de um discípulo envergonhado de seu mestre, a um discípulo convertido pelo amor, tendo o seu remorso sanado pela insistência do Senhor Ressuscitado. Se é Jesus o dono do rebanho, para cuidar desse rebanho é necessário amá-lo intensamente, à sua própria maneira. 

Convicto da conversão de Pedro, Jesus lhe revela o seu próprio destino: «“Quando fores velho, estenderás as mãos e outro te cingirá e te levará onde não queres ir”. Jesus disse isso, significando com que morte Pedro iria glorificar a Deus. E acrescentou: “Segue-me”» (vv. 18-19). Ora, sempre que Jesus dizia que ia sofrer, quando antecipava a sua morte de cruz, o primeiro a repreendê-lo era Pedro. Agora, Jesus diz que é o próprio Pedro quem também vai passar pela cruz: a expressão «estenderás os braços» é uma referência explícita à morte de cruz. Dessa vez, já não há contestação porque Jesus está cara a cara com um novo Pedro, um homem convertido, consciente de que não pode mais agir segundo seus impulsos, pois quando isso acontece a pesca é totalmente estéril; só há peixe em abundância quando as redes são lançadas de acordo com as indicações de Jesus. Após a reabilitação de Pedro, Jesus renova o convite ao seguimento: «Segue-me». O Ressuscitado é uma pessoa viva, presente na comunidade, e deve ser seguido sempre. Esse seguimento, para ser autêntico, deve ser motivado sempre pelo amor.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 6º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 14,23-29 (ANO C)

  Assim como no quinto domingo, também no sexto domingo do tempo da Páscoa o evangelho é tirado do discurso de despedida de Jesus do Evang...