sábado, maio 17, 2025

REFLEXÃO PARRA O 5º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 13,31-33a.34-35 (ANO C)

 



Todos os anos, a liturgia do quinto e do sexto domingo do tempo pascal utiliza passagens do chamado “testamento de Jesus” do Quarto Evangelho (Jo 13–17). Esses capítulos, que correspondem ao relato da última ceia, contém o ensinamento mais precioso de Jesus no contexto narrativo do Evangelho de João. Trata-se de um conjunto de diversos discursos que o evangelista os reuniu como se fosse apenas um grande discurso, apresentando-o como síntese de tudo o que Jesus fez e ensinou durante a sua vida. Por isso, o conjunto começa com o gesto do lava-pés (Jo 13,1-12), expressão máxima do agir serviçal, por amor, de Jesus, e é concluído com a chamada oração sacerdotal (Jo 17,1-26), na qual Jesus expressa sua intimidade com o Pai, marcada pela confiança e entrega, demonstrando seu cuidado amoroso pela humanidade, suplicando unidade e fraternidade. Do lava-pés à oração de Jesus, portanto, está a síntese de toda a sua vida. O evangelista faz isso como resposta às necessidades da sua comunidade, que passava por crises, deixando essa inseparabilidade entre a vida e a mensagem de Jesus como legado também para as comunidades de todos os tempos, sempre necessitadas de retornar à essência da sua mensagem.

Neste quinto domingo do “Ano C”, o texto proposto é Jo 13,31-33a.34-35. À medida em que o tempo pascal avança, após lermos os diversos relatos das manifestações (aparições) do Ressuscitado junto aos seus discípulos(a), é interessante retornar à essência do que Ele ensinou, tendo em vista a proximidade da ascensão, para que essa não seja sinal de ausência, mas de presença e vivência dos seus ensinamentos. De fato, é através da vivência do que Jesus ensinou que se pode experimentar a sua presença de Ressuscitado ao longo da história. Nesse sentido, a liturgia de hoje chama a atenção para o que Ele ensinou e deixou de mais precioso para os seus seguidores e seguidoras de todos os tempos: o mandamento do amor, tema central do evangelho deste dia. Como já foi acenado anteriormente, o contexto do evangelho de hoje é o da última ceia, ambientada no cenáculo, vivenciada por Jesus e seus discípulos, às vésperas da Páscoa. No Evangelho de João, especialmente, a ceia não é apenas o consumo de alimentos e nem a vivência de um rito, tampouco uma mera confraternização. A ceia é, acima de tudo, um momento forte de catequese e autorrevelação de Jesus; é o momento de apresentação de seu testamento, como é considerado o seu longo discurso.

Ainda a nível de contexto, é importante recordar que o trecho utilizado pela liturgia de hoje está localizado entre os dois momentos mais dramáticos da ceia: o anúncio da traição de Judas (Jo 13,21-30) e a predição da negação de Pedro (Jo 13,36-38). Essa localização é proposital e corresponde às intenções catequéticas e teológicas do evangelista: não obstante às debilidades da comunidade, o que Jesus tem a oferecer é sempre o amor. Quer dizer que o amor oferecido por Jesus aos seus não se deve aos méritos da comunidade, mas porque o amor é a sua essência e, sendo Ele amor, não pode oferecer outra coisa que não seja o amor. Portanto, traição e negação, e tantas outras incoerências dos seus discípulos e discípulas de todos os tempos, não fazem Jesus diminuir o seu amor, embora isso comprometa a sua manifestação no mundo, como Ele mesmo adverte. O primeiro momento da ceia narrado por João foi o lava-pés (Jo 13,1-15); com esse gesto surpreendente, Jesus já sinalizava aos discípulos que viriam novidades no seu ensinamento; e a maior novidade, sem dúvidas, foi o “novo mandamento”.

Feitas as devidas considerações introdutórias, a modo de contexto, olhemos para o texto. Como se vê, começa com uma introdução informativa do narrador, e em seguida é ocupado somente por palavras de Jesus: «Depois que Judas saiu, disse Jesus: “Agora foi glorificado o Filho do Homem, e Deus foi glorificado nele. Se Deus foi glorificado nele, também Deus o glorificará em si mesmo, e o glorificará logo”» (vv. 31-32). A saída de Judas da sala onde estavam ceando é um ato demarcatório para a glorificação de Jesus, e não a sua causa. Judas saiu para traí-lo, rompendo a comunhão e rejeitando o amor que lhe estava sendo oferecido. Certamente, foi doloroso para Jesus ver um dos seus amigos deixar a comunidade para aliar-se aos poderosos que estavam prestes a condená-lo – poder romano e autoridades religiosas de Jerusalém –, trocando o amor gratuito por dinheiro. Ao sentir que nem diante de um fato tão lamentável o seu amor diminuía, Jesus confirmava que, tinha mesmo chegado a sua hora, o momento da glória. Ele sabia, de fato, que sua morte estava muito perto. E ele tinha plena consciência de que sua morte não seria o fim, mas o começo de uma nova história, pois era prova de sua fidelidade ao Pai e do seu amor pela humanidade.

Para falar da sua glória, Jesus aplica a si a imagem misteriosa do “Filho do Homem”, um título conhecido na literatura judaica, que na época de Jesus evocava um ser glorioso e potente. Geralmente, Jesus relaciona essa imagem ao seu sofrimento, tanto aqui em João quanto nos sinóticos (Mt 17,22; 20,18; Mc 9,12.31; 10,33; Lc 9,22.44), contradizendo o uso recorrente da expressão no seu tempo, que evocava poder, acima de tudo. Com ela, Jesus evoca sua humanidade plena, pressuposto para o reconhecimento da sua divindade. Em João, especialmente, glorificação e sofrimento são termos que se completam reciprocamente, ou seja, glória e paixão/sofrimento estão intrinsecamente relacionadas. A certeza de que a traição não diminui o seu amor e nem lhe faz recuar dos seus propósitos de fidelidade incondicional ao Pai, faz Jesus concluir que a o momento da glorificação chegou. Inclusive, essa hora fora bastante esperada na dinâmica do Quarto Evangelho. Em diversos momentos Jesus tinha afirmado que sua hora não tinha ainda chegado (Jo 2,4; 7,30; 8,20). Somente agora, no drama da paixão, tendo a traição como sinal, durante a ceia, Jesus confirma que é chegado a sua hora.

É importante a unidade existente entre Jesus e Deus, o Pai. Como os dois são Um (Jo 10,30; 17,21), ambos são glorificados simultaneamente: «foi glorificado o Filho do Homem, e Deus foi glorificado nele». Ora, a glória do Filho consiste em realizar os propósitos do Pai; a glória do Pai, por sua vez, consiste em ver o Filho sendo-lhe fiel até as últimas consequências. Chama a atenção o fato de que a expressão verbal “glorificar” (em grego: δοξάζω – doxázo) aparece cinco vezes em apenas dois versículos (vv. 31-32), o que confirma ainda mais a importância do tema. Inclusive, o título que recebe a segunda parte do Evangelho joanino é “Livro da glória” (Jo 13–20). Essa glória compreende a paixão, morte e ressurreição de Jesus, e é motivada pelo amor incondicional e recíproco entre o Pai e o Filho. E é esse o modelo de amor que a comunidade cristã deve reproduzir no mundo, o que Judas não assimilou e, por isso, saiu da sala, passando para o lado dos poderosos, aqueles que não aceitaram o amor e, por isso, o combateram, porém, em vão, imaginando eliminá-lo, com a morte de Jesus na cruz.

Apesar do drama de ver um amigo disperso, rejeitando seu amor, preferindo ficar fora da sua comunhão, e a certeza da cruz iminente, o amor e a ternura de Jesus se revelam cada vez mais fortes. Ele não se deixa abalar e, continuando seu discurso de despedida, afirma: «Filhinhos, por pouco tempo estou ainda convosco» (v. 33a). Certamente, estava emocionado ao usar essa expressão de ternura, chamando os discípulos de filhos no diminutivo: “Filhinhos” (em grego: τεκνία = teknía), o que poderia traduzido também por “pequeninos gerados”; é a única vez em que essa palavra aparece no Evangelho de João, embora seja um termo bastante comum no vocabulário da sua comunidade, pois aparece sete vezes na sua Primeira Carta (1Jo 2,1.12.28; 3,7.18 4,4; 5,21). É um termo afetuoso, usado aqui por quem está em clima de despedida e tem recomendações muito sérias para dar aos discípulos que devem continuar a sua obra, pois Ele tinha muita clareza de que lhe restava pouco tempo com eles, em sua existência terrena. Porém, estava dando uma alternativa para que, mesmo após sua morte, a comunidade continuasse tendo a sua presença. E essa alternativa é a vivência do amor.

Tendo preparado os discípulos, expressando-lhes uma ternura única, Jesus lhes transmite a sua maior herança: «Eu vos dou um novo mandamento: amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros» (v. 34). Talvez os discípulos esperassem mais, como um conjunto de normas, ritos, etc. Mas Jesus deixou somente isso: um mandamento novo. Na língua original do Evangelho – o grego – há dois adjetivos que correspondem a “novo”: o primeiro deles (νεός – néos), possui um sentido cronológico; significa algo novo que se soma ao que já existe; o segundo (καινός – kainós), tem um sentido qualitativo; significa algo novo que substitui o velho, superando-o e fazendo-o desaparecer. É essa segunda palavra que o evangelista emprega aqui. Portanto, o mandamento novo dado por Jesus não vem a ser um acréscimo ao decálogo, que era a síntese da Torá, mas o seu completo cumprimento, o que vem a ser também uma superação, por isso, possui valor substitutivo. Quer dizer que, vivendo esse mandamento, a comunidade não necessita mais de nenhum outro. Somente em João o mandamento do amor é dado com essa radicalidade, como veremos a seguir.

É claro que a antiga Lei mosaica já previa o amor ao próximo: «amarás o teu próximo como a ti mesmo» (Lv 19,18). Na tradição sinótica, houve uma adaptação do primeiro mandamento do decálogo com esse do Levítico: «amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças, e ao teu próximo como a ti mesmo» (Mt 22,37-38; Mc 12,33; Lc 10,27). Por sinal, vale a pena recordar que na tradição sinótica o amor constitui-se o mandamento maior, enquanto para o Quarto Evangelho é o único mandamento. Diante disso, a novidade apresentada por João se torna ainda mais evidente, pois Jesus não reivindica nada para si e nem para Deus, o Pai; pede apenas amor recíproco entre os membros da comunidade: «amai-vos uns aos outros»; nesse amor recíproco entre os discípulos, obviamente, estará o amor a Deus, pois é Ele a fonte do amor e, consequentemente, a Jesus, o revelador do amor do Pai. De acordo com o Levítico e os Sinóticos, o critério do amor ao próximo é o amor a si próprio: «amarás o teu próximo como a ti mesmo»; Jesus muda também essa perspectiva: o critério do amor que deve ser vivenciado na comunidade é o seu. O parâmetro é o amor de Jesus: «como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros»; e o seu não é um amor qualquer, mas é aquele amor capaz de dar a vida pelo outro. A medida do amor ao próximo, portanto, deve ser somente o amor de Jesus, cuja expressão visível mais imediata é o serviço, como Ele tinha demonstrado lavando os pés dos discípulos e também recomendando: «Eu vos dei um exemplo para que também vós façais o mesmo» (Jo 13,15).

O mandamento dado por Jesus é tão novo, que a vivência dele se torna o único critério de pertença à sua comunidade: «Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros» (v. 35). É a vivência recíproca desse amor que caracteriza uma comunidade como pertencente a Jesus, e que manifesta a presença do Ressuscitado nela e no mundo. Assim, Jesus deixa muito claro que aquilo que credencia alguém como seu discípulo ou discípula não é a repetição de uma fórmula de fé, não é o uso de símbolos ou adornos, nem a pertença a alguma instituição religiosa, mas somente o amor. Indiscutivelmente, o amor é a identidade e o estatuto do discipulado de Jesus. Logo, somente o amor é suficiente para alguém ser reconhecido como discípulo ou discípula de Jesus, pois quem ama à sua maneira torna concreta a sua presença.

A insistência com o imperativo do amor por Jesus, que por sinal é uma característica de todo o discurso, visa alertar a comunidade para nunca relativizar aquilo que é essencial para a vida cristã e determinante para a fé. Jesus fala da maneira mais clara possível para não ser confundido. A identidade cristã é o amor. Nada pode sobrepor-se e nem substituir o amor. Pode faltar tudo numa comunidade cristã, menos o amor entre os seus membros. É esse amor que atesta se a comunidade é realmente cristã, ou seja, se está unida a Jesus. Por isso, mais do que um preceito, mais do que uma cláusula de um código legislativo, o amor é uma missão.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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