Todos os anos,
a liturgia do quinto e do sexto domingo do tempo pascal utiliza passagens do
chamado “testamento de Jesus” do Quarto Evangelho (Jo 13–17). Esses capítulos,
que correspondem ao relato da última ceia, contém o ensinamento mais precioso
de Jesus no contexto narrativo do Evangelho de João. Trata-se de um conjunto de
diversos discursos que o evangelista os reuniu como se fosse apenas um grande
discurso, apresentando-o como síntese de tudo o que Jesus fez e ensinou durante
a sua vida. Por isso, o conjunto começa com o gesto do lava-pés (Jo 13,1-12),
expressão máxima do agir serviçal, por amor, de Jesus, e é concluído com a
chamada oração sacerdotal (Jo 17,1-26), na qual Jesus expressa sua intimidade
com o Pai, marcada pela confiança e entrega, demonstrando seu cuidado amoroso
pela humanidade, suplicando unidade e fraternidade. Do lava-pés à oração de
Jesus, portanto, está a síntese de toda a sua vida. O evangelista faz isso como
resposta às necessidades da sua comunidade, que passava por crises, deixando
essa inseparabilidade entre a vida e a mensagem de Jesus como legado também
para as comunidades de todos os tempos, sempre necessitadas de retornar à
essência da sua mensagem.
Neste quinto
domingo do “Ano C”, o texto proposto é Jo 13,31-33a.34-35. À medida em que o
tempo pascal avança, após lermos os diversos relatos das manifestações
(aparições) do Ressuscitado junto aos seus discípulos(a), é interessante
retornar à essência do que Ele ensinou, tendo em vista a proximidade da
ascensão, para que essa não seja sinal de ausência, mas de presença e vivência
dos seus ensinamentos. De fato, é através da vivência do que Jesus ensinou que
se pode experimentar a sua presença de Ressuscitado ao longo da história. Nesse
sentido, a liturgia de hoje chama a atenção para o que Ele ensinou e deixou de
mais precioso para os seus seguidores e seguidoras de todos os tempos: o
mandamento do amor, tema central do evangelho deste dia. Como já foi acenado
anteriormente, o contexto do evangelho de hoje é o da última ceia, ambientada
no cenáculo, vivenciada por Jesus e seus discípulos, às vésperas da Páscoa. No
Evangelho de João, especialmente, a ceia não é apenas o consumo de alimentos e
nem a vivência de um rito, tampouco uma mera confraternização. A ceia é, acima
de tudo, um momento forte de catequese e autorrevelação de Jesus; é o momento
de apresentação de seu testamento, como é considerado o seu longo discurso.
Ainda a nível
de contexto, é importante recordar que o trecho utilizado pela liturgia de hoje
está localizado entre os dois momentos mais dramáticos da ceia: o anúncio da
traição de Judas (Jo 13,21-30) e a predição da negação de Pedro (Jo 13,36-38).
Essa localização é proposital e corresponde às intenções catequéticas e
teológicas do evangelista: não obstante às debilidades da comunidade, o que
Jesus tem a oferecer é sempre o amor. Quer dizer que o amor oferecido por Jesus
aos seus não se deve aos méritos da comunidade, mas porque o amor é a sua
essência e, sendo Ele amor, não pode oferecer outra coisa que não seja o amor.
Portanto, traição e negação, e tantas outras incoerências dos seus discípulos e
discípulas de todos os tempos, não fazem Jesus diminuir o seu amor, embora isso
comprometa a sua manifestação no mundo, como Ele mesmo adverte. O primeiro
momento da ceia narrado por João foi o lava-pés (Jo 13,1-15); com esse gesto
surpreendente, Jesus já sinalizava aos discípulos que viriam novidades no seu
ensinamento; e a maior novidade, sem dúvidas, foi o “novo mandamento”.
Feitas as
devidas considerações introdutórias, a modo de contexto, olhemos para o texto.
Como se vê, começa com uma introdução informativa do narrador, e em seguida é
ocupado somente por palavras de Jesus: «Depois que Judas saiu, disse
Jesus: “Agora foi glorificado o Filho do Homem, e Deus foi glorificado nele. Se
Deus foi glorificado nele, também Deus o glorificará em si mesmo, e o
glorificará logo”» (vv. 31-32). A saída de Judas da sala onde estavam
ceando é um ato demarcatório para a glorificação de Jesus, e não a sua causa.
Judas saiu para traí-lo, rompendo a comunhão e rejeitando o amor que lhe estava
sendo oferecido. Certamente, foi doloroso para Jesus ver um dos seus amigos
deixar a comunidade para aliar-se aos poderosos que estavam prestes a
condená-lo – poder romano e autoridades religiosas de Jerusalém –, trocando o
amor gratuito por dinheiro. Ao sentir que nem diante de um fato tão lamentável
o seu amor diminuía, Jesus confirmava que, tinha mesmo chegado a sua hora, o
momento da glória. Ele sabia, de fato, que sua morte estava muito perto. E ele
tinha plena consciência de que sua morte não seria o fim, mas o começo de uma
nova história, pois era prova de sua fidelidade ao Pai e do seu amor pela
humanidade.
Para falar da
sua glória, Jesus aplica a si a imagem misteriosa do “Filho do Homem”, um
título conhecido na literatura judaica, que na época de Jesus evocava um ser
glorioso e potente. Geralmente, Jesus relaciona essa imagem ao seu sofrimento,
tanto aqui em João quanto nos sinóticos (Mt 17,22; 20,18; Mc 9,12.31; 10,33; Lc
9,22.44), contradizendo o uso recorrente da expressão no seu tempo, que evocava
poder, acima de tudo. Com ela, Jesus evoca sua humanidade plena, pressuposto
para o reconhecimento da sua divindade. Em João, especialmente, glorificação e
sofrimento são termos que se completam reciprocamente, ou seja, glória e
paixão/sofrimento estão intrinsecamente relacionadas. A certeza de que a
traição não diminui o seu amor e nem lhe faz recuar dos seus propósitos de
fidelidade incondicional ao Pai, faz Jesus concluir que a o momento da
glorificação chegou. Inclusive, essa hora fora bastante esperada na dinâmica do
Quarto Evangelho. Em diversos momentos Jesus tinha afirmado que sua hora não
tinha ainda chegado (Jo 2,4; 7,30; 8,20). Somente agora, no drama da paixão,
tendo a traição como sinal, durante a ceia, Jesus confirma que é chegado a sua
hora.
É importante a
unidade existente entre Jesus e Deus, o Pai. Como os dois são Um (Jo 10,30;
17,21), ambos são glorificados simultaneamente: «foi glorificado o Filho do
Homem, e Deus foi glorificado nele». Ora, a glória do Filho consiste
em realizar os propósitos do Pai; a glória do Pai, por sua vez, consiste em ver
o Filho sendo-lhe fiel até as últimas consequências. Chama a atenção o fato de
que a expressão verbal “glorificar” (em grego: δοξάζω – doxázo)
aparece cinco vezes em apenas dois versículos (vv. 31-32), o que confirma ainda
mais a importância do tema. Inclusive, o título que recebe a segunda parte do
Evangelho joanino é “Livro da glória” (Jo 13–20). Essa glória compreende a
paixão, morte e ressurreição de Jesus, e é motivada pelo amor incondicional e
recíproco entre o Pai e o Filho. E é esse o modelo de amor que a comunidade
cristã deve reproduzir no mundo, o que Judas não assimilou e, por isso, saiu da
sala, passando para o lado dos poderosos, aqueles que não aceitaram o amor e,
por isso, o combateram, porém, em vão, imaginando eliminá-lo, com a morte de
Jesus na cruz.
Apesar do
drama de ver um amigo disperso, rejeitando seu amor, preferindo ficar fora da sua
comunhão, e a certeza da cruz iminente, o amor e a ternura de Jesus se revelam
cada vez mais fortes. Ele não se deixa abalar e, continuando seu discurso de
despedida, afirma: «Filhinhos, por pouco tempo estou ainda convosco» (v.
33a). Certamente, estava emocionado ao usar essa expressão de ternura, chamando
os discípulos de filhos no diminutivo: “Filhinhos” (em grego: τεκνία =
teknía), o que poderia traduzido também por “pequeninos gerados”; é a única vez
em que essa palavra aparece no Evangelho de João, embora seja um termo bastante
comum no vocabulário da sua comunidade, pois aparece sete vezes na sua Primeira
Carta (1Jo 2,1.12.28; 3,7.18 4,4; 5,21). É um termo afetuoso, usado aqui por
quem está em clima de despedida e tem recomendações muito sérias para dar aos
discípulos que devem continuar a sua obra, pois Ele tinha muita clareza de que
lhe restava pouco tempo com eles, em sua existência terrena. Porém, estava
dando uma alternativa para que, mesmo após sua morte, a comunidade continuasse
tendo a sua presença. E essa alternativa é a vivência do amor.
Tendo
preparado os discípulos, expressando-lhes uma ternura única, Jesus lhes transmite
a sua maior herança: «Eu vos dou um novo mandamento: amai-vos uns aos
outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros» (v.
34). Talvez os discípulos esperassem mais, como um conjunto de normas, ritos,
etc. Mas Jesus deixou somente isso: um mandamento novo. Na língua original do
Evangelho – o grego – há dois adjetivos que correspondem a “novo”: o primeiro
deles (νεός – néos), possui um sentido cronológico; significa algo novo que se soma ao
que já existe; o segundo (καινός – kainós), tem um
sentido qualitativo; significa algo novo que substitui o velho, superando-o e
fazendo-o desaparecer. É essa segunda palavra que o evangelista emprega aqui.
Portanto, o mandamento novo dado por Jesus não vem a ser um acréscimo ao
decálogo, que era a síntese da Torá, mas o seu completo cumprimento, o que vem
a ser também uma superação, por isso, possui valor substitutivo. Quer dizer
que, vivendo esse mandamento, a comunidade não necessita mais de nenhum outro.
Somente em João o mandamento do amor é dado com essa radicalidade, como veremos
a seguir.
É claro que a
antiga Lei mosaica já previa o amor ao próximo: «amarás o teu próximo
como a ti mesmo» (Lv 19,18). Na tradição sinótica, houve uma adaptação
do primeiro mandamento do decálogo com esse do Levítico: «amarás o
Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas
forças, e ao teu próximo como a ti mesmo» (Mt 22,37-38; Mc 12,33; Lc
10,27). Por sinal, vale a pena recordar que na tradição sinótica o amor constitui-se o mandamento maior, enquanto para o Quarto Evangelho é o único mandamento. Diante disso, a novidade apresentada por João se torna ainda mais
evidente, pois Jesus não reivindica nada para si e nem para Deus, o Pai; pede
apenas amor recíproco entre os membros da comunidade: «amai-vos uns aos
outros»; nesse amor recíproco entre os discípulos, obviamente, estará o
amor a Deus, pois é Ele a fonte do amor e, consequentemente, a Jesus, o
revelador do amor do Pai. De acordo com o Levítico e os Sinóticos, o critério
do amor ao próximo é o amor a si próprio: «amarás o teu próximo como a
ti mesmo»; Jesus muda também essa perspectiva: o critério do amor que deve
ser vivenciado na comunidade é o seu. O parâmetro é o amor de Jesus: «como
eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros»; e o seu não
é um amor qualquer, mas é aquele amor capaz de dar a vida pelo outro. A medida
do amor ao próximo, portanto, deve ser somente o amor de Jesus, cuja expressão
visível mais imediata é o serviço, como Ele tinha demonstrado lavando os pés
dos discípulos e também recomendando: «Eu vos dei um exemplo para que também
vós façais o mesmo» (Jo 13,15).
O mandamento
dado por Jesus é tão novo, que a vivência dele se torna o único critério de
pertença à sua comunidade: «Nisto todos conhecerão que sois meus
discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros» (v. 35). É a vivência
recíproca desse amor que caracteriza uma comunidade como pertencente a Jesus, e
que manifesta a presença do Ressuscitado nela e no mundo. Assim, Jesus deixa
muito claro que aquilo que credencia alguém como seu discípulo ou discípula não
é a repetição de uma fórmula de fé, não é o uso de símbolos ou adornos, nem a
pertença a alguma instituição religiosa, mas somente o amor. Indiscutivelmente,
o amor é a identidade e o estatuto do discipulado de Jesus. Logo, somente o
amor é suficiente para alguém ser reconhecido como discípulo ou discípula de
Jesus, pois quem ama à sua maneira torna concreta a sua presença.
A insistência com o imperativo do amor por Jesus, que por sinal é uma
característica de todo o discurso, visa alertar a comunidade para nunca
relativizar aquilo que é essencial para a vida cristã e determinante para a fé.
Jesus fala da maneira mais clara possível para não ser confundido. A identidade
cristã é o amor. Nada pode sobrepor-se e nem substituir o amor. Pode faltar
tudo numa comunidade cristã, menos o amor entre os seus membros. É esse amor
que atesta se a comunidade é realmente cristã, ou seja, se está unida a Jesus.
Por isso, mais do que um preceito, mais do que uma cláusula de um código
legislativo, o amor é uma missão.
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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