A liturgia do trigésimo domingo
do tempo comum propõe a leitura de mais uma parábola exclusiva do Evangelho de
Lucas, que é também uma das mais conhecidas de todo o Novo Testamento: a
parábola do fariseu e o publicano – Lc 18,9-14. O contexto desta passagem
continua sendo o caminho de Jesus com seus discípulos para Jerusalém, cuja
chegada já se aproxima. Como temos frequentemente recordado, o caminho possui
uma importância ímpar no Evangelho de Lucas, ocupando dez capítulos (Lc
9,51–19,27), constituindo, assim, a seção narrativa mais longa de toda a obra,
tornando-se, assim, um traço distintivo dela. Mais do que um percurso físico e
geográfico, para Lucas o caminho é imagem da catequese e da identidade
missionária da Igreja; é um verdadeiro programa formativo, um itinerário
pedagógico no qual ele distribuiu os principais ensinamentos de Jesus, tendo em
vista a formação do discipulado de todos os tempos. Se, entre os três
evangelhos sinóticos – Mt, Mc e Lc –, Lucas pode ser considerado o mais
original, é graças à seção do caminho. De fato, é no caminho que ele distribui
mais ensinamentos exclusivos do seu evangelho, principalmente as parábolas.
No ano litúrgico corrente, este é
o penúltimo domingo em que o evangelho é tirado da seção do caminho. Isso quer
dizer que o texto lido neste dia já pertence à parte final da respectiva seção
narrativa e faz parte dos ensinamentos conclusivos. Logo, possui muita
importância para a comunidade, além de grande riqueza teológica e estética,
apesar de ser uma parábola simples, do ponto de vista narrativo. Por sinal, o
tema desta parábola chega a dividir opiniões entre os exegetas. Alguns afirmam
categoricamente que a temática tratada é a oração, simplesmente. Outros a vêem
sob uma perspectiva mais ampla, identificando nela uma diversidade de temas
além da oração, tais como: a justificação; a relação entre judeus e pagãos; a
relação com Deus, com o próximo e consigo mesmo na vida cristã; a ética cristã;
a humildade e o orgulho, etc. A segunda posição parece mais convincente. A
parábola trata de praticamente todas as dimensões da vida cristã, dentre as
quais está a oração, obviamente. Isso a torna ainda mais rica. Ao recordá-la, o
evangelista visava corrigir problemas da sua comunidade e prevenir comunidades
futuras sobre o comportamento cristão.
O texto possui dois versículos
introdutórios (vv. 9-10), que reproduzem falas do narrador e de Jesus, respectivamente.
Da compreensão dos dois, depende a compreensão do inteiro texto. Eis o primeiro
versículo: «Jesus contou esta parábola para alguns que confiavam na sua
própria justiça e desprezavam os outros:» (v. 9). Esse versículo é
extremamente importante, sobretudo no que diz respeito aos destinatários da
parábola. Ora, é muito comum lermos nos evangelhos, incluindo o de Lucas,
fórmulas introdutórias aos ensinamentos de Jesus como “Jesus contou aos discípulos”,
“Jesus disse às multidões”, “Jesus contou aos fariseus”, etc. Diante disso,
percebe-se o quanto a maneira como Lucas introduz a parábola de hoje chega a
ser surpreendente, sobretudo pela abrangência. Como se vê, ela não é dirigida a
um grupo específico, mas a todas as pessoas que se comportam da maneira
descrita, ou seja, «a quem confia na própria justiça e despreza os
outros», independentemente do grupo religioso e da condição social de
pertença. Isso indica também a perenidade do seu ensinamento: aplica-se a todas
as épocas, pois pessoas assim sempre existirão.
Confiar na própria justiça e
desprezar os outros são duas atitudes incompatíveis com o seguimento de Jesus,
por isso, inaceitáveis na comunidade cristã. São atitudes que devem ser
combatidas e denunciadas. Obviamente, o evangelista se preocupava com o
presente das suas comunidades e o futuro de todo o cristianismo. Mais do que o
desânimo, consequência das perseguições externas, tendência combatida pelo
evangelista com a parábola do juiz injusto e a viúva insistente (Lc 18,1-8), lida
no domingo passado, o que mais ameaçava a vida interna das comunidades era a
arrogância de alguns membros que se consideravam justos e irrepreensíveis,
pessoas que se achavam perfeitas e santas, reproduzindo um dos comportamentos
que Jesus mais tinha denunciado em seu ministério. E a primeira tendência de
quem se considera perfeito é desprezar quem não se comporta da mesma maneira. O
desprezo pelos outros, portanto, é consequência do sentir-se justo e,
obviamente, de uma imagem errada de Deus. Com certeza, ainda hoje, há muitas
pessoas nas comunidades e movimentos cristãos com essa tendência, e é
exatamente isso que faz desta parábola uma das mais atuais de todo o Novo
Testamento.
O segundo versículo introdutório
também é muito importante, pois já nos insere no conteúdo mesmo da parábola,
com a apresentação dos personagens e do cenário: «Dois homens subiram
ao Templo para rezar: um era fariseu, o outro cobrador de impostos» (v.
10). Considerando a primeira parte do versículo (v. 10a), não vemos nada de
surpreendente: sendo o templo a casa de oração, por excelência, era normal que
dois homens fossem até lá para rezar. Aqui, o verbo subir (em grego: άναβαίνω – anabaíno) tem o mesmo
sentido que dirigir-se ou entrar; é o verbo que os judeus empregavam com
orgulho para expressar a ida ou a entrada, tanto no Templo quanto na cidade de
Jerusalém. Ora, estando Deus nos céus, ou seja, nas alturas, como imaginavam os
judeus, o encontro com ele exigia do ser humano um movimento para cima, e a localização
elevada da cidade de Jerusalém e do templo, sobretudo, favoreciam esse
movimento. A surpresa surge na apresentação dos personagens. Um fariseu e um
cobrador de impostos constituíam os dois polos opostos da sociedade
palestinense da época de Jesus, principalmente no âmbito religioso. Como se
sabe, é típico de Lucas apresentar dois personagens juntos, mas com
características diferentes e até antagônicas, fazendo uso da técnica retórica
do paralelismo antitético. Ele faz isso tanto com personagens reais quanto
fictícios. Eis alguns exemplos: Zacarias e Maria (1,5-38), Marta e Maria
(10,38-42), o filho mais novo e o filho mais velho (15,11-32), Lázaro e o rico
avarento (16,19-31), a viúva insistente e o juiz injusto (18,1-8), e o fariseu
e o cobrador de impostos.
Os fariseus eram símbolo de
religiosidade e vida impecável. Embora os evangelhos apresentem eles com traços
bastante negativos, a ponto de os associarem de imediato à hipocrisia, na
verdade eles constituíam a classe das pessoas mais respeitadas na época. Pela
observância minuciosa da Lei e pelas boas obras que cumpriam, eles gozavam da
simpatia popular, principalmente pela vida exemplar que levavam. Já os
cobradores de impostos, pelo contrário, gozavam de péssima reputação, apesar do
bem-estar econômico que a profissão lhes proporcionava. Conhecidos também como
publicanos, eles eram colaboradores diretos do poder opressor, na época, o
império romano. Além das altas taxas exigidas pelo império, eles ainda cobravam
grandes proporções a mais, enriquecendo ilicitamente às custas do povo mais
pobre, principalmente; além do salário, ainda retinham para si o que cobravam
em excesso. Por isso, eram odiados pelo povo e totalmente excluídos da
religião, pois a condição de servidores do poder dominante não permitia que
observassem a Lei de Deus. A oração do fariseu, no versículo seguinte, deixa
bastante clara a má reputação do cobrador de impostos: é o último dos últimos,
em termos de prestígio social e religioso, considerado pior até do que «os
ladrões, desonestos e adúlteros» (v. 11), mesmo bem posicionados economicamente.
Portanto, Jesus escolheu, aqui, um personagem símbolo de religiosidade (o
fariseu) e outro símbolo de degradação moral (o cobrador de impostos) para
contrapô-los e alertar os seus discípulos de todos os tempos sobre o perigo da
soberba, orgulho e prepotência, sobretudo quando estas posturas são motivadas
pela religião.
A parábola não se limita a dizer
que os dois homens foram ao templo para rezar, mas mostra também o conteúdo da
oração deles e a maneira de rezar de cada um. E é esse conteúdo o que vai
determinar o desfecho da história. Primeiro, é descrita a oração do fariseu: «O
fariseu, de pé, rezava assim em seu íntimo: “Ó Deus, eu te agradeço porque não
sou como os outros homens, ladrões, desonestos, adúlteros, nem como este
cobrador de impostos» (v. 11). Como se vê, a oração do fariseu é toda
voltada a si mesmo; ele não agradece pelo que Deus faz em sua vida, mas pelo
que ele mesmo é e faz, considerando-se superior e demonstrando total desprezo
pelas demais pessoas. Sua oração é um louvor a si próprio. Ao invés de
confrontar sua vida com o projeto de Deus, ele a compara à vida dos outros. Na
verdade, ele considera Deus um mero contador, a quem apresenta as boas obras e,
por isso, deve receber créditos em troca. Para provar que era um homem “acima da
média”, ele elenca suas vantagens: «Eu jejuo duas vezes por semana, e
dou o dízimo de toda a minha renda» (v. 12). Ora, a Lei exigia o jejum
apenas uma vez ao ano, no chamado “dia da expiação” (Lv 16,29); os judeus mais
devotos, no entanto, como muitos fariseus, jejuavam duas vezes por semana, nas
segundas e quintas-feiras, em alusão à subida e à descida de Moisés ao monte
para receber a Lei, imaginando que, com esta prática, teriam mais vantagens
diante de Deus. Quanto ao dízimo, a Lei exigia apenas dos produtos principais:
do trigo, do vinho, do azeite e das primeiras crias do rebanho (Dt 14,22-27),
enquanto este fariseu dava o dízimo de tudo. Em suma, a oração do fariseu não
passa de uma prestação de contas a Deus.
A descrição da oração do cobrador
de impostos, pelo contrário, revela a postura de uma pessoa sincera, que tem
consciência da sua condição de pecador: «O cobrador de impostos, porém,
ficou à distância e nem se atrevia a levantar os olhos para o céu; mas batia no
peito dizendo: “Meu Deus, tem piedade de mim que sou pecador!”» (v.
13). Antes de tudo, vale ressaltar a coragem deste cobrador de impostos; ora,
como pecador público, ele foi ousado ao entrar no templo, pois sabia que seria
observado pelas pessoas e até julgado e escarnecido, como foi pelo fariseu em
sua oração: «não sou como este cobrador de impostos» (v. 11).
O reconhecimento da condição de pecador é evidenciado pela postura e as
palavras do cobrador de impostos. Ele ficou à distância e sem coragem de
levantar os olhos para o céu, e batia no peito, em sinal de penitência e
arrependimento; suas as palavras expressam a oração dos humildes de Deus
– «Meu Deus, tem piedade de mim que sou pecador!» –, uma
fórmula bastante repetida nos salmos penitenciais (Sl 25,11; 51,13; etc).
Somente quem é humilde reconhece a necessidade de Deus em sua vida. Ao
reconhecer essa necessidade, o publicano abre espaço para Deus agir em sua e
vida e faz experiência da sua misericórdia.
A parábola é concluída com uma
declaração solene e surpreendente de Jesus: “Eu vos digo: este último
voltou para casa justificado, o outro não. Pois quem se eleva será humilhado, e
que se humilha será elevado” (v. 14). A fórmula solene “eu vos digo”
(em grego: λέγω ύμιν – lêgô himin) é sempre a
introduz ou conclusão de um ensinamento importante e definitivo, algo
irrevogável, como é o desfecho desta parábola. Isso significa que se trata de
algo essencial para a comunidade cristã. A surpresa é que o cobrador de
impostos foi justificado e o fariseu não. Ser justificado significa ser
reconciliado por Deus e admitido à sua convivência, ao seu Reino e à salvação;
e isso não se dá por méritos pessoais, mas pela gratuidade do amor de Deus.
Voltado para si e para os seus próprios méritos, o fariseu não se abriu à
misericórdia de Deus, por isso, não recebeu justiça, ou seja, não foi
justificado. O cobrador de impostos, pelo contrário, reconhecendo sua condição
de pecador, suplicou o perdão de Deus e recebeu justiça. E a justiça de Deus,
que não é retributiva, está à disposição de quem necessita e a busca de coração
sincero. O fariseu considerava essa justiça um direito seu, diante das boas
obras que cumpria. A frase final é um provérbio, já usado por Lucas em outras
duas ocasiões (Lc 14,11; 18,14), que revela a lógica contraditória do Reino e
do Evangelho; expressa uma visão de mundo tratada por Lucas desde o início do
seu evangelho, ainda no Magnificat: «dispersou os orgulhosos, aos
humildes exaltou» (Lc 1,51b.52b). É a lógica do Reino de Deus, que
prevê uma reviravolta na história.
Para concluir, é importante
recordar alguns elementos. Jesus não declarou que o fariseu é uma má pessoa,
tampouco reprovou sua fidelidade à Lei; porém, condenou sua postura egoísta, a
sua autossuficiência e o seu desprezo pelos demais como consequência de uma
visão distorcida de Deus. Sendo o fariseu a imagem mais expressiva de uma
pessoa religiosa na época, Jesus quis alertar os seus seguidores, de outrora e
de sempre, que as pessoas religiosas demais são as que mais tendem a distorcer
a imagem de Deus. E a distorção da imagem de Deus pode levar as pessoas ao
autoritarismo fundamentalista, sentindo-se autorizadas até a praticarem
violência em nome de Deus. Jesus também não apresentou o cobrador de impostos
como um exemplo de comportamento para os seus discípulos imitarem; não resta
dúvidas, inclusive, de que Jesus condenava a exploração dos cobradores de
impostos e a contribuição que davam ao sistema opressor, o império romano;
Jesus apenas mostrou que a sua atitude humilde, reconhecendo seus limites e sua
condição de pecador, foi determinante para ele receber a justiça de Deus.
O ensinamento geral da parábola,
portanto, é uma denúncia clara a qualquer pessoa que se sente justa e despreza
os demais. Há pessoas prepotentes em todos os lugares; porém, o lugar mais
inadequado para estas pessoas estarem é a comunidade cristã. Enfim, o texto
ensina que o excesso de religião pode fazer mal. A situação atual do Brasil e
do mundo demonstra isso.
Pe.
Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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