sábado, outubro 25, 2025

REFLEXÃO PARA O 30º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 18,9-14 (ANO C)



A liturgia do trigésimo domingo do tempo comum propõe a leitura de mais uma parábola exclusiva do Evangelho de Lucas, que é também uma das mais conhecidas de todo o Novo Testamento: a parábola do fariseu e o publicano – Lc 18,9-14. O contexto desta passagem continua sendo o caminho de Jesus com seus discípulos para Jerusalém, cuja chegada já se aproxima. Como temos frequentemente recordado, o caminho possui uma importância ímpar no Evangelho de Lucas, ocupando dez capítulos (Lc 9,51–19,27), constituindo, assim, a seção narrativa mais longa de toda a obra, tornando-se, assim, um traço distintivo dela. Mais do que um percurso físico e geográfico, para Lucas o caminho é imagem da catequese e da identidade missionária da Igreja; é um verdadeiro programa formativo, um itinerário pedagógico no qual ele distribuiu os principais ensinamentos de Jesus, tendo em vista a formação do discipulado de todos os tempos. Se, entre os três evangelhos sinóticos – Mt, Mc e Lc –, Lucas pode ser considerado o mais original, é graças à seção do caminho. De fato, é no caminho que ele distribui mais ensinamentos exclusivos do seu evangelho, principalmente as parábolas.

No ano litúrgico corrente, este é o penúltimo domingo em que o evangelho é tirado da seção do caminho. Isso quer dizer que o texto lido neste dia já pertence à parte final da respectiva seção narrativa e faz parte dos ensinamentos conclusivos. Logo, possui muita importância para a comunidade, além de grande riqueza teológica e estética, apesar de ser uma parábola simples, do ponto de vista narrativo. Por sinal, o tema desta parábola chega a dividir opiniões entre os exegetas. Alguns afirmam categoricamente que a temática tratada é a oração, simplesmente. Outros a vêem sob uma perspectiva mais ampla, identificando nela uma diversidade de temas além da oração, tais como: a justificação; a relação entre judeus e pagãos; a relação com Deus, com o próximo e consigo mesmo na vida cristã; a ética cristã; a humildade e o orgulho, etc. A segunda posição parece mais convincente. A parábola trata de praticamente todas as dimensões da vida cristã, dentre as quais está a oração, obviamente. Isso a torna ainda mais rica. Ao recordá-la, o evangelista visava corrigir problemas da sua comunidade e prevenir comunidades futuras sobre o comportamento cristão.

O texto possui dois versículos introdutórios (vv. 9-10), que reproduzem falas do narrador e de Jesus, respectivamente. Da compreensão dos dois, depende a compreensão do inteiro texto. Eis o primeiro versículo: «Jesus contou esta parábola para alguns que confiavam na sua própria justiça e desprezavam os outros:» (v. 9). Esse versículo é extremamente importante, sobretudo no que diz respeito aos destinatários da parábola. Ora, é muito comum lermos nos evangelhos, incluindo o de Lucas, fórmulas introdutórias aos ensinamentos de Jesus como “Jesus contou aos discípulos”, “Jesus disse às multidões”, “Jesus contou aos fariseus”, etc. Diante disso, percebe-se o quanto a maneira como Lucas introduz a parábola de hoje chega a ser surpreendente, sobretudo pela abrangência. Como se vê, ela não é dirigida a um grupo específico, mas a todas as pessoas que se comportam da maneira descrita, ou seja, «a quem confia na própria justiça e despreza os outros», independentemente do grupo religioso e da condição social de pertença. Isso indica também a perenidade do seu ensinamento: aplica-se a todas as épocas, pois pessoas assim sempre existirão.

Confiar na própria justiça e desprezar os outros são duas atitudes incompatíveis com o seguimento de Jesus, por isso, inaceitáveis na comunidade cristã. São atitudes que devem ser combatidas e denunciadas. Obviamente, o evangelista se preocupava com o presente das suas comunidades e o futuro de todo o cristianismo. Mais do que o desânimo, consequência das perseguições externas, tendência combatida pelo evangelista com a parábola do juiz injusto e a viúva insistente (Lc 18,1-8), lida no domingo passado, o que mais ameaçava a vida interna das comunidades era a arrogância de alguns membros que se consideravam justos e irrepreensíveis, pessoas que se achavam perfeitas e santas, reproduzindo um dos comportamentos que Jesus mais tinha denunciado em seu ministério. E a primeira tendência de quem se considera perfeito é desprezar quem não se comporta da mesma maneira. O desprezo pelos outros, portanto, é consequência do sentir-se justo e, obviamente, de uma imagem errada de Deus. Com certeza, ainda hoje, há muitas pessoas nas comunidades e movimentos cristãos com essa tendência, e é exatamente isso que faz desta parábola uma das mais atuais de todo o Novo Testamento.

O segundo versículo introdutório também é muito importante, pois já nos insere no conteúdo mesmo da parábola, com a apresentação dos personagens e do cenário: «Dois homens subiram ao Templo para rezar: um era fariseu, o outro cobrador de impostos» (v. 10). Considerando a primeira parte do versículo (v. 10a), não vemos nada de surpreendente: sendo o templo a casa de oração, por excelência, era normal que dois homens fossem até lá para rezar. Aqui, o verbo subir (em grego: άναβαίνω – anabaíno) tem o mesmo sentido que dirigir-se ou entrar; é o verbo que os judeus empregavam com orgulho para expressar a ida ou a entrada, tanto no Templo quanto na cidade de Jerusalém. Ora, estando Deus nos céus, ou seja, nas alturas, como imaginavam os judeus, o encontro com ele exigia do ser humano um movimento para cima, e a localização elevada da cidade de Jerusalém e do templo, sobretudo, favoreciam esse movimento. A surpresa surge na apresentação dos personagens. Um fariseu e um cobrador de impostos constituíam os dois polos opostos da sociedade palestinense da época de Jesus, principalmente no âmbito religioso. Como se sabe, é típico de Lucas apresentar dois personagens juntos, mas com características diferentes e até antagônicas, fazendo uso da técnica retórica do paralelismo antitético. Ele faz isso tanto com personagens reais quanto fictícios. Eis alguns exemplos: Zacarias e Maria (1,5-38), Marta e Maria (10,38-42), o filho mais novo e o filho mais velho (15,11-32), Lázaro e o rico avarento (16,19-31), a viúva insistente e o juiz injusto (18,1-8), e o fariseu e o cobrador de impostos.

Os fariseus eram símbolo de religiosidade e vida impecável. Embora os evangelhos apresentem eles com traços bastante negativos, a ponto de os associarem de imediato à hipocrisia, na verdade eles constituíam a classe das pessoas mais respeitadas na época. Pela observância minuciosa da Lei e pelas boas obras que cumpriam, eles gozavam da simpatia popular, principalmente pela vida exemplar que levavam. Já os cobradores de impostos, pelo contrário, gozavam de péssima reputação, apesar do bem-estar econômico que a profissão lhes proporcionava. Conhecidos também como publicanos, eles eram colaboradores diretos do poder opressor, na época, o império romano. Além das altas taxas exigidas pelo império, eles ainda cobravam grandes proporções a mais, enriquecendo ilicitamente às custas do povo mais pobre, principalmente; além do salário, ainda retinham para si o que cobravam em excesso. Por isso, eram odiados pelo povo e totalmente excluídos da religião, pois a condição de servidores do poder dominante não permitia que observassem a Lei de Deus. A oração do fariseu, no versículo seguinte, deixa bastante clara a má reputação do cobrador de impostos: é o último dos últimos, em termos de prestígio social e religioso, considerado pior até do que «os ladrões, desonestos e adúlteros» (v. 11), mesmo bem posicionados economicamente. Portanto, Jesus escolheu, aqui, um personagem símbolo de religiosidade (o fariseu) e outro símbolo de degradação moral (o cobrador de impostos) para contrapô-los e alertar os seus discípulos de todos os tempos sobre o perigo da soberba, orgulho e prepotência, sobretudo quando estas posturas são motivadas pela religião.

A parábola não se limita a dizer que os dois homens foram ao templo para rezar, mas mostra também o conteúdo da oração deles e a maneira de rezar de cada um. E é esse conteúdo o que vai determinar o desfecho da história. Primeiro, é descrita a oração do fariseu: «O fariseu, de pé, rezava assim em seu íntimo: “Ó Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros homens, ladrões, desonestos, adúlteros, nem como este cobrador de impostos» (v. 11). Como se vê, a oração do fariseu é toda voltada a si mesmo; ele não agradece pelo que Deus faz em sua vida, mas pelo que ele mesmo é e faz, considerando-se superior e demonstrando total desprezo pelas demais pessoas. Sua oração é um louvor a si próprio. Ao invés de confrontar sua vida com o projeto de Deus, ele a compara à vida dos outros. Na verdade, ele considera Deus um mero contador, a quem apresenta as boas obras e, por isso, deve receber créditos em troca. Para provar que era um homem “acima da média”, ele elenca suas vantagens: «Eu jejuo duas vezes por semana, e dou o dízimo de toda a minha renda» (v. 12). Ora, a Lei exigia o jejum apenas uma vez ao ano, no chamado “dia da expiação” (Lv 16,29); os judeus mais devotos, no entanto, como muitos fariseus, jejuavam duas vezes por semana, nas segundas e quintas-feiras, em alusão à subida e à descida de Moisés ao monte para receber a Lei, imaginando que, com esta prática, teriam mais vantagens diante de Deus. Quanto ao dízimo, a Lei exigia apenas dos produtos principais: do trigo, do vinho, do azeite e das primeiras crias do rebanho (Dt 14,22-27), enquanto este fariseu dava o dízimo de tudo. Em suma, a oração do fariseu não passa de uma prestação de contas a Deus.

A descrição da oração do cobrador de impostos, pelo contrário, revela a postura de uma pessoa sincera, que tem consciência da sua condição de pecador: «O cobrador de impostos, porém, ficou à distância e nem se atrevia a levantar os olhos para o céu; mas batia no peito dizendo: “Meu Deus, tem piedade de mim que sou pecador!”» (v. 13). Antes de tudo, vale ressaltar a coragem deste cobrador de impostos; ora, como pecador público, ele foi ousado ao entrar no templo, pois sabia que seria observado pelas pessoas e até julgado e escarnecido, como foi pelo fariseu em sua oração: «não sou como este cobrador de impostos» (v. 11). O reconhecimento da condição de pecador é evidenciado pela postura e as palavras do cobrador de impostos. Ele ficou à distância e sem coragem de levantar os olhos para o céu, e batia no peito, em sinal de penitência e arrependimento; suas as palavras expressam a oração dos humildes de Deus – «Meu Deus, tem piedade de mim que sou pecador!» –, uma fórmula bastante repetida nos salmos penitenciais (Sl 25,11; 51,13; etc). Somente quem é humilde reconhece a necessidade de Deus em sua vida. Ao reconhecer essa necessidade, o publicano abre espaço para Deus agir em sua e vida e faz experiência da sua misericórdia.

A parábola é concluída com uma declaração solene e surpreendente de Jesus: “Eu vos digo: este último voltou para casa justificado, o outro não. Pois quem se eleva será humilhado, e que se humilha será elevado” (v. 14). A fórmula solene “eu vos digo” (em grego: λέγω ύμιν – lêgô himin) é sempre a introduz ou conclusão de um ensinamento importante e definitivo, algo irrevogável, como é o desfecho desta parábola. Isso significa que se trata de algo essencial para a comunidade cristã. A surpresa é que o cobrador de impostos foi justificado e o fariseu não. Ser justificado significa ser reconciliado por Deus e admitido à sua convivência, ao seu Reino e à salvação; e isso não se dá por méritos pessoais, mas pela gratuidade do amor de Deus. Voltado para si e para os seus próprios méritos, o fariseu não se abriu à misericórdia de Deus, por isso, não recebeu justiça, ou seja, não foi justificado. O cobrador de impostos, pelo contrário, reconhecendo sua condição de pecador, suplicou o perdão de Deus e recebeu justiça. E a justiça de Deus, que não é retributiva, está à disposição de quem necessita e a busca de coração sincero. O fariseu considerava essa justiça um direito seu, diante das boas obras que cumpria. A frase final é um provérbio, já usado por Lucas em outras duas ocasiões (Lc 14,11; 18,14), que revela a lógica contraditória do Reino e do Evangelho; expressa uma visão de mundo tratada por Lucas desde o início do seu evangelho, ainda no Magnificat: «dispersou os orgulhosos, aos humildes exaltou» (Lc 1,51b.52b). É a lógica do Reino de Deus, que prevê uma reviravolta na história.

Para concluir, é importante recordar alguns elementos. Jesus não declarou que o fariseu é uma má pessoa, tampouco reprovou sua fidelidade à Lei; porém, condenou sua postura egoísta, a sua autossuficiência e o seu desprezo pelos demais como consequência de uma visão distorcida de Deus. Sendo o fariseu a imagem mais expressiva de uma pessoa religiosa na época, Jesus quis alertar os seus seguidores, de outrora e de sempre, que as pessoas religiosas demais são as que mais tendem a distorcer a imagem de Deus. E a distorção da imagem de Deus pode levar as pessoas ao autoritarismo fundamentalista, sentindo-se autorizadas até a praticarem violência em nome de Deus. Jesus também não apresentou o cobrador de impostos como um exemplo de comportamento para os seus discípulos imitarem; não resta dúvidas, inclusive, de que Jesus condenava a exploração dos cobradores de impostos e a contribuição que davam ao sistema opressor, o império romano; Jesus apenas mostrou que a sua atitude humilde, reconhecendo seus limites e sua condição de pecador, foi determinante para ele receber a justiça de Deus.

O ensinamento geral da parábola, portanto, é uma denúncia clara a qualquer pessoa que se sente justa e despreza os demais. Há pessoas prepotentes em todos os lugares; porém, o lugar mais inadequado para estas pessoas estarem é a comunidade cristã. Enfim, o texto ensina que o excesso de religião pode fazer mal. A situação atual do Brasil e do mundo demonstra isso.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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