Neste ano, a liturgia do trigésimo segundo domingo
do Tempo Comum é substituída pela Solenidade da Dedicação da Basílica de São
João de Latrão, a catedral de Roma. A precedência sobre o domingo expressa a importância
desta solenidade para toda a Igreja. De fato, a Basílica de São João de Latrão,
em Roma, é a igreja “mãe de todas as igrejas”. É a verdadeira catedral da
Diocese de Roma, cujo bispo é o papa. Foi consagrada no ano 324, pelo Papa São
Silvestre I, sendo dedicada inicialmente ao Santo Salvador. Alguns séculos mais
tarde, sua dedicação estendeu-se também aos santos de nome João: o Batista e o
Evangelista, dando origem ao título atual. Latrão – Laterano em italiano e
latim – é o nome da família proprietária do terreno onde a igreja foi
construída. Como em todas as dioceses a igreja catedral constitui o verdadeiro
centro de unidade, assim é a Basílica de São João do Latrão para o mundo
inteiro. Isso faz desta solenidade um sinal forte da comunhão universal da
Igreja. Com ela, recordamos que vivemos uma só fé e uma só esperança, unidos pelo
mesmo amor. Paradoxalmente, o evangelho escolhido para esta solenidade é Jo
2,13-22, o relato do episódio em que Jesus expulsa os vendedores e cambistas do
templo de Jerusalém. Na ocasião, ele decreta a abolição dos templos de pedra, propondo
à humanidade uma nova maneira de relacionar-se com Deus, cujo modelo é a sua
própria relação com o Pai, marcada pelo amor e a comunhão plena.
Alguns elementos do contexto são essenciais para uma boa
compreensão do texto. De início, recordamos que esse é um dos poucos episódios
da vida de Jesus narrado pelos quatro evangelistas. Não resta dúvidas de que
esse dado atesta a importância do episódio e a alta probabilidade de
corresponder a um fato real da vida de Jesus, o que não o isenta de ser
revestido de elementos simbólicos pelos evangelistas, conforme as necessidades
catequéticas de suas respectivas comunidades. Chama a atenção a localização do episódio
no Quarto Evangelho: logo no começo do livro e, por conseguinte, no início do
ministério de Jesus, enquanto nos sinóticos aparece já na parte final, na
chamada “última semana”, vivida em Jerusalém (Mt 21,12-16; Mc 11,15-19; Lc
19,45-46). Ora, João apresenta Jesus participando de três festas de Páscoa, em
Jerusalém, enquanto nos sinóticos registra-se apenas uma participação, na qual
ele fora condenado e morto. O motivo da antecipação em João se deve ao caráter
programático da cena: se trata do episódio que melhor descreve a proposta de
ruptura de Jesus com as instituições de Israel. Essa ruptura é essencial para a
inauguração de um novo tempo, com um jeito novo de relacionar-se com Deus. E o
inteiro ministério de Jesus será uma demonstração desse novo relacionamento.
A nível de contexto, o mais importante, porém, é associar
este episódio ao relato que lhe precede no Evangelho: as bodas de Caná (Jo
2,1-12). A transformação da água em vinho, ali, representou a passagem da Lei
para o amor, da letra para o Espírito, antecipando a substituição da antiga
pela nova aliança. E assim como não combina «vinho novo em odres
velhos» (Mt 9,14-17; Mc 2,18-22; Lc 5,33-39), também não combina
aliança nova e culto antigo. Por isso, após inaugurar a nova aliança, Jesus
parte para instaurar um novo culto, e isso exigia a supressão do antigo em sua
máxima expressão visível: o magnífico templo de Jerusalém. Foi por causa dessa
relação que João transferiu esse episódio para o início do ministério de Jesus,
adequando as tradições recebidas às suas intenções teológicas e catequéticas,
as quais refletem a necessidade da sua comunidade. Portanto, conforme a
dinâmica narrativa e teológica do Evangelho de João, o texto de hoje é o
complemento das bodas de Caná. Aquele culto mercantilizado e separado da vida
não permitia que se sentisse o sabor do novo vinho: o amor do Pai manifestado
no Filho. Logo, as bodas de Caná e o episódio lido hoje constituem a introdução
e síntese de todo o programa de Jesus, que visa estabelecer uma nova maneira de
relacionamento entre Deus e a humanidade.
Olhemos, então para o texto, começando do primeiro
versículo: «Estava próxima a Páscoa dos judeus e Jesus subiu a
Jerusalém» (v. 13). Com a expressão “páscoa dos judeus” o
evangelista já faz uma importante advertência: aquela Páscoa já não pertencia
mais a Deus, tinha perdido a sua sacralidade; era uma Páscoa dos homens, era
apenas uma festa religiosa, na qual Deus já não era mais o centro. É importante
recordar que, ao longo do seu Evangelho, João usa o termo “judeus” para
designar a hierarquia religiosa, e não o povo judeu em si, ao qual pertencia
Jesus e as primeiras gerações de seus seguidores e seguidoras. Com isso ele diz
que a classe dirigente da religião sediada no templo tinha se apoderado do que
é de Deus e, portanto, a comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus
deveria distanciar-se daquela instituição. A Páscoa do Senhor tinha sido
desvirtuada, transformada em Páscoa dos sacerdotes, dos comerciantes e
cambistas. Logo, não era mais de Deus, e o evangelista adverte a sua comunidade
e os leitores de todos os tempos. Subir a Jerusalém significa o deslocamento
feito pelas pessoas até lá, sobretudo para quem ia da Galileia, como Jesus. É
também uma referência à localização da cidade na região montanhosa da Judeia.
Ao chegar em Jerusalém, Jesus se enfurece porque no
espaço considerado mais sagrado de Israel – o templo –, ele não encontrou o que
deveria encontrar: «No Templo, encontrou os vendedores de bois, ovelhas
e pombas e os cambistas que estavam aí sentados» (v. 14). Ora,
o que deveria ser encontrado no templo era pessoas de coração sincero,
adoradores e adoradoras de Deus. Nesse versículo está o retrato de uma religião
degenerada, transformada em mercado. Os animais mencionados, bois, ovelhas e
pombas, eram comercializados no recinto sagrado para serem oferecidos em
sacrifícios pelos pecados do povo, que a própria religião determinava. A
variedade de animais, de bois a pombas, quer dizer que nenhuma classe social
escapava, ou seja, ricos e pobres, aproximando-se do templo, eram praticamente
obrigados a compactuar com o sistema, comprando animais para oferecer em
sacrifício. Geralmente, esses animais pertenciam às famílias dos próprios
sacerdotes que constituíam a aristocracia da época. A presença dos cambistas
evidencia, ainda mais, o completo desvirtuamento do templo: o sistema econômico
funcionava sob as bênçãos da religião; banco e altar conviviam em harmonia no
mesmo lugar. O templo possuía um verdadeiro sistema econômico, com moeda
própria e as ofertas em dinheiro só eram aceitas nessa moeda. Por isso, quem
levava a moeda do império romano ou moedas estrangeiras deveria fazer o câmbio
na entrada, certamente pagando altas taxas. Por isso havia cambistas lá.
A situação encontrada por Jesus no templo era
inaceitável. Por isso, sua atitude foi bastante dura: «Fez então um
chicote de cordas e expulsou todos do Templo, junto com as ovelhas e os bois;
espalhou as moedas e derrubou as mesas dos cambistas» (v. 15). João é
o evangelista que mais enfatiza a postura furiosa de Jesus; somente ele faz
referência ao chicote de cordas, um dos elementos mais significativos da cena.
Mais do que a descrição de um gesto, o evangelista quer evidenciar a postura e
o sentimento de Jesus diante de uma religião exploradora. A comercialização do
sagrado, independentemente da época e do lugar, deixa Jesus enfurecido,
inconformado. Com esse gesto ele propõe que toda estrutura de exploração deve
ser desestabilizada, destruída, ainda mais quando essa se apoia no nome de
Deus. Esse gesto se configura também como uma ação simbólica típica dos
profetas do Antigo Testamento. Quando as palavras não eram suficientes, eles
cumpriam gestos e ações, tanto para anunciar quanto para denunciar. Porém, em
relação ao culto, os profetas ousaram denunciar com palavras (Is 1,10-20; Am
5,21-23), enquanto Jesus foi muito além, passando das palavras à ação. A
crítica ao culto mercantilizado sempre foi uma das principais causas dos
profetas. E Jesus assume essa linha, ao cumprir esse gesto.
Das categorias de vendedores, o evangelista faz questão
de destacar uma delas: «E disse aos que vendiam pombas: “Tirai isso
daqui! Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!”» (v.
16). O evangelista não mostra Jesus dirigindo a palavra aos outros vendedores,
mas apenas cumprindo o gesto. Aos vendedores de pombas ele repreende também
verbalmente, dando-lhes uma ordem. Ora, as pombas eram a matéria do sacrifício
que os pobres ofereciam; por isso, a ordem é severa “tirai isso daqui!”.
Como em qualquer sistema injusto, eram os pobres os mais afetados
pela exploração. Quem comprava as ovelhas e bois eram os peregrinos mais
abastados; também eles eram explorados, mas Jesus tem mais urgência em combater
a exploração dos pobres. Por isso, os primeiros comerciantes denunciados
diretamente foram aqueles que vendiam para os pobres. Custava para Jesus ver a
casa do Pai transformada em comércio e, consequentemente, Deus transformado em
mercadoria. Diante disso, os pobres terminavam sendo as verdadeiras vítimas sacrificadas,
pois eram eles os mais explorados. Por isso, a solução ali não seria purificar
o templo, mas suprimi-lo, acabar completamente com aquele sistema injusto e
explorador.
A motivação para Jesus agir dessa forma é muito clara: o
zelo pela casa do Pai: «Seus discípulos lembraram-se, mais tarde, que a
Escritura diz: “O zelo por tua casa me consumirá”» (v. 17). O que é
recordado pelos discípulos, segundo o evangelista, é uma citação do Salmo
69,10. De fato, toda a ação de Jesus em seu ministério, e mais ainda na
perspectiva de João, será motivada pelo incansável zelo pelas coisas do Pai,
sobretudo pelo ser humano que tinha sua dignidade roubada por um sistema tão
injusto e explorador como tinha se tornado o templo de Jerusalém. O “zelo pela
casa” significa muito mais do que uma preocupação cultual ou apego a uma
construção. É zelo pela habitação de Deus, que os judeus queriam delimitar à
estrutura do templo, mas Jesus sabia muito bem onde Deus realmente estava. Esse
zelo que o consume expressa, acima de tudo, o seu amor pelo ser humano, morada
privilegiada de Deus. Ele foi tão “consumido” por esse zelo, a ponto de ter
sido condenado por isso. De fato, o processo que será movido contra ele pelas
autoridades políticas e religiosas da época, será consequência de suas opções
radicais em favor daquilo que o Pai deseja: amor, justiça, fraternidade,
dignidade, misericórdia e paz para todo o gênero humano. Para Jesus, a
verdadeira casa de Deus é a pessoa humana. E toda vez que uma pessoa é
injustiçada e explorada a casa de Deus está sendo profanada.
Diante do que estavam vendo, e inconformados com
aquilo, «os judeus perguntaram a Jesus: “Que sinal nos mostras para
agir assim?”» (v.18). Aqui novamente a expressão “os judeus”
significa os dirigentes, os quais não aceitavam ser questionados, pois isso
implicava em perda de credibilidade e de privilégios. Ainda quando o
questionador era um simples galileu, como Jesus, sem nenhum sinal distintivo de
messianidade. Os judeus pediam sinais, ou seja, credenciais que autorizassem
Jesus a agir daquela maneira. Jesus poderia reivindicar a seu favor o
pensamento de tantos profetas que ao longo da história já tinham identificado
aquele culto como obstáculo para o encontro com o Pai (Is 1,10-20). Mas
preferiu falar do futuro, das realidades novas que estavam para ser
inauguradas: a supressão definitiva daquele falso culto, o qual estava com os
dias contados, e sua ressurreição como instauração definitiva do novo culto,
verdadeiro e sincero: «Destruí este Templo, e em três dias eu o
levantarei» (v. 19). Obviamente, as pessoas que ouviram essa
declaração se admiraram, sem compreender. Até mesmo os discípulos só
compreenderam após a ressurreição (v. 22). Os judeus, inconformados com tudo o
que estavam vendo, ainda questionaram o sentido da declaração de Jesus: «Os
judeus disseram: “Quarenta e seis anos foram precisos para a construção deste
santuário e tu o levantarás em três dias?”» (v. 20). Como se percebe,
o pensamento deles é todo voltado para o que é material, por isso não
compreendiam o gesto nem as palavras de Jesus, como, aliás, faziam questão de
demonstrar a incompreensão e oposição aos gestos e palavras de Jesus ao longo
de todo o seu ministério.
Além da mentalidade fechada, a incompreensão das
autoridades dos judeus em relação à desproporcionalidade entre os mais de quarenta
anos de construção do templo e a proposta de Jesus de levantá-lo em três dias expressa
um dos recursos literários mais caros ao evangelista João: o mal-entendido. Contudo,
todos os recursos retórico-literários empregados nos evangelhos estão a serviço
da mensagem teológica e espiritual dos respectivos textos. O mal-entendido
mostra que os interlocutores de Jesus compreendem suas palavras ao pé da letra,
por isso ficaram perplexos, enquanto ele quis revelar uma realidade espiritual mais
profunda, como explica o evangelista, na sequência: «Mas Jesus estava falando
do Templo do seu corpo» (v. 21). O questionamento foi feito pelos judeus, mas
a incompreensão naquele momento estava também nos discípulos, embora esses não
tivessem coragem de questioná-lo. Eles só compreenderam as palavras de Jesus após
a ressurreição: «Quando Jesus ressuscitou, os
discípulos lembraram-se do que ele tinha dito e acreditaram na Escritura e na
palavra dele» (v. 22). O mistério pascal ilumina os acontecimentos, dando vida
nova. A Páscoa de Jesus faz o que era velho tornar-se novo, inclusive suas
palavras. É, portanto, à luz do mistério pascal que devem ser lidos todos os escritos
do Novo Testamento.
O culto autêntico, compatível com a nova aliança
celebrada no amor, já não necessita de templos de pedras, mas apenas de
corações sinceros que busquem e adorem a Deus em espírito e em verdade, como
Jesus dirá posteriormente, no encontro com a mulher samaritana (Jo 4,23).
Aquele templo de pedras, imponente e faraônico, ao invés de aproximar,
distanciava as pessoas de Deus; por isso, deveria ser destruído. Enquanto isso,
um templo novo e definitivo estava para ser inaugurado, graças à ressurreição
de Jesus (vv. 21-22), como vitória definitiva da vida sobre a morte. Com isso,
a vida em plenitude, o culto por excelência agradável a Deus, se torna
acessível a toda a humanidade, sem mais a necessidade de sangue de animais e
ofertas, mas a partir do coração de cada um. Os sinais e gestos proféticos de
Jesus chamavam a atenção, obviamente, afinal muitos em Israel esperavam por um
Messias corajoso para reformar a religião e a vida social do país.
O evangelho de hoje, portanto, nos convida a uma profunda revisão
de nossas práticas religiosas. Ele denuncia toda forma de instrumentalização do
sagrado e nos chama a construir uma Igreja que seja verdadeiramente casa
do Pai, onde todos se sintam acolhidos e respeitados. Jesus não veio apenas
para corrigir abusos, mas para inaugurar uma nova forma de se relacionar
com Deus, baseada no amor, na liberdade e na verdade. É preciso conciliar a
recordação de uma igreja templo tão importante para o mundo cristão com a
reflexão sobre o fazer-se templo do Senhor.
Pe.
Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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