sábado, setembro 01, 2012

Minha veneração pelo Cardeal Martini


Conheci um pouco do pensamento do Cardeal Carlo Maria Martini estudando filosofia, especificamente pagando a cadeira ‘Filosofia da Religião’, ministrado pelo amigo e bom professor Dr. Anderson Alencar Menezes. Na oportunidade, o professor indicou na bibliografia do curso, o livro ‘Em que crêem os que não creem?’ do Cardeal Martini com Umberto Eco. Trata-se de um diálogo entre os dois, publicados pela revista italiana ‘Liberal’. A cada edição um deles perguntava e respondia à provocação do outro. Quem abriu o diálogo foi Umberto Eco, e aqui transcrevo o início do debate. Me chamou muito a atenção já as primeiras considerações de Eco, sobretudo seu grande respeito por Martini. 

Gostei muito do livro, mas só voltei a ter contato com o pensamento de Martini depois que vim para a Itália, e o acesso à sua obra tem sido ao longo de 4 anos, uma das coisas mais proveitosas da minha estadia em Roma. Poderia considerar coisas maiores de sua vida, como o fato de ser o maior exegeta católico dos últimos tempos, um grande mestre da vida espiritual... mas a minha paixão por ele é sobretudo pela sua coragem ao se expressar, sem medo de tocar em temas polêmicos, sempre em defesa do diálogo, da justiça e da paz. Uma grande voz da Igreja que falava sempre com linguagem viva e atual, mantendo sempre o respeito e a obediência à tradição da qual era guardião.

Um homem de fé, um mestre, um profeta... aqui transcrevo as páginas 11 e 12 do livro “Em que crêem os que não creem?”, recordando mais uma vez que foram tais páginas que acenderam em mim uma paixão forte pelo seu pensamento, a ponto de se tornar veneração. 

Eis então, as palavras de Umberto Eco:

Caro Carlo Maria Martini,

Não me considere desrespeitoso se me dirijo ao senhor chamando-o por seu próprio nome, sem referir-me às vestes que enverga. Entenda-o como um ato de homenagem e de prudência. De homenagem, pois sempre me impressionou o modo como os franceses, quando entrevistam um escritor, um artista, uma personalidade política, evitam usar apelativos redutivos, como professor, eminência, ou ministro. Há pessoas cujo capital intelectual é dado pelo nome com que assinam as próprias ideias. Assim, os franceses se dirigem a qualquer pessoa cujo maior título é o próprio nome, com “diga-me, Jacques Maritain”, “diga-me” Claude Lévi-Strauss”. É o reconhecimento de uma autoridade que o sujeito manteria mesmo se não tivesse se tornado embaixador ou acadêmico da França. (...).

Ato de prudência, eu disse também. De fato, poderia parecer embaraçoso o que esta revista solicitou-nos, a ambos, isto é, uma troca de opiniões entre um leigo e um cardeal. Poderia dar a impressão de que o leigo induzia o cardeal a exprimir pareceres como Príncipe da Igreja e pastor de almas, o que seria uma violência contra quem é chamado a responder e contra quem ouve a resposta. Melhor que o diálogo se apresente como aquilo que, nas intenções da revista que nos convocou, pretende ser: uma troca de reflexões entre homens livres. Por outro lado, dirigindo-me ao senhor desta maneira, pretendo sublinhar o fato de ser o senhor considerado um mestre de vida intelectual e moral mesmo por aqueles leitores que não se sentem vinculados a nenhum magistério que não o da justa razão.

Superados os problemas de etiqueta, permanecem os da ética, pois é principalmente deles que deveríamos tratar no curso de um diálogo que pretende encontrar alguns pontos comuns entre o mundo católico e o mundo laico.

O trecho transcrito corresponde às páginas 11 e 12 do livro Em que crêem os que não crêem? de Umberto Eco e Carlo Maria Martini, ed. Record, Rio de Janeiro, 2006.

Francisco Cornelio Freire Rodrigues

quarta-feira, julho 25, 2012

As Bem-Aventuranças do Educador

                                                                               
A. Felizes os Educadores
   que tomam consciência do conflito social em que estão metidos
   e nele tomam partido pelo projeto social dos empobrecidos
   porque assim contribuirão para a transformação da sociedade.

B. Infelizes os Educadores
   que imaginam que a ação educativa é politicamente neutra
   porque acabam transformando a educação num instrumento de ocultação
   das contradições da realidade social
   e de reprodução da ideologia e das relações sociais vigentes.

A. Felizes os Educadores
   que sabem articular o saber chamado científico com o saber popular
   porque ajudarão as classes populares a afirmar sua identidade cultural.

B. Infelizes os Educadores
   que transmitem mecanicamente um saber elitista
   porque contribuem para reforçar a marginalização
   e a dominação cultural do povo.

A. Felizes os Educadores
   que aprendem a dialogar com os educandos
   porque resgatam a comunicação pedagógica criadora no processo educativo.

B. Infelizes os Educadores
   que impedem os educandos de dizerem sua palavra,
   porque estão reproduzindo a educação do colonizador.

A. Felizes os Educadores
   que se tornam competentes em suas "disciplinas"
   ensinando a "desopacizar" ideologicamente seus conteúdos
   porque ajudarão os educandos a se apropriarem do saber
   como ferramenta de luta na defesa e afirmação de sua dignidade.

B. Infelizes os Educadores
   que não se esforçam para ser criticamente competentes
   porque enfraquecerão mais ainda o poder cultural das classes oprimidas
   reforçando o autoritarismo cultural das classes dominantes.

A. Felizes os Educadores
   que procuram se organizar para conquistar
   melhores salários e melhores condições de ensino
   porque estão ajudando a conquistar a educação a que o povo tem direito.

B. Infelizes os Educadores
   que atuam isoladamente, buscando apenas seus próprios interesses
   porque deixarão de contribuir para a conquista de uma escola digna.

A. Felizes os Educadores
   que iluminam sua prática com o sonho de um futuro novo
   em que as pessoas aprendam, através de novas relações sociais,
   as lições da justiça e da solidariedade.

B. Infelizes os Educadores
   que não sonham
   porque não terão a coragem de se comprometer na luta criadora
   de uma nova sociedade a partir de sua prática educativa.

 A. Felizes os Educadores
   que aprendem a fazer da ação de cada dia
   a semente da nova sociedade.

  B. Infelizes os Educadores
   que pensam que as coisas novas só aparecerão no futuro
   porque não perceberão, nem farão perceber
   que o "novo" já está no meio de nós,
   brotando de nossas práticas transformadoras,
   solidárias com as lutas dos espoliados da terra.

 José Ivan Pimenta Teófilo, padre e educador Salesiano, grande promotor do Reino por meio do Evangelho e de da educação, deixou essa vida em 1990.


sexta-feira, maio 25, 2012

ONDE SOPRA O ESPÍRITO?

A festa de Pentecostes, celebrada neste domingo, lembra a vinda do Espírito Santo sobre os primeiros cristãos, reunidos no cenáculo em Jerusalém. Com a força do Espírito, sentiram-se animados a partir em missão.
Daí para a frente, o Espírito Santo iria conduzir a Igreja. Ele se encarregaria de indicar os rumos, e até de antecipar os passos que os cristãos deveriam dar.
Foi o que aconteceu, por exemplo, quando Pedro foi procurado por Cornélio, um pagão, que o convidava a visitar sua casa. Ao entrar, Pedro se surpreendeu, vendo que o Espírito Santo descia sobre os pagãos, da mesma maneira como tinha descido sobre eles em Pentecostes.
Pedro então compreendeu que os pagãos eram destinatários do Evangelho, tal como o povo de Israel. A Igreja aprendeu a estar atenta aos sinais do Espírito, para tomar suas decisões com segurança.
Foi o que aconteceu em nossa época, com o anúncio do Concílio Vaticano Segundo, em janeiro de 1959. O Papa João 23 não se cansava de testemunhar que a idéia de um concílio tinha surpreendido a ele mesmo. A certeza da inspiração divina lhe vinha da pronta adesão do povo, que de imediato se identificou com a proposta do papa. Com esta certeza, a Igreja pôde levar em frente a realização do Concílio.
Algumas manifestações do Espírito são fáceis de identificar. Sobretudo quando contam com o aval do povo. A própria teologia reconhece que o "sensus fidelium”, a "intuição dos fiéis” é sinal seguro de procedimento eclesial.
Mas existem situações mais complicadas. Nem sempre o clamor do povo é porta-voz do Espírito Santo. Há certas manifestações, também políticas e sociais, cuja ênfase, em vez de manifestar caminhos seguros de procedimentos corretos, esconde interesses não confessados, e tenta forçar rumos que não levam ao bem comum.
Por isto, não dá para colocar na conta do Espírito Santo todas as manifestações populares. A confiança no Espírito de Deus não dispensa o esforço de discernimento, para perceber os valores que estão em jogo.
O próprio Evangelho nos dá uma pista, quando Jesus explica como seria o procedimento do Espírito. Disse Ele que o Espírito "não falará de si mesmo...; mas, receberá do que é meu e vo-lo anunciará” (Jo 16, 13).
Com esta afirmação, Jesus sinaliza a necessidade de constatar a coerência entre o que ele fez e ensinou, com as manifestações que possam ocorrer. Para serem do Espírito, precisam estar em sintonia com as verdades objetivas proclamadas por Cristo.
A Bíblia conta uma bonita história, para advertir da necessidade de discernir a presença de Deus. Elias estava refugiado na caverna, nas proximidades do monte Horeb. Foi avisado que Deus passaria naquela noite. Ele se colocou então na entrada da caverna. Veio um forte furacão que fazia as rochas se contorcerem. Mas Deus não estava no furacão. Depois aconteceu um violento terremoto, que sacudiu a terra. Mas Deus não estava no terremoto. Depois desceu um fogo devorador. Mas Deus não estava no fogo. Por fim, veio uma brisa suave, que amenizou todo o ambiente. Era Deus que estava chegando.
Precedendo a este episódio, o mesmo livro narra a cena do confronto de Elias com os 400 sacerdotes do deus Baal. Desafiados por Elias a invocarem o seu deus para que fizesse descer fogo sobre a lenha da oferenda, os sacerdotes gritaram o dia inteiro, mas não foram capazes de se fazerem ouvir por seu falso deus. Ao passo que Elias, com poucas palavras, foi prontamente atendido por Javé.
Há certas manifestações que se assemelham à gritaria dos sacerdotes de Baal. Em nada contribuem para o discernimento objetivo dos problemas a resolver.
A análise objetiva da realidade é garantia mais segura do acerto das decisões a serem tomadas.

Por: Dom Demétrio Valentini, Bispo de Jales-SP

segunda-feira, março 26, 2012

CLARA DE ASSIS: a coragem de um mulher apaixonada

*Leonardo Boff

Há 800 anos, na noite de 19 de março de 1212, dia seguinte à festa de Domingos de Ramos, Clara de Assis, toda adornada, fugiu de casa para unir-se ao grupo de Francisco de Assis na capelinha da Porciúncula que ainda hoje existe. As clarissas do mundo inteiro e toda a família franciscana celebram esta data que significa a fundação da Ordem de Santa Clara, espalhada pelo mundo inteiro.

Clara junto com Francisco – nunca devemos separá-los, pois se haviam prometido, em seu puro amor, que “nunca mais se separariam” segundo a bela legenda da época – representa uma das figuras mais luminosas da Cristandade. É bom lembrá-la neste mês de março, dedicado às mulheres. Por causa dela, há milhões de Claras e Maria Claras no mundo inteiro. Ela, de família nobre de Assis, dos Favarone, e ele, filho de um rico e afluente mercador de tecidos, dos Bernardone.

Com 16 anos de idade quis conhecer o então já famoso Francisco com cerca de 30 anos. Bona, sua amiga íntima, conta, sob juramento nas atas de canonização, que entre 1210 e 1212 Clara “foi muitas vezes conversar com Francisco, secretamente, para não ser vista pelos parentes e para evitar maledicências”. Destes dois anos de encontro nasceu grande fascínio um pelo outro. Como comenta um de seus melhores pesquisadores, o suíço Anton Rotzetter em seu livro “Clara de Assis: a primeira mulher franciscana” (Vozes 1994): “neles irrompeu o Eros no seu sentido mais próprio e profundo pois sem o Eros nada existe que tenha valor, nem ciência, nem arte, nem religião, Eros que é a fascinação que impele o ser humano para o outro e que o liberta da prisão de si mesmo”(p. 63). Esse Eros fez com que ambos se amassem e se cuidassem mutuamente mas numa transfiguração espiritual que impediu que se fechassem sobre si mesmos. Francisco afetuosamente a chamava de a“minha Plantinha”. Três paixões cultivaram juntos ao longo de toda vida: a paixão pelo Jesus pobre, a paixão pelos pobres e a paixão um pelo outro. Mas nesta ordem. Combinaram então a fuga de Clara para unir-se ao seu grupo que queria viver o evangelho puro e simples sem glossas e interpretações que lhe tirariam o vigor.

A cena não tem nada a perder em criatividade, ousadia e beleza, das melhores cenas de amor dos grandes romances ou filmes. Como poderia uma jovem rica e bela fugir de casa para se unir a um grupo parecido com aos “hippies” de hoje? Pois assim devemos representar o movimento inicial de Francisco. Era um grupo de jovens ricos, vivendo em festas e serenatas que resolveram fazer uma opção de total despojamento e rigorosa pobreza nos passos de Jesus pobre. Não queriam fazer caridade para pobres, mas viver com eles e como eles. E o fizeram num espírito de grande jovialidade, sem sequer criticar a opulenta Igreja dos Papas.
Na noite do dia de 19 de março de 1212, Clara, escondida, fugiu de casa e chegou à Porciúncula. Entre luzes bruxoleantes, Francisco e os companheiros a receberam festivamente. E em sinal de sua incorporação ao grupo, Francisco lhe cortou os belos cabelos louros. Em seguida, Clara foi vestida com as roupas dos pobres, não tingidas, mais um saco que um vestido. 

Depois da alegria, das canções dos trovadores franceses que Francisco tanto gostava e das muitas orações, foi levada para dormir no convento das beneditinas a 4 km de Assis. 16 dias após, sua irmã mais nova, Ines, também fugiu e se uniu à irmã. A família Favarone tentou, até com violência, retirar as filhas. Mas Clara se agarrou às toalhas do altar, mostrou a cabeça raspada e impediu que a levassem. O mesmo destemor mostrou quando o Papa Inocêncio III não quis aprovar o voto de pobreza absoluta. Lutou tanto até que o Papa enfim consentisse. Assim nasceu a Ordem das Clarissas.

Seu corpo intacto depois de 800 anos comprova, uma vez mais, que o amor é mais forte que a morte.

*Teólogo, filósofo, professor e escritor; autor de Francisco de Assis: ternura e vigor, Vozes 2003.

Fonte:  http://leonardoboff.wordpress.com/2012/03/25/clara-de-assis-a-coragem-de-uma-mulher-apaixonada/

sexta-feira, março 23, 2012

SÃO ROMERO DE AMÉRICA PASTOR E MÁRTIR


O anjo do Senhor anunciou na véspera...
O coração de El Salvador marcava
24 de março e de agonia

Tu ofertavas o Pão, o Corpo Vivo
o triturado Corpo de teu Povo:
Seu derramado Sangue vitorioso
O sangue "campesino" de teu Povo em massacre
que há de tingir em vinhos e alegria a Aurora conjurada!

E soubeste beber o duplo cálice
do Altar e do Povo,
com uma só mão consagrada ao Serviço.

O anjo do Senhor anunciou na véspera
e o verbo se fez morte, outra vez, em tua morte.
Como se faz morte, cada dia, na carne desnuda de teu Povo.

E se fez vida Nova
Em nossa velha Igreja!
Estamos outra vez em pé de Testemunho,
São Romero de América, pastor e mártir nosso!
Romero de uma Paz quase impossível, nesta Terra em guerra.
Romero em roxa flor morada da Esperança incólume de todo Continente
Romero desta Páscoa latino-americana.

Pobre pastor glorioso,
assassinado a soldo, a dólar, a divisa.
Como Jesus, por ordem de Império.
Pobre pastor glorioso, abandonado
por teus próprios irmãos de Báculo e de Mesa.
(As Cúrias não podiam entender-te:
Nenhuma Sinagoga bem montada pode entender a Cristo)


(Poema “São Romero de América” de Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia).

VEM, ME FALA DE VOCÊ!

Vem, me fala tu de liberdade
Dessa igualdade que todos queremos
Desta vida nova que todos buscamos
Desta paz que um dia encontraremos.

Vem me fala tu de tua vida

Dessa amizade mais querida
Dessa ansiedade de amar de novo
Desta tua vida doada ao povo!


Vem me fala tu de esperança
Desse novo ser criança
Dessa paz sem ser bonança
Dessa luta pra vencer
Vem me fala de você!


Zé Vicente, cantor e compositor.

quarta-feira, março 07, 2012

50 ANOS DO CONCÍLIO VATICANO II

As datas aniversárias acordam-nos a memória para fatos passados, cujo significado merece ser conservado e transmitido. Assim estamos a meio século do início do Concílio Vaticano II. No idos de 60, ele explodiu em novidades dentro da Igreja católica, que se cristalizara para defender-se contra a modernidade avassaladora. Os gritos de liberdade ameaçavam-lhe a ordem e disciplina interna. Os desejos de igualdade questionavam-lhe a hierarquia, entendida como graus e desigualdade. A fraternidade soava próxima das pretensões socialistas. Então, que fazer? Ela se protege, cerceando o livre pensar, submetendo-o a instâncias disciplinares de censura e punições. Fortalece ainda mais a força da autoridade para impedir surtos democráticos no seu interior. E elabora doutrina social bem disciplinada para diminuir os ímpetos revolucionários.
Além da trilogia da Revolução Francesa, a modernidade trouxe o impacto das descobertas científicas que ameaçavam as verdades da Escritura e do dogma. Como entender a criação, o pecado original e muitos outros ensinamentos doutrinais no horizonte do evolucionismo? A hermenêutica, com a valorização da subjetividade, quebrava a rigidez do ortodoxismo, fundamentalismo ou doutrinalismo, introduzindo o elemento da relativização das afirmações por força da pré-compreensão do sujeito. A história vasculhava o passado e mostrava mudanças tão importantes no correr do tempo que se duvidava da constância nos ensinamentos. A práxis irrompeu no campo social como exigência do ser humano livre e consciente em face dos jogos ideológicos das classes dominantes.
Nesse contexto tenso e plural, a ousadia de João XXIII lançou a Igreja mum diálogo aberto com a modernidade. Sentiu-se, como confidenciou a seu secretário particular, incapaz de, sozinho, fazê-lo, mesmo confiando na assistência do Espírito Santo. Pensou e efetivou o desejo de pôr a Igreja a discutir essa problemática em tribuna livre. Convocou o Concílio. Este nasceu, portanto, para dialogar com os desafios da modernidade, principalmente centro-europeia e não para condenar adversários e heresias.
Parto longo e doloroso.  Viveram-se mais de três anos de estudos, debates, textos, emendas, votações em busca da redação final dos documentos. Houve momentos de extrema tensão. Os documentos preparatórios, redigidos ainda na mentalidade antiga e tradicional, receberam rotunda rejeição até mesmo para ser discutidos. Com o correr do tempo, a presença significativa e ativa de teólogos avançados, imbuídos da Nouvelle Théologie, iniciada na década de 40 na França, e ainda no ostracismo, juntamente com teólogos do mundo saxônico em plena ebulição, marcava o ritmo do Concílio. Bispos e bispos assimilavam-na e ousavam reformular doutrinas e pedir textos novos, diferentes.
Sem dúvida, o discurso inaugural de João XXIII permitiu tal revolução teológica. Pedia três coisas do Concílio: que fosse pastoral, ecumênico e não de condenações, evitando repetir verdades já declaradas em outros momentos. Logo, a sua teologia deveria orientar-se para o aggiornamento da Igreja. Palavra mágica que se repetiu às pampas para incentivar a coragem dos padres conciliares.
O pós-Concílio irrompeu tumultuoso para dentro dos variados setores da vida da Igreja. Para os fieis, a liturgia serviu de vitrine das novidades. O clero diocesano e religioso assumiu com denodo as transformações que iam desde as celebrações até o modo de vestir. A Igreja apresentava outra face. João XXIII quis que fosse rosto alegre e atrativo.
As transformações se fizeram rápidas, em todos os âmbitos. Para os tradicionais, exagerou-se e em nome do Vaticano II se introduziram reformas e mudanças que quebravam sagradas tradições. Entre euforia e medo, entusiasmo e reserva, caminhou-se nas primeiras décadas. Ainda no pontificado de Paulo VI, armaram-se as primeiras fortes reações contra o Concílio. Há frases pesadas do próprio Papa.  Pouco a pouco, com o correr dos anos, a força criativa cedia espaço aos temores e estes aos freios e às tentativas de retrocesso até agora em movimento.
Na América Latina, a recepção do Concílio se deu, sob um dos aspectos, na Conferência de Medellín. Lá  se optou pelos pobres, pelas comunidades eclesiais de base, pela vida consagrada inserida, por um exterior simples e pobre da Igreja, pela educação libertadora, pelo laicato engajado na vida eclesial interna e sociopolítica. Enfim, avançara-se ainda mais para dentro da modernidade, já não a centro-europeia, mas a da periferia, dilacerada pela tensão entre crescente dominação e movimentos de libertação em diástoles.
Não demorou muito também que na América Latina as reações se fizessem soar contra essa recepção libertadora. Já mesmo em Puebla, que se considerou uma continuidade de Medellín, ouviram-se vozes poderosas na linha de deter a caminhada renovadora do Concílio e sobretudo a da Igreja da libertação. E tal movimento conservador com toques reacionários vem crescendo sob várias formas, desde um espiritualismo carismático sem compromisso social até a uma volta a formas arcaicas do tradicionalismo e de juridicismo exterior  com discursos admoestadores. Então brota a pergunta: que sobrou das novidades do Concílio Vaticano II, como incrementá-las na atual conjuntura?
Brilhou no Concílio o primado da Palavra de Deus, desde a simbólica entrada da Bíblia  nas sessões conciliares, ocupando lugar visível de destaque, a presidir as discussões, até a presença abundante nos textos. Excele como um dos documentos mais belos do Concílio aquele dedicado à Revelação com o título não menos significativo: Dei Verbum. Cabe-nos caminhar nessa estrada. Hoje duas formas merecem destaque: os círculos bíblicos presentes nas CEBs e a leitura orante da Escritura a alimentar a espiritualidade bíblica. Assumindo a tradição cristológica da teologia latinoamericana, está diante de nós o desafio de mergulhar por essa dupla via no Jesus histórico. O Cristo da fé não é outro que o Jesus, filho de Maria, andarilho pobre da Palestina a viver entre os pobres. A sua pessoa, mensagem e práxis colada à terra traduzem para nós a revelação de Deus, como Pai e puro amor.
O Concílio Vaticano II afirmou corajosamente a base laical da Igreja. Momento alto do Concílio se deu quando os padres realizaram a virada copernicana de uma Igreja prioritariamente clerical e hierárquica para a da igualdade radical de todos pelo batismo na condição de Povo de Deus. E a viram também na perspectiva colegial, em vez do poder solitário monárquico, pontifício ou episcopal.
Perseguindo a intuição inicial de João XXII, os padres conciliares propugnaram nova relação da Igreja com o mundo na magistral Constituição Pastoral Gaudium et spes. Completando esse quadro de abertura,  a temática do ecumenismo, do diálogo com os judeus, com as outras religiões não cristãs e com os não crentes abriu a Igreja para horizontes amplíssimos.
Esse projeto permaneceu muito em desejos. Ainda falta bastante, nos dias de hoje, para implantar o Concílio. Não convém pensar em outro no momento de retrocesso, mas antes, pelo menos, firmar as principais conquistas do Vaticano II.
Cabe, porém, ir mais longe, deslocando o surto carismático, que atravessa o atual momento eclesial, do simples nível pessoal de consolo e emoção, para verdadeira “animação carismástica”. Assim esta adquire potencial transformador das instituições, realizando o princípio jesuano de que “o sábado é feito para o homem e não o homem para o sábado” (Mc 2,27). Toca-lhe maravilhosa tarefa de humanizar, de espiritualizar, no sentido pleno do termo, a rigidez de muitas formas institucionais e jurídicas da Igreja. Tal inclui revigorar a dimensão de diaconia, de pobreza, de simplicidade no ser, vestir, viver dos representantes da Instituição eclesiástica.
Do lado de fora da Igreja, surgem os maiores desafios para reafirmar e avançar além do Vaticano II. O tema do próximo sínodo propõe-nos “nova evangelização para a transmissão da fé cristã”. Independentemente de por onde ele caminhe, diante de nós estão a gestar-se a sociedade globalizada do conhecimento, a cultura pós-moderna em tensão com a moderna, uma ciência em simbiose com a tecnologia sem horizonte ético,  novo paradigma cultural ecológico, feminista e étnico, o fantástico fenômeno de efervescência religiosa, a aspiração do diálogo ecumênico, interreligioso e com os não crentes. Que palavra e prática o Cristianismo encontrará para evangelizar essa gigantesca realidade, se não hostil, ao menos bem alheia à tradição cristã, nascida do sangue judaico, do pensamento grego, do espírito jurídico romano com o toque original e decisivo da pessoa de Jesus Cristo?
Em face de tal gigantesca tarefa de futuro aparece claro o equívoco monumental de tendências conservadoras que se voltam saudosistamente para o passado, recuperam ritos e celebrações perdidas na noite do esquecimento cultural, aferram-se a legalismo e dogmatismo caducos em face à agilidade do pensamento moderno, bombardeado pela inundação do saber informatizado e midiaticamente difundido.
A 50 anos do Concílio, habitam-nos dois sonhos maiores. Ver as intuições conciliares animarem a vida da Igreja em vez do ranço do passado e aspirar a que avancemos ainda mais em direção a uma Igreja leve quanto às instituições, profética na palavra e na ação, acolhedora de coração e sobretudo anunciadora da maior novidade de todos os tempos: Deus é amor (1Jo 4,8).
J.B.Libânio, padre jesuíta, professor, escritor e teólogo.

terça-feira, fevereiro 07, 2012

DOM HÉLDER CÂMARA E SUAS MADRUGADAS EM ROMA

Aos 07 de fevereiro de 1909 nascia no Nordeste do Brasil, Hélder Pessoa Câmara. Com muita precisão o amigo Talvacy Chaves lembra hoje em seu blog (cf. http://talvacy.blogspot.com/2012/02/deram-o-nome-de-helder-pessoa-camara.html), por isso não repetirei aquilo que já li no blog supracitado. Quero aproveitar esse espaço agora pra partilhar um pouco a minha experiência de leitor de Dom Hélder.

Entre as dificuldades de adaptar-me à nova língua, o italiano, constavam a preguiça e principalmente a saudade do Brasil e a solidão. Abri meu apetite por leituras em italiano com um livro de 497 páginas, o qual li em uma semana. O título do livro é ROMA, DUE DEL MATTINO (Roma, duas da manhã – madrugada), a autoria      è de HELDER CAMARA (Hélder Câmara). Foi assim que me adaptei à nova realidade, saboreando a leitura das cartas que Dom Hélder escrevia para seus amigos no Brasil, enquanto ele estava em Roma participando do Concílio Ecumênico Vaticano II.

Confesso que quase chorei de emoção quando, em outubro de 2008, vi na livraria aquele livro grosso, recém lançado, com o nome grande na capa “HELDER CAMARA”. Procurei primeiro ler as orelhas do livro; na primeira, uma resumo bigráfico, e na segunda, um pequeno comentário do editor, enaltecendo a figura do célebre bispo e já revelando aspectos importantes de sua personalidade e de seu ritmo de vida. O primeiro aceno é  que Dom Hélder, em Roma, mantém o consolidado costume de acordar à meia-noite para rezar, ler, refletir e escrever, volta a dormir às 3 horas e às 5 acorda definitivamente para dar início à sua jornada. Costumes de um homem místico! Era justamente nas madrugadas que ele escrevia para os amigos as cartas publicadas no livro. Outro dado interessante, ainda na orelha do livro, è que o jornal inglês SUNDAY TIMES, o elegeu como o homem mais influente da América Latina, depois de Fidel Castro, no século XX.

Foi lendo esse livro que despertou ainda mais a minha curiosidade pelo Vaticano II, e hoje, graças a Deus, ao ler qualquer trecho do concílio reconheço onde teve o “dedo” do BISPINHO BRASILEIRO, como era chamado pelos colegas amigos, e pelos não muito amigos era chamado de BISPO VERMELHO. Assim como sinto emoção ao ler, também sinto ao falar da leitura… é uma sensação que só provando mesmo pra saber e sentir o quanto è forte o seu ensinamento, a sua esperança, a sua paz, a sua fé.

O livro é composto de 296 cartas, escritas entre outubro de 1962 e dezembro de 1965. O total de cartas ultrapass em muito a cifra 296; esse número é apenas uma seleção criteriosa do que os editores acharam mais importante. Nelas, ele demonstra sua preocupação com os rumos do concílio, fazendo um intenso trabalho de bastidores, articulando diversas correntes, fazendo amizades e procurando a todo o custo que Concílio possa realmente corresponder às expectativas da Igreja diante do mundo moderno, e aos anseios do Papa que profeticamente o propôs, o PAPA BOM, João XXIII.

Compartilho aqui com os poucos leitores, uma das passagens mais comoventes. O Monsenhor Capovilla, secretário pessoal do Papa João XXIII, que continuou com o mesmo cargo assessorando Paulo VII, era grande amigo pessoal de Dom Hélder, e em 8 de novembro de 1965 recebeu-o em seu próprio apartamento no Vaticano e disse que “nenhum bispo lhe recorda tanto João XXIII como o Arcebispo de Olinda e Recife”; diante de tamanha estima da parte de quem conheceu profundamente João XXIII como Monsenhor Capovilla, Dom Hélder exclama: - Que responsabilidade! Capovilla era responsável também pela guardia dos objetos pessoais do falecido Papa João XXIII, e como a um grande amigo, mostrou tudo a Dom Hélder, deixando este maravilhado com tanta afinidade, afinal, o “Papa Bom” foi o primeiro grande intérprete dos anseios da Igreja em todo o mundo, que clamava por abertura e renovação, e era Dom Hélder um dos maiores representantes de tais anseios. Agradecendo a Capovilla, Dom Hélder exclamava: - Quanto bem eu quero ao Papa Louco, ao Papa Instrumento de Deus, ao Papa Bom!

O que mais deixava Dom Hélder maravilhado da intimidade com Monsenhor Capovilla, é que este foi em toda a vida a pessoa mais ligada ao Papa João XXIII, de quem Dom Hélder era devoto ainda quando o mesmo era vivo.


Deixo o convite para a leitura do livro, em português se chama As noites de um profeta: Dom Hélder Câmara no Vaticano II. Quem ler não se arrependerá. Confesso que comecei a admirá-lo ainda mais e a tê-lo como exemplo em todos os aspectos imagináveis: amor pela Igreja, pelo povo e sobretudo por Deus! Imaginemos um homem, depois de muito trabalho durante o dia, fazer uma vigília diária de meia-noite às 3 da manhã, e acordar novamente ás 5 para dedicar-se às atividades cotidianas? Só pode ser DOM DE DEUS!!

Francisco Cornelio F. Rodrigues, Roma 07 de fevereiro de 2012.

segunda-feira, janeiro 30, 2012

DOM BOSCO JOVEM, ROGAI POR NÓS!


Celebramos no 31 de janeiro a memória de São João Bosco, ou simplesmente Dom Bosco. Na verdade é como DOM BOSCO que esse grande santo é conhecido em todo o mundo, dando nome a escolas, praças, ruas, associações, grupos e até a um time de futebol profissional em Mato Grosso.

O fato de ser reconhecido canonicamente pela Igreja como santo é sinal que foi um homem de virtudes. O que mais é recordado de seu legado é o amor incondicional que ele demonstrou pela juventude e a sua marca de grande educador. Assim, resumimos como palavras-chaves de seu apostolado JUVENTUDE E EDUCAÇÃO. Não podemos esquecer a sua grande herança pra Igreja: a família salesiana, a responsável por tornar sempre atual e visível os seus ideais.

Como ex-aluno de uma instituição salesiana de ensino, falo em Dom Bosco com prazer e emoção. Parabenizo os tantos amigos salesianos que tenho e agradeço a Deus pela oportunidade de ter sido assistido em meu caminho de formação por uma pedagogia tão eficiente. Outra grande alegria que condivido aqui a respeito da minha relação com a família salesiana, é que na semana santa de 2010 tive a oportunidade de visitar  a “Casa Mãe” dos salesianos. Lá pude ver o quarto de Dom Bosco, diversas imagens e objetos pessoais, o altar no qual ele celebrava.



O Papa João Paulo II o batizou como “Pai e Mestre da juventude”. Uma de suas preocupações era formar não apenas intelectuais, mas sobretudo pessoas de bem, assim ele dizia aos seus: “sede bons cristãos e honestos cidadãos”. Quando a pedagogia ainda se usava métodos repreensivos, ele propôs o “Sistema Preventivo”, quase revolucionando a prática pedagógica da época. Lembrando, ele nasceu aos 16 de agosto de 1915 e faleceu aos 31 de janeiro de 1888.

Aqui compartilho alguns belos pensamentos de Dom Bosco, e que os mesmos possam inspirar nossa vida:

“Tudo aquilo que sou é para vós. Não quero outra coisa senão o vosso bem intelectual, moral e físico. Por vós estudo, por vós trabalho, por vós vivo e por vós estou até disposto a dar a vida.”

“Trabalhemos como devêssemos viver para sempre e vivamos como se devêssemos morrer a cada dia.”

“O primeiro gesto de amor deve ser usado para conosco mesmos.”

“Uma hora de paciência vale mais que um dia inteiro de jejum.”

“Amai sempre os vossos deveres se desejais fazê-los bem.”

“A familiaridade gera o afeto, e o afeto produz confiança. Isso é o que abre os corações.”

Dom Bosco, rogai por todos nós, especialmente pelos educadores, pelos jovens e por todos os que te seguem!

Francisco C. F. Rodrigues, Roma, 30 de janeiro de 2012.

domingo, janeiro 29, 2012

POTIBA: dos clássicos, o clássico!


Muitos canais de televisão, jornais e institutos de pesquisas e estatísticas esportivas já fizeram e fazem, de vez em quando, rankings elencando os maiores clássicos de futebol entre clubes do mundo. Destes rankings, um dos mais respeitados é o da CNN, feito em 2009, mesmo sendo alvo de algumas contestações. Entre os dez primeiros clássicos do mundo, segundo a CNN, o único brasileiro que aparece é o tradicional CORINTHIANS X PALMEIRAS, na nona colocação, atrás do famoso BOCA X RIVER da Argentina, o terceiro. O segundo maior é o derby italiano ROMA X LAZIO.

Que beleza, até aqui dois de meus times preferidos estão no topo dos maiores clássicos do mundo: CORINTHIANS e ROMA! Nem preciso olhar a lista do décimo primeiro em diante, pois tenho certeza que o meu outro time não aparecerá, o POTIGUAR DE MOSSORÓ. Como não tenho embasamento pra analisar o futebol à luz das ciências social e econômica, meu único olhar é o da paixão, logo meu ponto de vista será sempre o do torcedor apaixonado, e no meu coração o primeiro dos clássicos é o POTIBA, ou seja, POTIGUAR X BARAÚNAS, o clássico de Mossoró, um dos maiores do interior do Nordeste brasileiro.

Dia de POTIBA é sempre um dia diferente, independente da fase atravessada pelos dois times. Da minha infância elegi assistir um POTIBA como um dos maiores sonhos da minha vida, e o realizei aos quatorze anos, em agosto de 1998, em jogo válido pela primeira fase da série C do campeonato brasileiro. Pra minha alegria, o Potiguar venceu. De lá pra cá já fui a vários, e aos que não fui, encostei meu ouvido no rádio pra acompanhar como se estivesse no estádio.

Certamente a sociedade mossoroense poderia valorizar mais o POTIBA, adotá-lo como patrimônio e contribuir mais com uma melhor qualificação dos dois times. Enquanto isso não ocorre, o futebol segue seu percurso sofrido, às vezes desacreditado, mas sem perder o encanto e o charme de um clássico. Todos têm direito de fazer seus rankings, assim, eu faço o meu: o POTIBA é, dos clássicos, o clássico!!!

Francisco C. F. Rodrigues, Roma, 29 janeiro 2012.

terça-feira, janeiro 03, 2012

2012: ano de resistência e de risiliência

Os cenários da situação da humanidade, especialmente nos países centrais, são perturbadores. As crises escondem grande padecimento humano, especialmente dos mais vulneráveis dos quais quase ninguém fala.
Face a esta situação devemos resistir e viver a resiliência, vale dizer, aquela atitude de enfrentar com destemor os problemas, dar a volta por cima e aprender dos revezes da vida, pessoal e coletiva.Isso se impõe se a crise geral atingir também nosso pais, o que não é impossível. O importante é não se resignar mas manter a vontade de mudar e crescer. Neste contexto, lembrei-me de um mito antigo da área mediterrânea da Europa por mim já referido em outros escritos.
De tempos em tempos, reza o mito, a águia, como a fênix egípcia, se renova totalmente. Ela voa cada vez mais alto até chegar próxima ao sol. Então as penas se incendeiam e ela toda começa a arder. Quando chega a este ponto, se precipita do céu e se lança qual flecha nas águas frias do lago. Através desta experiência de fogo e de água, a velha águia rejuvenesce totalmente. Volta a ter penas novas, garras afiadas, olhos penetrantes e o vigor da juventude. Seguramente este mito subjaz ao salmo 103 onde se diz:”O Senhor faz com que minha juventude se renove como uma águia”.
Fogo e água são opostos. Mas quando unidos, se fazem poderosos símbolos de transformação. Segundo a psicologia do profundo de C. G. Jung, o fogo simboliza o céu, a consciência e as dimensões masculinas no homem e na mulher. A água, ao contrário, a terra, o inconsciente e as dimensões femininas no homem e na mulher. Passar pelo fogo e pela água significa, portanto, integrar em si os opostos e crescer na identidade pessoal. Ninguém ao passar pelo fogo ou pela água permanece intocado. Ou sucumbe ou se transfigura, porque a água lava e o fogo purifica.
A água nos faz pensar também nas grandes enchentes que temos assistido, estarrecidos, em janeiro de 2011 nas cidades serranas do Estado do Rio, especificamente na minha na qual vivo, Petrópolis. Assistimos aqui a um verdadeiro tsunami que carregou tudo que estava pela frente, matando centenas de pessoas e deixando um sem número de desabrigados. São tragédias, evitáveis mas que acontecem e que devemos enfrentá-las com coragem. O fogo nos faz imaginar as fornalhas que queimam e acrisolam tudo o que não é essencial, deixando ouro ou o ferro puros. São as notórias crises existenciais. Ao fazermos esta travessia dolorosa e purificadora, deixamos aflorar o nosso eu profundo. Então amadurecemos para aquilo que é autenticamente humano. Quem recebe o batismo de fogo e de água rejuvenesce como a águia do mito antigo.
Mas indo diretamente ao assunto: que significa concretamente rejuvenescer como águia? Significa entregar à morte tudo aquilo que de velho existe em nós para que o novo possa irromper e ser integrado. O velho em nós são os hábitos e as atitudes que não nos engrandecem, como a falta de solidariedade para com os pobres, as palavras duras para com os familiares, a vontade de ter razão em tudo, o descuido para com o lixo, o desperdício da água e nossa surdez face ao que a natureza nos quer dizer. Tudo isso deve ser entregue à morte para podermos inaugurar uma forma sustentada de convivência entre os humanos e com os demais seres da criação. Numa palavra, significa morrer para ressuscitar.
Rejuvenescer como águia significa também desprender-se de coisas que um dia foram boas e de idéias que foram luminosas mas que lentamente se tornaram ultrapassadas e incapazes de inspirar o caminho da vida.
Rejuvenescer como águia significa ter coragem para recomeçar e estar sempre aberto a escutar, a aprender e a revisar. Em outras palavras, viver concretamente a resiliência. Não é isso que nos propomos cada ano?
Que o ano de 2012 que acaba de se inaugurar, seja oportunidade de perguntar o quanto de galinha existe em nós que não quer outra coisa senão ciscar o chão ou o quanto de águia ainda há em nós, disposta a rejuvenescer, a desenvolver resiliência e a confrontar-se corajosamente com os tropeços e as crises da vida.

Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...