Neste XXIX Domingo do Tempo Comum, a liturgia nos coloca ainda ao
longo do caminho de Jesus com seus discípulos para Jerusalém, sendo que já nos
encontramos nas últimas etapas desse percurso iniciado no capítulo nono (cf. Lc
9,51. O trecho que hoje nos é proposto, Lucas 18,1-8, apresenta três dimensões
essenciais para o discipulado: a oração, a luta por justiça e a fé. O texto
apresenta uma parábola bastante ambígua e complexa, a do juiz iníquo e a viúva,
exclusiva de Lucas.
A oração é um tema bastante frequente no evangelho de Lucas, tanto
da parte de Jesus, quanto dos discípulos. De fato, em diversos momentos Lucas
apresenta Jesus em oração: após o batismo (cf. 3,21), antes da escolha dos Doze
(cf. 6,12) na transfiguração (cf. 9,28), e em tantos outros. A oração de Jesus
causava admiração nos discípulos, tanto que eles pediram para que Lhes
ensinasse a orar: “Estando em certo lugar, orando, ao terminar, um de seus
discípulos pediu-lhe: “Senhor, ensina-nos a orar” (Lc 11,1). Portanto, a
atitude orante de Jesus e seus discípulos é uma das características do Terceiro
Evangelho.
A princípio, é necessário ressaltar que o primeiro versículo do
evangelho de hoje pode levar-nos a uma interpretação precipitada e equivocada da complexa
parábola. A primeira observação importante a ser feita diz respeito à tradução.
A expressão “Jesus contou aos discípulos uma parábola, para mostrar-lhes a
necessidade de rezar sempre e nunca desistir” (v. 1) não exprime completamente
o seu sentido original, devido ao uso inadequado do verbo desistir. Na verdade,
o verbo empregado na língua original é evgkakew – enkakêo, cujo significado é desanimar ou desencorajar. Portanto, o
ensinamento de Jesus aos discípulos sobre a oração é um convite a não
desanimar. É possível que alguém, mesmo sem desistir, mantenha-se desanimado, e
Jesus não pede apenas que seus discípulos persistam de qualquer modo, mas que
se mantenham animados e encorajados. Assim, a tradução correta da parte final
do versículo é “para mostrar-lhes a necessidade de rezar sempre e não
desanimar” (v. 1b).
Ainda sobre o primeiro versículo, devemos fazer uma segunda
observação: isolando-o, o mesmo pode nos desviar do foco da parábola. É notório
que o tema da parábola não é a oração em si, mas a busca pela justiça. Podemos
dizer que a oração é um meio, e não um fim em si mesma. Por estarmos tão
familiarizados com o tema da oração em Lucas, podemos nos precipitar na
interpretação e, assim, distorcê-la.
Por fim, ainda sobre o primeiro versículo, não podemos esquecer que
ele nos apresenta informações preciosas sobre o contexto histórico do evangelho
de Lucas. Ora, escrito nos anos 80 d.C., quando Domiciano era o imperador
romano, as perseguições aos cristãos estavam em plena evidência, o que gerava
um clima de desânimo nas comunidades cristãs. Daí a necessidade de uma palavra
de encorajamento e perseverança diante da situação hostil vivenciada.
Feita a devida introdução, voltamos nossa atenção para a parábola
em si, partindo da apresentação dos dois personagens envolvidos: “Numa cidade
havia um juiz que não temia a Deus e não respeitava homem algum” (v. 2); eis o
retrato do primeiro personagem, bastante negativo por sinal. Desde o Antigo
Testamento, a tradição bíblica apresenta a magistratura com características negativas, de modo que essa descrição do juiz da parábola é uma verdadeira
síntese: a falta de temor a Deus e de respeito ao próximo representa o máximo de
prepotência e injustiça para uma pessoa. Um dos alvos constantes das denúncias
dos profetas foi a figura do juiz ou “administrador da justiça”. Em uma das suas
críticas aos juízes, o profeta Isaías denuncia exatamente a contribuição deles
para a opressão das viúvas (cf. Is 10,1). O profeta Amós, por sua vez, acusa os
juízes de transformarem o direito em veneno (cf. Am 5,7).
O motivo das críticas dos profetas aos administradores da justiça
se deve à tendência de favorecimento dos mais ricos, prejudicando sempre os
mais necessitados: órfãos, viúvas e pobres, prática comum no direito oriental,
mas não muito distante de práticas atuais em todo o mundo. Para a tradição
bíblica, além de descrever uma realidade concreta, embora muito triste, essa
negatividade dos magistrados terrenos ajuda na construção da imagem de Deus
como o único e justo juiz de todo o universo.
Como segundo personagem da parábola, Lucas apresenta o oposto do
primeiro: “Na mesma cidade havia uma viúva que vinha à procura do juiz pedindo:
‘Faze-me justiça contra o meu adversário!’” (v. 3). Mais uma vez, a técnica
lucana de apresentar personagens com características opostas em uma mesma cena
se evidencia aqui: de um lado, um homem poderoso e prepotente, do outro, uma
mulher indefesa e injustiçada. Ora, a figura da viúva na tradição bíblica representa
a situação de máxima vulnerabilidade. Tanto no Antigo quanto no Novo
Testamento, há uma predileção pela figura da viúva, pois sendo a imagem da
pessoa desamparada, representa uma das classes sociais por quem Deus faz opção.
O estado de viuvez em si já é um sinal de preocupação. Essa preocupação
aumenta mais ainda quando a viúva tem um ‘adversário’, avntidi,koj – antidikos em grego. Sendo o adversário um homem, obviamente a situação
da viúva se torna desesperadora, por isso, sempre levava desvantagem nos julgamentos.
Ainda convém ressaltar que a viúva da parábola é tão desprotegida, a ponto de
ser ela mesma quem recorre diretamente ao juiz, algo incomum na época de Jesus.
Algum parente masculino deveria assumir a causa e recorrer ao juiz. A intenção
do evangelista ao coloca-la sozinha, reforça ainda mais sua condição de
desamparada. E, quanto mais desemparada for, mais terá a predileção de Deus,
principalmente na perspectiva do evangelista Lucas.
A parábola continua até o quinto versículo,
quando vem apresentado seu desfecho final. A prepotência do juiz levava-o a
negar-se a fazer justiça em favor da viúva (v. 4), mas a insistência perseverante
dela foi tão grande, a ponto de conseguir o seu pleito (v. 5). Aqui, corremos o
risco de atribuir a imagem do juiz a Deus. De modo algum devemos fazer isso. Os
atributos desse juiz iníquo são completamente opostos aos de Deus. Aqui, é
necessário desvendar o que cada um destes personagens representa, para não
chegarmos a conclusões erradas. E, começamos pela viúva que é a imagem das
comunidades cristãs dos anos 80 d.C., perseguidas pelo império. A história
comprova que era praticamente impossível um cristão ter uma causa julgada em
seu favor naquela época. Além de desfavorecidos pelo poder judiciário da época,
os cristãos ainda eram responsabilizados pelas diversas mazelas que surgissem
nas cidades onde eles estavam. Eram indefesos e desamparados legalmente, como a
viúva na parábola. O juiz iníquo, obviamente, representa todas as hostilidades
colocadas para impedir o crescimento da comunidade, principalmente o aparato
jurídico oficial do império romano na época.
Diante disso, podemos concluir que o tema
principal de todo o evangelho de Deus é a justiça. Por sinal, justiça é a
palavra que mais se repete em todo o texto: quatro vezes (vv. 3. 5. 7. 8). A oração
é o meio, por sinal, o único eficaz, para alguém obter justiça, desde que
permaneça firme na fé. Por isso, a preocupação no último versículo: “Quando o
Filho do Homem vier, será que vai encontrar fé sobre a terra?” (v. 8).
A comunidade cristã é convidada por Lucas a manter-se
perseverante, com a fé viva em constante luta por justiça. Se, às vezes, até um juiz iníquo, antítese de Deus, dá
sinais de justiça, quanto mais Deus!
Pe. Francisco Cornelio F.
Rodrigues
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