O texto evangélico que a liturgia deste XXVII Domingo do Tempo Comum
nos apresenta continua a nos situar no longo caminho de Jesus para Jerusalém. É
certo que nesse caminho muitos obstáculos foram encontrados, enfrentados e
superados. Também ao leitor do terceiro evangelho, Lucas, alguns obstáculos são
postos no caminho, sobretudo, no que diz respeito à compreensão daquilo que o
texto quer apresentar. Com isso, dizemos que o texto de hoje, Lc 17,5-10, pode
ser considerado um destes obstáculos, tendo em vista as dificuldades de
interpretação que o mesmo apresenta.
Uma vez que estamos diante de um texto considerado difícil, a
melhor forma de ir superando as dificuldades de compreensão é olhando para o
seu contexto. Ora, o capítulo dezessete de Lucas apresenta a retomada das
exigências de Jesus aos seus discípulos. À medida que avança e se aproxima de
Jerusalém, Jesus vai deixando cada vez mais claro o que é necessário para os
discípulos continuarem com Ele. Muitas exigências já tinham sido apresentadas
até então: renúncia a todos os bens (cf. Lc 14,33), coragem para ser
crucificado (cf. 14,27), ruptura nas relações familiares (cf. Lc 14,26). Até então,
parece que a fé dos discípulos estava sendo suficiente para suportar tantas
exigências. Pelo menos, não reclamaram. Mas, uma nova fase surge.
A situação parece complicar-se quando Jesus exige dos discípulos a
disponibilidade para perdoar constantemente ao irmão que lhes tiver ofendido
(cf. 17,3-4). Portanto, para compreendermos bem o evangelho de hoje, é
necessário partirmos do contexto, recordando a mensagem apresentada nos
versículos iniciais desse capítulo dezessete (vv. 1-4). A primeira recomendação
feita foi o cuidado com o “escândalo” (cf. Lc 17,1-2); é importante ressaltar
que ‘escândalo’ na linguagem bíblica, do grego ska,ndalon – skandalon – não significa apenas um comportamento moral inadequado, e sim um
obstáculo para o Reino, tudo o que é capaz de atrapalhar uma adesão completa a
Jesus, como o apego aos bens materiais, o orgulho, a inveja, a incapacidade de
perdoar, e tantos outros.
Após a advertência sobre os ‘escândalos’,
Jesus apresentou a maior de todas as exigências até então: a capacidade e a
disponibilidade para perdoar de modo ilimitado, até sete vezes num único dia,
sinal de totalidade, ao irmão que tiver ofendido (vv. 3-4). Foi essa exigência
que deixou os apóstolos em crise, a ponto de perceberem que não tinham, ainda,
uma fé suficiente para tal. Deixar a família, os bens, romper com tantos laços
tradicionais tinha sido mais fácil que perdoar! E, para Jesus, o maior dos
escândalos é a falta de perdão!
Sem dúvidas, essa foi a maior exigência feita
até aqui. Por isso, “os
apóstolos disseram ao Senhor: aumenta a nossa fé!” (v. 5); trata-se de uma
reação ao que lhes fora anteriormente exigido. Ao pedido dos apóstolos, Jesus
responde em tom de ironia, dizendo, antes de tudo, que a fé não se mede
quantitativamente. Os apóstolos consideravam que já tinham fé, mas não em
quantidade suficiente para abraçarem a mais nova exigência. Porém, essa exigência
não era tão nova, pois já estava contida no Pai-nosso: “Perdoa os nossos
pecados como também nós perdoamos aos nossos devedores” (cf. Lc 11,4); assim, a
oração ensinada por Jesus, também em resposta a um pedido deles, “Senhor,
ensina-nos a orar” (cf. Lc 11,1-4), não estava sendo levada a sério. Por isso,
a resposta de Jesus soa irônica.
Se os apóstolos concebiam a fé como algo mensurável
quantitativamente, imaginavam que já possuíam em pequena quantidade e,
portanto, necessitavam de algumas ‘porções’ a mais. Daí a ironia de Jesus com o
exemplo parabólico do grão de mostarda (v. 6), dizendo, em outras palavras que,
ou se tem fé ou simplesmente não se tem, ou seja, basta que seja autêntica,
qualitativa e não quantitativa. Para desconcerta-los ainda mais, usa o exemplo
da amoreira, a árvore conhecida na sua época como a possuidora das raízes mais
profundas e de maior tempo de sobrevivência e, portanto, a mais difícil de ser
arrancada; e se o simples fato de uma amoreira ser arrancada já parecia
impossível para a mentalidade da época, menos possível ainda seria a sua
sobrevivência no mar.
A resposta é simbólica e irônica. Ele não promete dar algumas porções
a mais de fé aos apóstolos, porque isso não é possível. A fé não pode ser
medida e muito menos ofertada por Ele; é a resposta incondicional ao seu amor,
é a adesão plena ao Reino, e isso é pessoal. O exemplo da fé com poder de fazer
uma árvore arrancar-se sozinha e plantar-se no mar é apenas um modo de dizer
que a fé transforma realidades, quando autêntica. No caso dos apóstolos, era a
mentalidade deles que necessitava de uma transformação. Portanto, Ele não
promete o poder de fazer e ver milagres extraordinários a quem tem fé; pede uma
transformação interior e radical, a começar pela vivência do perdão sem
medidas.
O grande milagre da fé é arrancar pela raiz tudo o que obstaculiza o
advento pleno do Reino de Deus: o egoísmo, a injustiça, a falta de amor e de
solidariedade, o apego aos bens materiais; é tudo isso que, movidos pela fé,
devemos “jogar no mar”, recordando que na mentalidade bíblica o ‘mar’ tem um
sentido muito negativo, pois era considerado também o lugar onde habitavam as
forças do mau. Inclusive, no início do capítulo em questão, como destino de
quem escandalizar um pequenino, Jesus sugere ‘ser jogado no mar’ (cf. Lc
17,1-2). Na descrição do ‘novo céu e a nova terra’ no Apocalipse, o autor
afirma que “o mar já não existe” (cf. Ap 21,1), exatamente porque as forças do
mau já foram vencidas. Eis, portanto, um exemplo do sentido negativo do mar
para a mentalidade bíblica.
Na continuação, Jesus conta-lhes uma pequena parábola (vv. 7-10),
aparentemente sem nexo com a discussão sobre a fé, porém intrinsecamente
relacionada. Trata-se de mais uma parábola exclusiva de Lucas. Com ela, Jesus
quer mostrar aos discípulos a melhor maneira de cultivar e viver uma fé
autêntica e verdadeira: colocando-se como servos completamente disponíveis e
despretensiosos. Ora, vigorava na época, sobretudo em ambientes farisaicos, uma
mentalidade meritocrática. Os fariseus observavam fielmente a Torá pensando na
retribuição, vivendo uma relação contratual com Deus: observavam a Lei porque
eram justos e, portanto, seriam mais merecedores dos dons de Deus. Infelizmente,
essa mentalidade contaminava também os discípulos de Jesus.
O verdadeiro discípulo é aquele que, movido por uma fé autêntica,
não reivindica direitos nem privilégios para si. Tudo o que faz é para a
edificação do Reino, até porque, desde o início Jesus deixou muito claro o seu
projeto, exigindo dos discípulos que fossem capazes de “renunciar a si mesmo”
(cf. Lc 9,23). Logo, era completamente descabida a tendência à exigência de
reconhecimento da parte deles. Na frase final do texto, há um exagero na expressão
‘servos inúteis’ como tradução do grego dou/loi avcrei/oi, (duloi akreioi). A tradução mais justa seria “simples servos” ou “simplesmente
servos”, pois o servo não é inútil, pelo contrário, é necessário para a edificação do
Reino. Porém, ele não pode esquecer a sua condição de servo e, portanto, tudo o
que venha fazer pelo Reino não é motivo de mérito nem de reconhecimento, pois é
essa a sua missão: servir de modo incondicional e movido pela fé!
Podemos dizer, então, que o Evangelho de hoje
nos convida a viver e cultivar uma fé autêntica, que nos leve a cortar pela
raiz tudo o que se opõe ao Reino dentro de nós e, de modo incondicional e livre,
assumirmos a nossa condição de simples servos, porque nossa missão é servir
sempre!
Pe. Francisco Cornelio
Freire Rodrigues
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