Ainda no longo caminho de Jesus para Jerusalém, a liturgia deste
XXX Domingo do Tempo Comum nos oferece, como texto evangélico, a famosa
parábola do fariseu e o publicano (Lc 18,9-14). É a segunda parábola do
capítulo dezoito de Lucas e uma das mais conhecidas de todo o evangelho. Assim
como a primeira, a do juiz iníquo e a viúva (cf. Lc 18,1-8), a parábola de hoje
está inserida no ensinamento de Jesus sobre a oração, embora ela não se limite
apenas a esse tema.
Em linhas gerais, a parábola refletida domingo passado (cf. Lc
18,1-8) nos convidava a rezar sempre e sem desanimar, lutando e suplicando a
Deus por justiça, a partir do exemplo da pobre e injustiçada viúva. A parábola
de hoje nos chama a atenção sobre a maneira correta de rezar, ou seja, de
dirigir-se a Deus na oração, a partir da contraposição de dois personagens. Nela,
prevalece o estilo típico de Lucas de apresentar personagens com
características e comportamentos completamente opostos para despertar a atenção
do leitor, levando-o a fazer opção por um dos lados.
Diante de qualquer ensinamento de Jesus, principalmente quando em
forma de parábola, é importante considerar quem são os destinatários primeiros.
É claro que seus ensinamentos serão válidos e atuais para todas as gerações,
mas não podemos perder de vista o contexto específico em que se deu. Por isso,
é importante recordar que muitas vezes os evangelhos afirmam: “Jesus disse aos
discípulos”, “Jesus disse aos fariseus”, “Dirigindo-se às multidões, Jesus
disse-lhes”. Se mesmo quando os destinatários são determinados, o ensinamento
os transcende, ou seja, serve para todas as pessoas e em todos os tempos, muito
mais quando não vem mencionado um destinatário determinado, como no caso da
parábola de hoje.
O texto diz que a parábola foi contada para “alguns” (v. 9). Certamente,
aqui está um alerta para nós, leitores de hoje. Pelo desenvolvimento da
parábola, a tendência é imaginar como destinatários, apenas os fariseus. Porém,
também os discípulos estavam incluídos, até porque, não são raras as vezes em
que Jesus chama-lhes a atenção por não assimilarem os valores do Reino. Na
verdade, com os fariseus Jesus já nem se preocupava; o que Ele queria mesmo era
prevenir os discípulos para não se deixarem contaminar pelo “fermento dos
fariseus” (cf. 12,1). Portanto, também nós, discípulos e discípulas de hoje
devemos nos incluir nesses “alguns” para quem a parábola é dirigida.
Feitas as devidas considerações iniciais, voltemo-nos atentamente
para o texto do evangelho. Na versão da liturgia, a parábola é introduzida
assim: “Jesus contou esta parábola para alguns que confiavam na sua própria
justiça e desprezavam os outros” (v. 9). No entanto, a tradução mais adequada
seria: “Jesus contou uma parábola para alguns que, convencidos de serem justos,
desprezavam os outros”. De fato, o desenvolvimento da parábola vai apontar que,
aqueles se consideram justos, tendem a desprezar os outros exatamente como
consequência da qualidade de justos. O desprezo pelos outros é consequência do
sentir-se justo. Eis o problema de “alguns”: desprezar os outros a partir de
uma visão errada de Deus e de justiça. Mas, não pensemos que havia “alguns”
assim somente no tempo de Jesus. Os alguns para quem a parábola é dirigida está
dentro de cada e cada uma. Trata-se de um alerta de Jesus para a comunidade
estar sempre atenta à tendência de autossuficiência, presunção e orgulho.
O convencimento de ser justo pode levar a pessoa a duas
consequências anti-evangélicas: o desprezo pelos outros e a falta de confiança
em Deus. É exatamente isso que Jesus quis combater com a parábola do fariseu e
o publicano. Assim identificados os destinatários, olhemos para os personagens:
“Dois homens subiram ao templo para orar: um era fariseu e o outro publicano”
(v 10). Os dois personagens antagônicos encontram-se em situações de
convergência: no mesmo lugar, o templo, e fazendo a mesma coisa, rezando.
A princípio, parece tudo muito óbvio: dois homens foram ao templo
para orar. O uso do verbo subir, em grego avna,bainw – anabaino, além de indicar as circunstâncias
geográficas do templo, na parte alta de Jerusalém, indica também a atitude da
pessoa orante: elevar-se ou subir para encontrar-se e comunicar-se com Deus faz
parte da mentalidade bíblica. Embora tenham ido paralelamente, é isso que o
evangelho nos faz entender, eles já vão separados pela condição social e
religiosa. O primeiro, fariseu, era frequentador assíduo do templo, pertencia à
corrente religiosa de maior fidelidade à Lei em todo o Israel. Os fariseus,
cujo nome significa separados, observavam os preceitos da Lei em seus mínimos
detalhes e gozavam de grande simpatia popular, pela vida religiosa exemplar que
levavam e pela prática das boas obras.
O segundo personagem, o publicano, era um
cobrador de impostos, e, portanto, um colaborador direto do poder opressor, o
império romano. Gozava de uma péssima reputação popular, e com razão, pois além
de cobrar as taxas exigidas pelo império, as quais já eram altas, ainda as
aumentava para tirarem suas comissões. Assim, enriqueciam ilicitamente, pois
recebiam o salário pelo trabalho, e ainda roubavam. Eram odiados pelo povo e
completamente excluídos da religião, pois a condição de servidores do poder
dominante não permitia que observassem a Lei de Deus. Eram considerados ladrões
profissionais e pecadores públicos. Portanto, o publicano da parábola carregava
consigo todos estes estigmas.
A parábola não se limita a dizer que os dois
subiram para orar; diz também o conteúdo da oração de cada um (vv. 11-13). E, é
exatamente a atitude e o conteúdo da oração de cada um deles que vai determinar
o desfecho final da história. Como de praxe, a oração do fariseu é bastante
longa (vv. 11-120, uma espécie de prestação de contas de suas ações. É uma ação
de graças, mas não pelas obras de Deus, e sim pelas suas próprias obras, um
louvor a si mesmo. Parece até que o fariseu não acreditava que Deus conhece e
vê tudo!
Por ser um dos que se “consideravam justos”
(v. 9), o fariseu desprezava os outros, comparando sua vida de fiel observante
com os pecados dos outros: “ladrões, desonestos, adúlteros, como aquele
publicano” (v. 11). Ele não confrontava sua vida com o projeto de Deus, mas com
a vida dos outros, imaginando com isso, receber crédito da parte de Deus.
Na sequência da oração, ele apresenta como é
bom observante da Lei: jejuava duas vezes por semana, e pagava dízimo de toda a
sua renda (v. 12). Na verdade, ele fazia mais até do que era determinado pela
Lei; enquanto o jejum era exigido apenas uma vez no ano (cf. Lv 16,29), o
fariseu ele jejuava duas vezes por semana, como faziam os féis mais
tradicionalistas. Esses dias eram as segundas e quintas-feiras, como recordação
da subida e descida ao monte de Moisés para receber a Lei. Enquanto o dízimo
era exigido apenas dos principais produtos, trigo, vinho, azeite e primeiras
crias do rebanho (cf. Dt 14,22-27), ele pagava de tudo. Por isso, considerava-se
perfeito e irrepreensível. Foi orar dizendo a Deus que era justo, e quem se
considera justo não sente necessidade da justiça de Deus.
Já o publicano, “ficou a distância” (v. 13a),
pois ocupar os primeiros lugares era uma prática comum dos fariseus e criticada
por Jesus (cf. Lc 14,7; 21,46). A atitude do publicano é de quem tem consciência
de sua condição de pecador, por isso, “não se atrevia a levantar os olhos para
o céu” (v. 13b). Colocou-se em condição de penitência, sabendo que sua condição
de pecador público era motivo de escárnio para os outros, como foi para o
fariseu na sua oração: “não sou como este publicano” (v. 11). Sua atitude de
penitência se evidencia ainda mais com o gesto de “bater no peito”, sinal de
arrependimento. Sua oração é muito simples, mas muito profunda, por isso foi
ouvido por Deus: “Meu Deus, tem piedade de mim, porque sou pecador” (v. 13). Essa
é uma das invocações que mais se repetem nos salmos (cf. Sl 25,11; 51,13), é a
oração dos humildes, dos que reconhecem a necessidade de Deus. É essa atitude
que vai determinar a sentença final de Jesus.
Na conclusão, Jesus usa de sua autoridade ao
dar a sentença final, com a expressão “Eu vos digo”. De fato, o uso dessa
fórmula é sinal de um ensinamento importante e irrevogável, em grego le,gw
u`mi/n – legô himin, quer dizer que a
declaração feita é irrevogável. E, a sentença é a justiça. O publicano voltou para casa
justificado, enquanto o fariseu não” (v. 14a). Porque? O fariseu não foi pediu
justiça nem misericórdia, pelo contrário, ofereceu aquilo que Deus já tem, os
méritos. O publicano, pelo contrário, ofereceu sua condição miserável de
pecador, e recebeu misericórdia, pediu piedade e recebeu justiça. A expressão
final, uma espécie de provérbio “ quem se eleva será humilhado e quem se
humilha será elevado”, usada duas vezes por Lucas (cf. 14,11; 18,14) além de
resgatar a postura de cada um dos personagens na oração, o fariseu orgulhoso estava
erguido, enquanto o publicano nem a cabeça levantava para o céu, revela o
projeto de Deus apresentado no Evangelho de Lucas desde o início: “dispersou os
orgulhos, aos humildes exaltou” (Lc 1,51b.52b).
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues
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