Após uma sequência de oito domingos, a liturgia dá uma pausa no
Tempo Comum e nos convida a viver um dos seus períodos mais fortes, a Quaresma,
iniciada na Quarta-Feira de Cinzas. Hoje celebramos o primeiro domingo desse
tempo especial de preparação para a Páscoa do Senhor. O texto evangélico
proposto para esse domingo é Mateus 4,1-11, o famoso episódio das “tentações”
pelas quais passou Jesus logo após ser batizado.
Embora muito bem elaborado literariamente e teologicamente, se
trata de um texto problemático, devido a nossa tendência equivocada de insistir
em considerar as narrativas evangélicas como crônicas reais da vida de Jesus.
Por isso, apresentamos como primeiro critério de interpretação para o nosso
texto evangélico de hoje, o olhar simbólico e teológico para o mesmo, deixando
de lado a ideia de um episódio concreto acontecido.
O principal objetivo do evangelista com esse episódio é apresentar
Jesus como o enviado de Deus, ou seja, o “Filho amado do Pai”, conforme a
revelação no batismo, cena anterior ao texto de hoje (cf. Mt 3,16), o qual
permanecerá fiel aos propósitos do Pai, rejeitando todas as propostas que não
condizem com os valores do Reino, sintetizadas aqui pelas três tentações apresentadas
pelo diabo.
O primeiro versículo já apresenta a principal chave de leitura de
todo o texto: “O Espírito conduziu Jesus ao deserto” (v.1a). Ora, “o Espírito
que desceu em forma de pomba e permaneceu sobre Ele” no batismo será o condutor
e guia de todas os passos e ações de Jesus; com o batismo, foi inaugurada sua
vida pública, e essa, do início ao fim, será marcada pela presença do Espírito
de Deus, e não apenas quando Ele vai ao deserto. Aqui, o deserto – e;rhmoj (eremos) em grego – não é um indicativo geográfico, mas
teológico.
A ida de Jesus ao deserto, antes de tudo,
indica que Ele está inserido na história do povo de Israel, fazendo parte desse
e, portanto, estará sujeito aos mesmo riscos pelos quais Israel passou, da
saída do Egito à conquista da terra. Logo, também o caminho de Jesus, do
nascimento à ressurreição, será marcado por riscos, perigos e provas, uma vez
que Ele é, embora Deus, verdadeiramente homem. Embora o deserto evoque a
provação, é também o lugar ideal para o bom relacionamento com Deus, por isso, quando o povo demonstrava infidelidade, os profetas
apresentavam a necessidade de retornar ao deserto para voltar a viver o ideal
da aliança (cf. Os 2,14; 9,10; 13,5; Am 2,10; 5,25).
Uma vez que o deserto é sinônimo de provação e perigo, o evangelista
quer dizer que aquele que tem a sua vida conduzida pelo Espírito, não está
imune aos perigos da vida, não é uma pessoa blindada. Por isso, “Ele foi
tentado pelo diabo” (v.b). O protagonista da tentação é o diabo – diabo,loj (diabolos)
em grego – aquele que divide e atrapalha, como é tudo o que se opõe à concretização do Reino de Deus e ao caminho de Jesus. Logo, o diabo não é uma
pessoa ou um ser específico, mas todo percalço posto diante do projeto de Deus.
Pelo desenvolvimento do texto, podemos
perceber que Mateus quis apresentar, antes de tudo, o império romano e a
religião oficial da época como manifestadores da presença do diabo
na vida de Jesus e da comunidade cristã. Por quê? O império porque o texto
deixa muito evidente que o poder é uma das principais ameaças e sugestões do
diabo; a religião, porque os argumentos do diabo serão, posteriormente, ao longo
do Evangelho, retomados pelos mestres da lei e fariseus, sobretudo, quando
exigirão sinais que comprovem a autenticidade de Jesus (cf. Mt 12,38). E, de fato, os
adversários mais ferrenhos de Jesus foram a religião e o império que, aliados,
o levaram à morte.
Se o deserto não é um dado geográfico,
assim também os “quarenta dias e quarenta noites” em que Jesus jejuou (v.2a) não
podem ser considerados como um dado cronológico. Mais uma vez, trata-se de um
dado teológico de grande relevância. São muitas as ocorrências do número
quarenta relacionado ao tempo no Antigo Testamento: a duração do dilúvio foi de
quarenta dias e quarenta noites (cf. Gn 7,4.12.17); a caminhada do povo de Deus
no deserto durou quarenta anos, sendo esse um tempo de fidelidade, infidelidade e
prova, bem como outros casos.
Além de evocar acontecimentos e
personagens importantes da história de Israel, esse número quer dizer uma etapa
completa, ou seja, uma vida inteira. Portanto, significa que toda a vida de
Jesus foi marcada pela prova e, assim, é também a vida da comunidade cristã. Isso
deve levar os cristãos a uma vida vigilante sem, jamais, cair nos comodismos que podem surgir. Quer dizer
que a Igreja não pode, em momento algum da história, aceitar qualquer sinal de
conforto, principalmente quando ofertado pelos detentores do poder. O jejum é a
imagem das privações às quais são submetidos os que fazem a experiência do
deserto. A fome de Jesus (v.2b) é mais uma evidência da sua humanidade.
As três tentações ou provas (cf. Mt
4,3-4; 5-7; 8-10) são proposta e contraproposta de como o ser humano deve relacionar-se
com as coisas, com Deus e com o próximo. O diabo apresenta a lógica da ordem
vigente, seja religiosa ou política, e Jesus propõe um caminho alternativo, o que vai caracterizar o Reino
de Deus como uma sociedade alternativa a todas formas de organização social até
então experimentadas pela humanidade, amparadas ou não pela religião. Diante
disso, parece haver um debate ou disputa de conhecimento da Escritura entre o
diabo e Jesus. É uma nítida antecipação do que ocorrerá em toda a vida de
Jesus, sobretudo quando terá de enfrentar os líderes religiosos do seu tempo. É
um alerta de que o mal age na história camuflado de diversas aparências,
inclusive de pessoas muito religiosas.
A primeira tentação (vv.3-4) diz respeito à maneira de relacionar-se com as coisas: a lógica do império incentiva ao
consumo e satisfação dos desejos. Embora faminto, Jesus percebe que não é
suficiente saciar-se de pão naquele momento, pois a vida pede muito mais que
pão. Por isso, com base na Escritura, Ele não dispensa o pão, mas diz que o
homem não pode viver “somente” dele. A vida digna e plena não depende somente
do alimento, mas de todos os valores do Reino contidos na “Palavra que sai da
boca de Deus”, que será explicitada no capítulo seguinte, com as
bem-aventuranças.
A segunda tentação chama a atenção (vv.5-7)
para a relação com Deus: na “cidade santa”, onde Deus morava, o que mais se
podia esperar era milagres! Jesus resiste à tentação do milagre fácil, rejeitando
o Deus vendido pelo templo; o seu Deus não é aquele que distribui anjos por
todas as partes para guiar e proteger os seus ‘filhos bons’ apenas, como afirmava a
religião da época, não é o Deus das visões e aparições nem dos espetaculares prodígios,
mas é o Deus da simplicidade, das coisas pequenas, porque age a partir de
dentro do ser humano.
A terceira tentação (vv.8-10) diz
respeito à relação com o próximo. A lógica religiosa-imperial incentivava a
busca constante de poder e, consequentemente, de domínio sobre o outro. Cada vez
mais alimentavam-se as expectativas de um messias glorioso e poderoso, capaz de
julgar e condenar todos os ‘inimigos’ de Israel. Para decepção de muitos, Jesus
apresentou-se como messias servo e sofredor. Por isso, rejeita toda e qualquer
forma de poder, pois, mesmo que esse seja exercido em nome de Deus, será sempre
de origem diabólica, uma vez que impede a concretização de uma fraternidade
universal. Ao invés de poder, Jesus escolherá o serviço como meio de exercício
de sua autoridade. Ele não quis e nem quer o domínio do universo; quis e
quer apenas que o seu amor chegue, através da Igreja, em todos os confins da
terra e, assim, que a humanidade seja transformada.
“O diabo deixou Jesus” (v. porque não
encontrou nEle um aliado: nem Caifás e nem César aceitaram a “rebeldia” de
Jesus, por isso, continuaram tramando contra Ele até a cruz! Embora tenha usado
citações do Antigo Testamento como autodefesa, Jesus vai, aos poucos,
elaborando seu próprio programa alternativo àquilo que o poder vigente na época
lhe tinha proposto. Seu programa é a sua própria vida com suas opções e consequências,
explicitado no amplo discurso da montanha (cf. Mt 5 – 7).
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues
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