Neste II Domingo da Quaresma, a liturgia nos oferece como texto evangélico,
Mateus 17,1-9, o relato do episódio tradicionalmente chamado de “Transfiguração
do Senhor”. É um episódio narrado pelos três evangelhos sinóticos (cf. Mt
17,1-9; Mc 9,2-13; Lc 9,28-36) e, portanto, de grande relevância para a vida
das comunidades cristãs de todos os tempos.
Para uma boa compreensão do nosso texto, é indispensável
contextualizarmos o mesmo, embora brevemente. Trata-se do episódio que sucede
imediatamente à profissão de fé de Pedro na região de Cesareia de Felipe (cf.
Mt 16,13ss) e, consequentemente, ao primeiro anúncio da Paixão (cf. Mt 16,21-28).
Daí, podemos concluir que se trata de uma resposta de Jesus à incompreensão dos
discípulos em relação ao seu caminho de doação da vida por fidelidade aos
propósitos do Pai.
Mais uma vez, a versão litúrgica do texto nos priva de uma expressão
muito importante para uma compreensão mais adequada: o indicativo cronológico “Seis
dias depois”, presente no texto original, substituído no texto litúrgico pela genérica
e desnecessária expressão “Naquele tempo”.
“Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu
irmão” (v. 1a). O indicativo cronológico faz referência ao ocorrido em Cesaréia
de Filipe, quando Pedro professou sua fé em Jesus como Messias, mas ao mesmo
tempo não aceitou o caminho doloroso da cruz, fazendo Jesus repreendê-lo
duramente, chamando-o de satanás, por tornar-se um empecilho à realização do
projeto de Deus. “Seis dias depois” de ter anunciado a sua morte, Jesus mostra
aos discípulos a vida em plenitude; o homem e a mulher foram criados no sexto
dia (cf. Gn 1,26-31) e agora Jesus manifesta o ser humano em sua máxima
dignidade e realização.
Jesus tomou consigo três discípulos: Pedro, Tiago e João. À primeira
vista, parece tratar-se de um privilégio: Jesus escolhe os mais próximos e
íntimos, hierarquizando o grupo dos Doze. Porém, se fizermos uma leitura mais
atenta, concluímos exatamente o contrário: esses três são os discípulos que
mais tem dificuldade de assimilar os ensinamentos de Jesus, são os mais
trabalhosos e, portanto, necessitados; Pedro é sinônimo de dureza e fechamento,
a ponto de ser o único dos Doze a quem Jesus chamou diretamente de satanás, por
colocar-se como pedra de tropeço em seu caminho (cf. Mt 16,23); Tiago e João,
além de ambiciosos (cf. Mc 10,35-40), tinham temperamento bastante explosivo, a
ponto de serem chamados de “filhos do trovão” (cf. Mc 2,17). Portanto, são os
discípulos que tinham mais dificuldade em aceitar um messias sofredor.
O indicativo espacial também é de grande importância: uma alta
montanha. Na tradição hebraica, a montanha é, por excelência, o lugar do
encontro com Deus. No alto da montanha, “Jesus foi transfigurado diante dos discípulos”
(v. 2a). O verbo grego usado aqui é metamorfo,omai
(metamorfóomai), cujo significado é ser
transformado ou mudado. Assim, o evangelista está dizendo que Jesus transformou-se,
sua forma mudou diante dos discípulos. Ora, diante da incredulidade e
resistência em aceitar a morte, Jesus antecipa para eles o resultado da paixão:
a manifestação gloriosa do Filho do Homem e, portanto, de Deus nEle. “Seu rosto
brilhou como o sol e suas roupas ficaram brancas como a luz” (v. 2b): as mesmas
imagens da glória de Deus ao longo da história são reveladas em Jesus; a luz é
também sinal do que é novo: à medida que o Reino de Deus vai sendo implantado,
o universo todo se renova.
Os personagens do Antigo Testamento mais venerados na tradição
judaica entram em cena: Moisés e Elias (v. 3). Obviamente, estes personagens
representam a Lei e os profetas, respectivamente. É mais uma iniciativa divina
para conscientizar os discípulos de que o ensinamento de Jesus está em
consonância com tudo o que a Lei e os profetas tinham afirmado a respeito do
Messias. Embora o programa de Jesus seja repleto de novidades, não contradiz as
Escrituras; é o seu pleno cumprimento.
Os discípulos contemplam, mas somente Jesus conversa com Moisés e
Elias. Esse é mais um dado de grande importância revelado pelo texto. Ora, a
comunidade cristã, representada no episódio pelos três discípulos, não depende
mais do Antigo Testamento; em Jesus, a Lei e os profetas encerram-se, chegam ao
fim. Jesus é o critério de interpretação da Escritura: o Antigo Testamento só
tem sentido se passar por Ele. Por isso, Moisés e Elias nada tem a dizer para a
comunidade cristã; essa deve escutar somente a Jesus (v. 5).
Pedro, teimoso como sempre, tomou a palavra e, mais uma vez, disse
coisas desprezíveis: “Senhor, é bom ficarmos aqui. Se queres, vou fazer três
tendas: uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias” (v. 4). Duas coisas
são reprováveis na fala de Pedro: a primeira, é a nova tentação sugerida a
Jesus através do comodismo; permanecer na montanha é ignorar o mundo real com
seus problemas e contradições, é mostrar-se indiferente às situações
desafiadoras e fechar os olhos às injustiças que assolam o mundo. Mais uma vez,
Pedro procura uma maneira de tirar a cruz do caminho de Jesus; na primeira vez,
foi Jesus quem o repreendeu, agora será o próprio Pai, interrompendo-lhe.
A segunda coisa a reprovável na fala de Pedro é o seu apego à
tradição: “uma para ti, uma para Moisés, e outra para Elias” (v. 4b);
infelizmente, Jesus ainda não ocupa o centro na vida de Pedro, mas sim Moisés. Para
a tradição hebraica, o personagem mais importante é aquele que é citado em
posição central; Pedro insiste com a antiga tradição: está seguindo Jesus, mas
ainda coloca Moisés e a Lei no centro da vida; resiste em aceitar Jesus e o seu
Evangelho como centro.
As palavras de Pedro são tão absurdas que o próprio Deus o
interrompe: “Pedro ainda estava falando quando uma nuvem luminosa os cobriu com
sua sombra. E da nuvem uma voz dizia: ‘Este é o meu Filho amado, no qual eu pus
todo o meu agrado. Escutai-o!” (v. 5). O Pai não espera Pedro concluir seu
equivocado discurso e o interrompe, chamando a sua atenção. Mais uma vez a
imagem da luz e da nuvem são evidenciadas como sinais da presença e
manifestação de Deus, sendo que o mais importante aqui são as palavras que saem
da nuvem: “Este é o meu Filho amado, no qual eu pus o meu agrado. Escutai-o”; é
praticamente a mesma frase proferida por Deus no momento do Batismo (cf. Mt
3,17), sendo que ali somente Jesus ouviu, enquanto aqui na transfiguração
também os discípulos ouvem e ainda são exortados a escutá-lo. O imperativo “escutai-o”,
em grego avkou,ete auvtou/ - akúete autú, é dirigido principalmente
a Pedro, ainda propenso a escutar mais a Moisés que a Jesus.
O que Moisés e Elias, ou seja, a Lei e os profetas já disseram o
que tinham a dizer. De agora em diante, só o Evangelho deve falar à comunidade
cristã. Ouvir Jesus é compreender sua Palavra e viver as consequências de uma
adesão radical a ela, o que Pedro tentava constantemente evitar, por medo da
cruz. A situação tornou-se tão séria, a ponto de ser necessário o Pai intervir:
sem escutá-lo, não é possível prosseguir no seguimento.
Eis as consequências das palavras de Deus: “Os discípulos,
assustados, caíram com o rosto por terra” (v. 6). Essa cena apresenta um
pequeno retrato da comunidade cristã no seu dia-a-dia que, sentindo-se
desafiada, cai constantemente. É um sinal de falência e um reconhecimento de
que falharam ao longo do seguimento. Porém, mesmo caída, a comunidade jamais
será abandonada, porque Jesus está sempre próximo, tocando e estimulando: “Levantai-vos
e não tenhais medo” (v. 7). Apesar das infidelidades e fracassos dos
discípulos, Jesus não desiste, continua acreditando no ser humano e
encorajando-o.
Após a belíssima experiência, a vida volta à sua normalidade: “ergueram
os olhos e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus” (v. 8). Moisés e
Elias foram embora, pois cumpriram as suas respectivas missões; a comunidade
cristã já não precisa mais deles, mas somente de Jesus. Já não sai mais nenhuma
voz de Deus da nuvem, porque quem vê Jesus, vê o Pai (cf. Jo 14,9) e, portanto,
quem o escuta, escuta também ao Pai!
É o momento de descer da montanha e novamente encarar a realidade,
continuar o caminho com seus percalços e desafios até enfrentar o maior deles:
a cruz! A ideia do comodismo não combina com a comunidade cristã, como soou absurda
para Deus a sugestão das tendas por Pedro.
Jesus pede que não contem nada a ninguém daquilo que experimentaram
(v. 9), por respeito aos propósitos do Pai, pois deveriam esperar a Ressurreição,
e também porque se a notícia daquela experiência se espalhasse, novamente
grandes multidões emotivas e curiosas se aproximariam dele em busca de sinais e
milagres, quando na verdade o verdadeiro sinal estava se aproximando: a cruz e
a ressurreição.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues
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