A liturgia da Palavra deste III Domingo da Páscoa nos oferece o
texto evangélico de Lucas 24,13-35. Esse é, sem dúvidas, um dos textos mais
conhecidos de todo o Novo Testamento. Trata-se da narrativa da experiência do
encontro de dois discípulos com o Cristo Ressuscitado no caminho de retorno de
Jerusalém para um povoado chamado Emaús. Daí o título popular atribuído a esse
episódio de “Os discípulos de Emaús”. É um texto bastante atrativo para o leitor,
devido à sua vivacidade narrativa, à beleza literária e riqueza teológica.
Esse é um texto exclusivo de Lucas, e funciona como síntese e
conclusão do seu Evangelho: síntese porque resume a dinâmica de Jesus e seu
discipulado em todo o Evangelho, ou seja, a dinâmica do caminho, tema central
da teologia lucana, desde a caminhada de Maria ao encontro com Isabel, (Lc 1,39-45)
até a longa viagem de Jesus com os discípulos para Jerusalém (Lc 9,51 – 19,44);
conclusão porque culmina com o encontro da comunidade com o Ressuscitado e o
cumprimento da missão de anunciá-lo (24,33-35). Podemos dizer que, com esse
episódio, Lucas conclui o Evangelho e, ao mesmo tempo, antecipa a sua segunda
obra, o livro dos Atos dos Apóstolos.
O texto é iniciado com um indicativo temporal importante: “Naquele
mesmo dia, o primeiro da semana” (v. 13a); o evangelista faz questão de
apresentar momentos diferentes de um mesmo dia: a ida das mulheres ao sepulcro
nas primeiras horas (24,1), e depois a ida de Pedro (24,12) e, no final do dia,
a viagem dos dois discípulos, conforme o nosso texto, até o encontro fraterno
dos Onze e os demais discípulos (24,33ss). Portanto, o dia do acontecimento é o
dia mesmo da Páscoa, o domingo da ressurreição.
Infelizmente, o texto litúrgico apresenta uma deficiência logo no
início: a ausência da expressão “Eis que”, presente no texto original; a
partícula grega ivdou. – idú, com a qual Lucas abre esse
episódio, indica a importância do que vem a ser narrado, é um modo de chamar a
atenção do leitor e, infelizmente, o texto que da liturgia omite. Assim, a
expressão mais apropriada para abrir o texto seria: “Eis que que naquele mesmo dia...”,
pois, além de enfatizar a importância do relato, o relaciona com os outros
acontecimentos do mesmo dia.
Na sequência, diz o texto que “dois dos discípulos de Jesus iam
para um povoado, chamado Emaús, distante onze quilômetros de Jerusalém” (v. 13);
essa expressão nos traz informações muito importantes: se dois discípulos
tinham saído de Jerusalém, e quando voltam encontram os Onze reunidos (v. 33),
logo, o grupo de discípulos era muito mais vasto que o grupo dos apóstolos
propriamente ditos. Ao apresentar esses dois, Lucas resgata a grande missão dos
setenta e dois, quando Jesus os enviou dois a dois (cf. Lc 10,1-20). Esse é
mais um passo em preparação aos Atos dos Apóstolos e um modo de dizer que a
missão não é monopólio dos Doze menos um (os Onze após a saída de Judas), mas é
aberta, inclusiva e universal.
Os dois discípulos “iam para um povoado chamado Emaús, distante
onze quilômetros de Jerusalém” (v. 13); após toda uma vivência com Jesus, o
retorno ao povoado é sinal de incompreensão e decepção, pois o povoado
significa o fechamento de mentalidade, é o lugar onde o que vale é aquilo que
está na Lei. O nome Emaús significa “gente desprezada”; esse povoado teve
importância no tempo dos macabeus, pois fora palco de uma batalha dos judeus
liderados por Judas Macabeu contra os pagãos, e vencida pelos judeus (cf. 1Mc
3,40 – 4,27). Por isso, Lucas enfatiza esse povoado como antítese ao seu
projeto missionário: em Emaús se cultivava o ideal tradicional e triunfalista
do judaísmo; logo, não era lugar para os discípulos de Jesus!
Nesse texto, Lucas preserva e reforça a função pedagógica do
caminho na sua teologia: “Conversavam sobre todas as coisas que tinham acontecido”
(v. 14). Caminhar é aprender e ensinar; mais que percorrer uma distância, é a busca
de um ideal. Obviamente, para quem tinha seguido Jesus, o assunto não poderia
ser outro senão os últimos acontecimentos da sua vida. Caminhavam tristes,
certamente discutiam sobre as esperanças perdidas e os sonhos frustrados, como
gente que perdeu tempo seguindo a um fracassado que morreu na cruz; tudo isso
fica claro na conversa a três, quando Jesus surge no caminho e passa a
interagir com eles.
A presença de Jesus não é reconhecida de imediato, o que se explica
pela cegueira recordada pelo evangelista (v. 16). Obviamente, não se trata de
uma cegueira física, o que os impediria de caminhar sozinhos; é uma cegueira de
mentalidade. É interessante perceber que, embora desiludidos e decepcionados,
aqueles discípulos falavam de Jesus e tinham um bom conceito a seu respeito:
“foi um profeta poderoso em obras e palavras, diante de Deus e de todo o povo”
(v. 19); portanto, não estão longe da verdade. Lamentam ter que voltar ao
“povoado”, pois já sabem que o mal está na tradição quando afirmam com muita
clareza que foram “os sumos sacerdotes e os chefes que o entregaram para ser
condenado à morte e o crucificaram” (v. 20); por isso, não querem mais
submeter-se a ela. Outra característica da teologia lucana é aqui evidenciada:
a responsabilidade dos judeus na morte de Jesus, praticamente inocentando o
império romano.
O motivo da decepção e do não reconhecimento de Jesus em seu meio está
na concepção equivocada de messias: eles “esperavam que Jesus fosse libertar
Israel” (v. 21); ora, Jesus não veio ao mundo para libertar Israel, mas a
humanidade inteira! Essa mentalidade equivocada só pode ser corrigida com uma
boa revisão da Escritura, como faz o próprio Jesus: “E, começando por Moisés e
passando pelos Profetas, explicava aos discípulos todas as passagens da
Escritura que falavam a respeito dele” (v. 27); é necessário abrir o horizonte
da consciência para compreender e aceitar que a mensagem libertadora de Jesus é
universal, e não destinada a um único povo. Essa revisão da Escritura não é
tudo, mas é um passo importante no processo de reconhecimento do ressuscitado;
a ela, deve-se acrescentar a experiência comunitária da partilha, da comunhão
de mesa, como se dará, finalmente (vv. 30-31).
Mesmo não reconhecendo ainda a presença do ressuscitado, os
discípulos parecem não ter perdido completamente a esperança; na verdade, a
esperança parece que começou a renascer dentro deles depois que o forasteiro
começou a caminhar com eles, tanto que “imploram” que permaneça com eles: “Fica
conosco, pois já é tarde e a noite vem chegando!” (v. 29); ao invés do verbo “insistir”
trazido pelo texto litúrgico, o mais apropriado seria “implorar” ou “forçar”, mais
próximos do sentido de intensidade que o verbo grego, presente no texto
original exprime: parebia,zomai – parabiazomai. Portanto, os discípulos
perceberam que não podiam ficar sozinhos no povoado e, por isso, imploraram que
o forasteiro permanecesse com eles, porque daquela conversa, a esperança estava
voltando; por isso, querem evitar o retorno às trevas da vida no povoado, que significa
o retorno ao julgo da lei. A expressão “a noite vem chegando” não é um dado cronológico,
mas teológico: é a vida fechada, sem perspectivas e esperanças, da qual eles
tinham saído e não queriam mais voltar.
Jesus, ainda como forasteiro, atende aos discípulos que imploram a
sua presença e senta-se com eles à mesa (v. 30). A refeição tem um sentido
muito profundo no Evangelho de Lucas e é, portanto, necessário perceber essa
importância para não reduzirmos esse texto a uma mera descrição de uma celebração
eucarística, como muitas interpretações reducionistas tem feito.
Ao longo de todo o Evangelho, Lucas apresentou Jesus sentando à
mesa com pessoas de diferentes classes sociais e religiosas: fez refeição na
casa de um fariseu de nome Simão (cf. 7,36-50); outra vez foi na casa de um dos
chefes dos fariseus (cf. 14,1-6); ao hospedar-se na casa de Zaqueu, pecador
público, também se sentou com ele à mesa e fez refeição (cf. 19,1-10). É
necessário, pois, ter em mente que a mesa-refeição é, ao longo de todo o
Evangelho de Lucas, um espaço-momento de revelação da identidade de Jesus, pois
significa, partilha, fraternidade, companheirismo e acolhida.
Como tinham sido profundamente incomodados pela explicação da
Escritura que Jesus tinha dado, o que os levou a uma revisão de conceitos e de
compreensão da mesma, faltava pouco para seus olhos abrirem-se, ou seja, para
saírem definitivamente da situação de trevas em que se encontravam. E, foi,
portanto, a experiência da partilha que proporcionou a certeza da presença do
ressuscitado no meio deles.
Essa é a resposta que Lucas quis dar às suas comunidades: o
Ressuscitado está presente no dia-a-dia, quando a comunidade caminha, reflete a
Palavra, partilha a mesa e dialoga; são essas as ocasiões propícias para a
comunidade abrir os olhos (v. 31a). Quem segue esses passos, já não necessita
mais de uma visão ou aparição (v. 31b). Finalmente, como último passo de uma
comunidade que faz a experiência do encontro com o Ressuscitado, Lucas
apresenta a missão, tema caro para a sua teologia e que será mais desenvolvido no
livro dos Atos dos Apóstolos, antecipado no Evangelho de hoje pela iniciativa
dos discípulos: “se levantaram e voltaram para Jerusalém” (v. 33). Para Lucas,
Jerusalém não significa chegada, mas o ponto de partida da missão universal.
Somos, portanto, hoje e sempre, interpelados por Lucas a fazer um
esforço constante de reconhecimento do ressuscitado, percebendo sua presença na
comunidade para que jamais falte esperança, amor, partilha, solidariedade e
companheirismo. Para isso, é necessário caminhar, aprofundar no conhecimento da
Escritura e viver, acima de tudo, a partilha. De fato, o critério básico de
reconhecimento da experiência com o Ressuscitado é a partilha do pão; essa, não
pode ser reduzido a um rito ou gesto, mas deve ser a práxis da comunidade.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues
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