Para o domingo de pentecostes, o texto evangélico oferecido pela liturgia é João 20,19-23, o relato da primeira manifestação do Senhor ressuscitado à comunidade dos discípulos, no primeiro dia da semana. Esse texto já foi usado pela liturgia, como parte do Evangelho do segundo domingo da páscoa: Jo 20,19-31.
Ao contrário do que Lucas propõe
em Atos dos Apóstolos, a comunidade joanina fez de tudo para que os seus
referenciais não coincidissem com os esquemas litúrgicos judaicos. De fato, o
envio do Espírito Santo no dia da festa judaica de Pentecostes é um elemento
exclusivamente lucano. Pentecostes era uma das três grandes festas judaicas de
peregrinação (Páscoa, Pentecostes e Festa das Tendas), era celebrada no
quinquagésimo dia após a festa dos ázimos, a páscoa.
Para a comunidade joanina, o
Senhor ressuscitado doa o Espírito, seu dom maior, no dia mesmo da
ressurreição. Embora a Igreja tenha adotado o esquema lucano, a proposta da comunidade
joanina tem mais sentido e responde melhor às necessidades dos discípulos, como
vemos no Evangelho de hoje.
Embora estejamos, de fato, há
cinquenta dias da páscoa, o Evangelho nos convida a retornarmos para aquele
primeiro dia, o da ressurreição. Somente Maria Madalena tivera, até então, o
privilégio de ver o Ressuscitado. Entre os discípulos reina o medo e a dúvida,
como diz o texto: “Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando
fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se
encontravam, Jesus entrou e pondo-se no meio deles disse: a paz esteja
convosco” (v 19).
Certamente, aquele foi um dia de
muita tensão entre os discípulos. Isso se evidencia pelas informações do
primeiro versículo: “reunidos de portas trancadas, por medo dos judeus”. Embora a versão litúrgica do texto use a
expressão “portas fechadas”, o evangelista usa mesmo é “de portas trancadas”,
(em grego tw/n qurw/n kekleisme,nwn – ton
thyron kekleisménon). Isso denota insegurança e medo em demasia. Era uma
comunidade em crise, desmoronando.
Embora em crise e amedrontada,
parece que a comunidade estava decidida a não voltar mais aos esquemas de
sempre: estava reunida “ao anoitecer do primeiro dia da semana”. Segundo o
esquema litúrgico judaico, o anoitecer já não fazia mais parte do mesmo dia. Na
embrionária comunidade cristã é necessário que o dia se prolongue, ou seja, as
trevas não podem prevalecer sobre a luz.
A situação de medo em que os
discípulos se encontravam deve ser vista em um sentido mais amplo. Embora o
evangelista afirme que era por “medo dos judeus” (em grego fo,bon tw/n VIoudai,wn – fóbon ton
iudaion),
não podemos generalizar. Nem todos os judeus transmitiam medo aos discípulos. O
evangelista se refere às autoridades e fariseus que sempre foram hostis a Jesus
e, continuavam sendo também aos discípulos (cf. 9,22; 12,42; 16,16).
Enquanto não fizer uma
experiência de encontro com o Ressuscitado, toda comunidade tende a fechar-se
por medo e falta de convicções. Naquele medo estava a angústia, a desilusão e o
remorso de alguns. O medo é, portanto, a ausência do Senhor. Sem a presença do
Ressuscitado, toda comunidade perece.
Diante dessa situação, eis que “Jesus
entrou e, pôs-se no meio deles”. Aqui aparece a primeira condição para a comunidade
superar a crise: ter Jesus como centro. Com isso, o evangelista reforça o
modelo de comunidade ideal: uma comunidade livre, igualitária, tendo um único
centro: o Cristo Ressuscitado. Trata-se de um claro combate à tendência
hierarquizante na comunidade do discípulo amado. É esse o significado do seu
colocar-se no meio.
Somente tendo o Ressuscitado como
centro, a comunidade pode acolher os seus dons. E o primeiro dom oferecido é a
paz. A tradução litúrgica diz “a paz esteja convosco”, mas o correto é “paz a
vós” (em grego eivrh,nh
u`mi/n – eiréne himin), quer dizer que essa paz é
atemporal, não pode faltar jamais na comunidade. A paz é sinal da vida em
plenitude, o bem-estar do ser humano em todas as suas dimensões, sinal da
autêntica felicidade. Obviamente, se o Ressuscitado não estiver no centro, a comunidade
não poderá alcançar esse estado de vida.
Na continuidade da experiência,
Jesus mostra as mãos e o lado (v. 20a), ou seja, as marcas do sofrimento, da
cruz, garantindo a continuidade entre o Crucificado e o Ressuscitado. Com isso,
Ele diz que a cruz não foi o fim. Assim, leva os discípulos à restituição da
fé, uma vez que o motivo principal da desilusão e decepção deles foi o
escândalo de um messias crucificado. A cruz não foi um acidente nem algo a ser
esquecido pela comunidade; pelo contrário, foi consequência das opções de Jesus,
e as opções da comunidade devem ser as mesmas. Portanto, é necessário que os
discípulos estejam sempre habituados com a cruz.
Finalmente, o medo foi vencido: “os
discípulos se alegraram por verem o Senhor”. Conforme Ele mesmo tinha
garantido, a tristeza dos discípulos foi transformada em alegria (cf. Jo
16,20). De uma situação de medo, a comunidade passa à alegria, como consequência
da experiência com o Ressuscitado. A alegria é uma característica marcante da comunidade que vive
e celebra a presença do Ressuscitado.
A paz é novamente oferecida (v.
21a). Só é possível acolher plenamente os dons pascais com a paz oferecida por
Jesus. É a mesma paz transmitida anteriormente como antídoto ao medo. Aqui,
nessa segunda vez, a paz precede o envio, como encorajamento para a missão: não
basta transformar o medo em alegria, é necessário anunciar e partilhar essa
alegria... a alegria do Evangelho!
Ao contrário de Mateus e Lucas
que determinam as nações e até os confins da terra como destinos da missão (cf.
Mt 28,19; Lc 24,47; At 1,8), em João isso não é determinado: “Como o Pai me
enviou, também eu vos envio”. Jesus simplesmente envia. Sem diminuir a
importância da missão em sua dimensão universal, o importante para o Quarto
Evangelho é a comunidade. É essa a primeira destinatária da missão, porque é
nessa que estão as situações de medo, desconfiança, falta de entusiasmo, por
isso é a primeira a necessitar da paz do Ressuscitado. Sendo portadores da sua
paz, os discípulos são enviados com as mesmas credencias, pois Ele os envia como
o “Pai o enviou” e, portanto, devem fazer as mesmas opções e assumir as
respectivas consequências.
O texto mostra, como sempre, a
conexão entre a prática e as palavras de Jesus: “E depois de ter dito isso,
soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo” (v. 22). Jesus tinha
prometido o Espírito Santo na última ceia (cf. Jo 14,16.26; 15,26). Ao soprar
sobre eles, a promessa é cumprida, o Espírito é comunicado. O evangelista usa o
mesmo verbo empregado no relato da criação do ser humano: “O Senhor modelou o
ser humano com a argila do solo, soprou-lhe nas narinas um sopro de vida, e o
ser humano tornou-se vivente (Gn 2,7). O verbo soprar (em grego evmfu,sa,w – empsáo) significa transmissão
de vida. Assim, podemos dizer que Jesus recria a comunidade e, nessa, a
humanidade inteira.
Finalmente, a comunidade foi
revivificada e habilitada para a missão. Ao receber o Espírito Santo (em grego pneu/ma a[gioj – pneuma háguios), a
comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. É o Espírito quem
mantém a comunidade alinhada ao projeto de Jesus, porque é Ele quem faz a
comunidade sentir, viver e prolongar a presença do Ressuscitado como seu único
centro.
O Espírito Santo garante
responsabilidade à comunidade, jamais poder. Por isso, devemos prestar muita
atenção à afirmação de Jesus: “A quem perdoardes os pecados eles lhes serão
perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v. 23). Por muito
tempo, esse trecho foi usado simplesmente para fundamentar o sacramento da
penitência ou confissão, equivocadamente. Jesus não está dando um poder aos
discípulos, mas uma responsabilidade: reconciliar o mundo, levar a paz e o amor
do ressuscitado a todas as pessoas e de todos os lugares. A comunidade cristã
tem essa grande missão: fazer-se presente em todas as situações para, assim,
tornar presente também o Ressuscitado.
Não se trata, portanto, de poder
para determinar se um pecado pode ou não pode ser perdoado. É a
responsabilidade da obrigatoriedade da presença cristã para que, de fato, o
mundo seja reconciliado com Deus. O Espírito Santo, doado pelo Ressuscitado,
recria e renova a humanidade. A comunidade tem a responsabilidade de fazer esse
Espírito soprar em todas as realidades, para que toda a humanidade seja
recriada e, assim, o pecado seja definitivamente tirado do mundo (cf. Jo 1,29).
João, o batista, apontou para
Jesus como o responsável por fazer o pecado desaparecer do mundo. Agora, é Jesus
quem confia à comunidade essa responsabilidade. Os pecados são perdoados à medida que o amor
de Jesus vai se espalhando pelo mundo, quando seus discípulos se deixam
conduzir pelo Espírito Santo. O que perdoa mesmo é o amor de Jesus; logo, ficam
pecados sem perdão quando os discípulos e discípulas de Jesus deixam de amar
como Ele amou. Em outras palavras, os pecados ficarão retidos quando houver
omissão da comunidade.
É na comunidade que o
Ressuscitado se manifesta, fazendo essa perder o medo e insegurança. Somente
uma comunidade que tem o Ressuscitado como centro, pode viver plenamente
reconciliada, em paz e animada pelo Espírito. São essas as condições que a
alegria do Evangelho seja, de fato, anunciada!
Pe.
Francisco Cornelio F. Rodrigues
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