Iniciamos hoje uma série de
três domingos seguidos em que a liturgia quaresmal adota como texto evangélico
um trecho do Quarto Evangelho, ou seja, do Evangelho segundo João. O texto
proposto para hoje, o primeiro domingo da série e terceiro da quaresma, é Jo
2,13-25, o relato de um episódio célebre, narrado pelos quatro evangelhos, e
equivocadamente intitulado de “purificação do templo”. Esse título não se
sustenta mais, uma vez que o texto deixa muito claro que a intenção de Jesus
não era purificar, mas destruir, abolir completamente aquele templo de pedras,
tendo em vista a edificação de uma morada permanente para Deus na terra: o
próprio ser humano em sua integridade e dignidade recuperadas. Isso é garantido
pelo próprio Jesus com a sua doação plena, passando pela cruz e ressurreição,
tornando a vida em abundância acessível a todo o gênero humano.
Alguns elementos do contexto
são essenciais para uma boa compreensão do texto. Antes de tudo, chama a
atenção o fato de João colocar esse episódio logo no início do seu evangelho,
enquanto os sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) o colocam já na parte final de
seus respectivos relatos (cf. Mt 21,12-16; Mc 11,15-19; Lc 19,45-46). Ora, João
apresenta Jesus participando de três festas de páscoa em Jerusalém, enquanto
nos sinóticos registra-se apenas uma participação, na qual ele fora condenado e
morto. A nível de contexto, o mais importante, porém, é associar o nosso texto
ao episódio que lhe precede no evangelho: as bodas de Caná (cf. 2,1-12). A
transformação da água em vinho representou a passagem da lei para o amor, da
letra para o Espírito; foi a substituição da antiga pela nova aliança.
Assim como não combina “vinho
novo em odres velhos” (cf. Mt 9,14-17; Mc 2,18-22; Lc 5,33-39), também
não combina aliança nova e culto antigo. Por isso, após inaugurar a nova
aliança, Jesus parte para instaurar um novo culto, e isso exigia a destruição
do antigo em sua máxima expressão visível: o famoso templo de Jerusalém. O
episódio narrado pelo evangelho de hoje é, portanto, o complemento das bodas de
Caná. Aquele culto mercantilizado e separado da vida não permitia que se
sentisse o sabor do novo vinho: o amor do Pai manifestado no Filho. É muito
importante perceber isto: logo no início do seu ministério, Jesus propõe duas
grandes mudanças estruturantes: a substituição da lei e do culto.
Como
diz o texto: “Estava próxima a Páscoa dos judeus
e Jesus subiu a Jerusalém” (v. 13). Com a expressão “páscoa dos
judeus” (em grego: pa,sca tw/n VIoudai,wn – páska ton iudaion) o evangelista já faz uma grande
denúncia: aquela páscoa já não pertencia mais a Deus, tinha perdido a sua
sacralidade. Ao longo do seu evangelho, João usa o termo “judeus” para designar
a hierarquia religiosa, e não o povo todo. Com isso ele diz que a classe
dirigente da religião sediada no templo tinha se apoderado do que é de Deus e,
portanto, a comunidade cristã deve manter distância daquela prática religiosa.
A páscoa do Senhor tinha sido desvirtuada, transformada em páscoa dos
sacerdotes, dos vendedores e não era mais de Deus.
Jesus
se enfurece porque no espaço mais sagrado de Israel não encontrou o que deveria
encontrar: “No Templo, encontrou os vendedores de bois, ovelhas e
pombas e os cambistas que estavam aí sentados” (v. 14). O que deveria
ser encontrado no templo era pessoas de coração sincero, adoradores e
adoradoras de Deus. Nesse versículo está o retrato de uma religião degenerada,
transformada em mercado. Os animais mencionados, bois, ovelhas e pombas, eram
comercializados no recinto sagrado para serem oferecidos em sacrifícios pelos
pecados que a própria religião determinava; a variedade de animais, de bois a
pombas, quer dizer que nenhuma classe social escapava, ou seja, ricos e pobres,
aproximando-se do templo, eram praticamente obrigados a compactuar com o
sistema. A presença dos cambistas evidencia o completo desvirtuamento do templo:
o sistema econômico funcionava sob as bênçãos da religião; banco e altar
conviviam em harmonia no mesmo lugar.
A
situação encontrada por Jesus no templo era inaceitável. Por isso, sua atitude
foi bastante drástica: “Fez então um chicote de cordas e expulsou todos
do Templo, junto com as ovelhas e os bois; espalhou as moedas e derrubou as
mesas dos cambistas” (v. 15). Mais que a descrição de um gesto, o
evangelista quer evidenciar a postura e o sentimento de Jesus diante de uma
religião exploradora. A comercialização do sagrado, independente da época,
deixa Jesus enfurecido, inconformado. Com esse gesto ele propõe que toda
estrutura de exploração deve ser desestabilizada, destruída, ainda mais quando
essa se apoia no nome de Deus. Esse gesto se configura também como uma ação
simbólica típica dos profetas do Antigo Testamento. Porém, em relação ao culto,
os profetas ousaram denunciar com palavras (cf. Is 1,10-20; Am 5,21-23),
enquanto Jesus com foi muito além, passando das palavras à ação.
Das
categorias de vendedores, o evangelista faz questão de destacar uma delas: “E disse aos que
vendiam pombas: “Tirai isso daqui! Não façais da casa de meu Pai uma casa de
comércio!” (v. 16). Ora, as pombas eram a matéria do sacrifício
que os pobres ofereciam; por isso, a ordem é severa “tirai isso
daqui!”; como em qualquer sistema injusto, eram os pobres os
mais afetados pela exploração. Pesava ver a casa do Pai transformada em
comércio e, consequentemente, Deus transformado em mercadoria e, mais ainda, os
pobres sendo as verdadeiras vítimas sacrificadas. Por isso, a solução ali não
seria purificar o templo, mas destruí-lo.
A
motivação para Jesus agir dessa forma é muito clara: o zelo pela casa do Pai
(cf. v. 17), como diz o evangelista, e que seus discípulos se recordaram. De
fato, toda a ação de Jesus em seu ministério será motivada pelo incansável zelo
pelas coisas do Pai, sobretudo pelo ser humano que tinha sua dignidade roubada
por um sistema injusto e explorador. O “zelo pela casa” significa muito mais
que uma preocupação cultual; expressa seu amor pelo ser humano, morada
privilegiada de Deus. Ele foi tão “consumido” por esse zelo, a ponto de sido
condenado por isso. De fato, o processo que será movido contra ele pelas
autoridades políticas e religiosas da época, será consequência de suas opções
radicais em favor daquilo que o Pai deseja: amor, justiça, fraternidade,
dignidade, misericórdia e paz para todo o gênero humano.
Diante
do que viam, e inconformados, “os judeus perguntaram a Jesus: “Que sinal nos
mostras para agir assim?” (v.18). Aqui novamente a expressão “os
judeus” significa os dirigentes, os quais não aceitavam ser questionados. Pedem
sinais, ou seja, credenciais que autorizem Jesus a agir daquela maneira. Jesus
poderia reivindicar a seu favor o pensamento de tantos profetas que ao longo da
história já tinham identificado aquele culto como obstáculo para o encontro com
o Pai (cf. Is 1,10-20, etc); mas, prefere falar do futuro, das realidades novas
que estava para inaugurar: a supressão definitiva daquele falso culto, o qual
estava com os dias contados, e sua ressurreição como instauração definitivo do
novo culto verdadeiro e sincero: “Destruí este Templo, e em três dias
eu o levantarei” (v. 19).
O
culto autêntico, compatível com a nova aliança celebrada no amor, já não
necessita de templo de pedras, mas apenas de corações sinceros que busquem e
adorem a Deus em espírito e em verdade (cf. 4,23). Aquele templo de pedras,
imponente e faraônico, ao invés de aproximar, distanciava as pessoas de Deus;
por isso, deveria ser destruído. Enquanto isso, um templo novo e definitivo
estava para ser inaugurado, graças à ressurreição (vv. 21-22), como vitória
definitiva da vida sobre a morte. A vida em plenitude, o culto por excelência
agradável a Deus, se tornaria acessível a todos, sem mais a necessidade de
sangue de animais e ofertas, mas a partir do coração de cada um.
Os
sinais e gestos proféticos de Jesus chamavam a atenção, obviamente, afinal
muitos em Israel esperavam por um messias corajoso para reformar a religião e a
vida social do país. Por isso, muitos “creram nele” (v. 23); porém, não basta
crer, é necessário viver à sua maneira, e como Jesus conhecia o ser humano por
dentro, percebia quando havia conversão verdadeira ou não (vv. 24-25). Pelas
exigências radicais para o seguimento de Jesus, o cristianismo não comporta uma
adesão superficial. Por isso, a comunidade não deve se entusiasmar com
multidões: “muitos creram no seu nome, mas Jesus nãos lhes dava
crédito, pois ele conhecia a todos” (vv. 23-24). A religião da
superficialidade era aquela que Jesus quis abolir.
A
comunidade joanina compreendeu a novidade de Jesus porque soube associar as
palavras aos fatos, os sinais às Escrituras, lendo os acontecimentos do
dia-a-dia à luz do que Jesus disse (vv. 21-22), tornando-se modelo para as
comunidades de todos os tempos. Como cristãos de hoje, somos chamados a olhar o
exemplo daquela comunidade em busca do devido equilíbrio entre a liturgia e a
vida, de modo que reine o amor e, no amor entre os irmãos, seja revelado o
corpo do Ressuscitado e o rosto do Pai.
Roma, 04/03/2018, Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues
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