A liturgia deste quarto domingo
da quaresma nos oferece mais um texto do Evangelho segundo João. Após
contemplar o gesto profético de Jesus denunciando o templo transformado em
comércio, no domingo passado (cf. Jo 2,13-25), o texto proposto para hoje faz
parte dos desdobramentos daquele acontecimento: Jo 3,14-21; é a parte final do
episódio conhecido como o “diálogo com Nicodemos” (cf. Jo 3,1-21).
A enérgica denúncia de Jesus
contra a corrupção da elite religiosa de Jerusalém deve ter gerado diversos
questionamentos a respeito da sua pessoa. Muitos, certamente, o condenaram
imediatamente, outros refletiram a respeito do acontecido. Não resta dúvidas de
que entre os fariseus e mestres da época, também havia aqueles que sonhavam com
uma religião mais autêntica e menos comercial. Certamente, Nicodemos era um
destes; ao invés de condenar, preferiu ir ao encontro de Jesus e escutá-lo,
motivado por muitos questionamentos.
Embora o episódio seja chamado
de “diálogo”, o que se lê está mais para monólogo, pois o evangelista concede
totalmente a palavra a Jesus, a ponto de Nicodemos pouco falar. Como o texto
escolhido pela liturgia é apenas a parte final do episódio, nele não há
palavras de Nicodemos, mas apenas de Jesus; por isso, é necessário recordar
alguns aspectos importantes do que o antecede.
Nicodemos era um homem notável
entre os judeus, um fariseu (cf. 3,1), estudioso e bom conhecedor da doutrina
judaica, sobretudo da lei. Procurou Jesus na “calada da noite” (cf. 3,2). Sua
curiosidade ao falar com Jesus revela sinceridade, respeito e desejo de
conhecê-lo melhor. Era alguém que desejava uma boa reforma naquela estéril
religião. Mesmo assim não estava pronto para aderir ao projeto de Jesus, pelo menos
de imediato. Porém, se distinguia da maioria dos fariseus com quem Jesus se
confrontou ao longo do evangelho.
Por precaução e medo de ser
repreendido pelos seus colegas de doutrina, Nicodemos não quis ser visto com
Jesus, por isso o procurou à noite. Afinal, Jesus tinha, há pouco tempo,
desmascarado a religião judaica, ao denunciar o comércio e a hipocrisia
praticados na casa que deveria ser do seu Pai (cf. 2,13-22). As primeiras
palavras de Nicodemos a Jesus foram de reconhecimento: “Rabi, sabemos que
vens da parte de Deus como mestre, pois ninguém pode fazer os sinais que fazes,
se Deus não estiver com ele” (3,2).
As poucas palavras de Nicodemos
abriram caminho para uma longa catequese de Jesus a respeito da sua identidade,
sua relação com o Pai e sobre como participar da vida em plenitude que Ele veio
comunicar. O texto escolhido pela liturgia começa com um dado escriturístico: “Do
mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o
Filho do Homem seja levantado” (v. 14).
Sabendo que Nicodemos conhecia
bem a Escritura, o evangelista faz Jesus citar explicitamente uma passagem do
livro dos Números (cf. Nm 21,4-9), para ilustrar o movimento de descida e
subida ao céu praticado por Ele mesmo (cf. Jo 3,13) e, ao mesmo tempo, para
ajudar seu interlocutor a compreender a forma contraditória como Jesus será
elevado: através da cruz, cujo mistério é aqui antecipado. A citação do livro
dos Números é, portanto, apenas ilustrativa. Na verdade, é o próprio
evangelista insistindo com sua comunidade para que aceite a cruz com suas
consequências, pois ela é necessária para a vivência plena do amor de Deus em
seu meio.
Ser levantado se torna
necessidade para Jesus, pois o seu projeto de comunicar vida em plenitude à
humanidade é irrenunciável. Ele não escolheu a cruz; escolheu ser fiel ao Pai,
por amor, até as últimas consequências, e isso implicou passar pela cruz. Por
isso, “ser levantado” se tornou necessário “Para que todos os que nele
crerem tenham a vida eterna” (v. 15). O importante é a doação do dom da
vida em plenitude, por isso, eterna. Essa é a primeira vez que é mencionada a
“vida eterna” (em grego: zwh. aivw,nioj – zoé aionios) no Quarto Evangelho. Crer
nele não significa expressar uma fórmula, mas deixar-se guiar pelo seu ensinamento
e assumir a sua forma de vida.
Jesus apresenta Deus como
aquele que ama incondicionalmente e, ao mesmo tempo, se auto apresenta como a
prova desse amor incondicional de Deus, já que é, Ele mesmo, o Filho doado: “Deus
amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o
que nele crer, mas tenha a vida eterna” (v. 16). O mundo é o destinatário
do amor de Deus. Esse mundo é a humanidade inteira. Ao apresentar essa
novidade, Jesus estava destruindo um dos principais pilares de sustentação da
ortodoxa religião judaica: o privilégio da eleição exclusiva de Israel como
povo de Deus e destinatário único de suas promessas.
Com Jesus, a pertença a Deus
deixa de ser privilégio de um povo e passa a ser um direito da humanidade.
Jesus praticamente inverte o primeiro mandamento: foi Deus quem amou a
humanidade sobre todas as coisas! A afirmação “Deus amou o mundo” é única em toda a Bíblia. É uma exclusividade do
Quarto Evangelho. A prova maior desse amor da parte de Deus é o seu dom: o Filho
unigênito doado ao mundo para que, ao ser acolhido, se estabeleça na humanidade
a vida eterna.
É importante recordar e jamais
esquecer que “Deus deu o seu Filho” para a humanidade. O mundo inteiro é
convidado a receber esse dom do Pai. Quem o acolhe ou crê, recebe a vida
eterna. Essa, a vida eterna, não significa
uma vida no além. “Eterna” aqui não é a duração, mas é a qualidade da
vida de quem acolhe Jesus e seu evangelho. A “vida eterna” não é um
prêmio que os bons receberão no futuro, como pensavam os fariseus e ainda
pensam muitos cristãos. A vida se torna eterna quando se faz opção por Jesus e
seu projeto. Essa vida é eterna porque é tão plena, a ponto de nem a morte
poder destruí-la. Ela começa aqui na terra. À medida que o ser humano encontra
sentido para a sua existência, ele eterniza a sua vida. E o sentido pleno da
vida só pode ser encontrado quando se consegue viver bem como imagem e
semelhança do Criador.
O versículo seguinte reforça o
anterior: “De fato, Deus não enviou o seu Filho para condenar o mundo, mas
para que o mundo seja salvo por ele” (v. 17). Se o anterior (v. 16) declarava
o que o Filho de Deus veio fazer entre nós, esse segundo diz o que não veio
fazer: não veio julgar (condenar)! Aqui é necessário fazer uma pequena
observação a respeito da tradução do texto litúrgico: ao invés do verbo
“condenar”, é mais apropriado usar a expressão “dar sentença” ou o verbo
“julgar”, conforme a língua original do texto, uma vez que
a condenação seria o efeito do julgamento. Portanto, Deus não enviou seu Filho
nem mesmo para julgar. Só condena quem antes julga. Como Deus só sabe amar, não
julga e, portanto, não condena ninguém.
Mais
uma vez Jesus contradiz a ortodoxia judaica, ao excluir a ideia de Deus como um
juiz. Obviamente, quem esperava um messias juiz que viesse ao mundo para
separar os bons dos maus, os puros dos impuros e, assim, salvar os primeiros e
condenar os segundos, não poderia acreditar no Deus que Jesus veio revelar: um
Pai louco de amor, apaixonado pela humanidade, a ponto de dar o próprio Filho.
Quem julga e condena são os próprios seres humanos com suas convicções e
crenças falsamente fundadas em nome de Deus. O Deus de Jesus nem a juízo leva.
Enquanto os homens julgam, Deus apenas justifica, ou seja, apenas salva, porque
de quem é amor só pode sair amor.
O mesmo Deus que doou
livremente o seu Filho, deu também liberdade à humanidade, de modo que essa
pode acolher ou não o seu Filho, Jesus. A acolhida se dá pela fé, uma adesão
profunda capaz de deixar-se conduzir pelo seu amor. Por isso, Jesus disse: “Quem nele crê não
é condenado, mas quem não crê já está condenado, porque não acreditou no nome
do Filho unigênito” (v. 18). O ser humano que rejeita a oferta de vida em
plenitude que é Jesus, fica privado da qualidade de eternidade em sua vida e,
portanto, estará condenado. Isso não depende de um juízo divino, é escolha do
ser humano. Deixar de acreditar no nome do Filho unigênito é se recusar a fazer
comunhão com ele.
A parte mais importante do
texto e talvez até de todo o Evangelho segundo João está nos versículos 16-18.
Os versículo seguintes (vv. 19-21) apenas ilustram e constatam uma triste
realidade: a tendência da humanidade em preferir as trevas à luz, retomando o
que o evangelista já tinha anunciado no prólogo (cf. Jo 1,9-10). Quem rejeitou
a luz foi a própria religião; foram as pessoas religiosas que mais se sentiram
sufocadas pela luz verdadeira que é Jesus. A elite religiosa preferiu as
trevas, odiou a luz por ter ódio da verdade.
Não obstante a rejeição, a luz
como sinônimo de vida em plenitude não deixa de ser ofertada. Aceitar o dom do
Pai, Jesus, não significa abraçar uma doutrina, repeti-la e até impô-la, como
muito se fez ao longo da história, e ainda se faz até hoje. A oferta que Deus
fez e faz é livre, como livre deve ser a resposta. A imposição é falta de
segurança e de consistência no anúncio. O Pai simplesmente enviou, doou.... Sua
proposta é sempre positiva. Ele não julga, nem condena.
O Evangelho não diz se Jesus
conseguiu convencer Nicodemos. Provavelmente sim, pois ele aparecerá em mais
dois episódios, sempre tomando partido por Jesus: defendendo-o da ira dos
fariseus quando tinha se apresentado como fonte de água viva (cf. 7,50) e
ajudando no seu sepultamento (cf. 19,39). Certamente, o diálogo com Jesus lhe
comoveu. Mesmo que não tenda aderido completamente a Jesus, passou a ver com
outros olhos aquela rígida doutrina judaica.
Assim como serviu para
Nicodemos, que a face do Pai louco de amor que Jesus apresenta hoje sirva para,
pelo menos, compararmos se o Deus em quem acreditamos parece com o Deus de
Jesus ou se é apenas aquele das religiões: juiz e soberano, aplicador de
castigos ou prêmios. Aceitar que o Deus de Jesus é somente amor pode ser o
maior fruto de conversão de uma quaresma!
ROMA, 10/03/2018, Pe.
Francisco Cornelio F. Rodrigues
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