Neste décimo sétimo domingo do
tempo comum, interrompemos, mais uma vez, a leitura do Evangelho segundo
Marcos, para uma sequência de cinco domingos nos quais leremos o capítulo sexto
do Evangelho segundo João. Para hoje, especificamente, a liturgia contempla os
primeiros quinze versículos: Jo 6,1-15, relato do episódio chamado popularmente
de “multiplicação dos pães”, embora esse não seja o título mais apropriado.
Considerando a extensão do texto, não comentaremos cada versículo, mas
procuraremos colher a mensagem geral de todo o texto, embora seja necessário
dar maior atenção a alguns versículos específicos.
Antes de contextualizar o texto
no conjunto do Quarto Evangelho, é importante recordar que, no domingo passado,
ao ler e refletir o texto do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 6,30-34), destacava-se
a reação e o sentimento de Jesus diante da multidão que o seguia: “teve
compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor. Começou, pois, a ensinar-lhes
muitas coisas” (Mc 6,34). Como não bastava o ensinamento, a esse seguiu-se
o gesto da partilha dos pães (cf. Mc 6,35-42), como resposta à situação de
abandono e sofrimento vividos pela multidão. Jesus sabia muito bem associar
ensinamento e práxis, como deve fazer a comunidade cristã em todos os tempos.
Os sentimentos de Jesus eram acompanhados de respostas concretas aos sofrimentos
das pessoas.
O episódio da “condivisão dos
pães”, expressão mais apropriada que multiplicação, é o único milagre ou sinal
de Jesus narrado pelos quatro Evangelhos, com seis versões (Mateus e Marcos
narram duas vezes), sendo que a versão joanina é a mais rica em detalhes e,
consequentemente, em teologia. Além da riqueza ímpar do relato, João usa o
milagre como introdução para uma profunda catequese eucarística, através do
longo discurso de Jesus na sinagoga de Cafarnaum, se auto apresentando como pão
da vida e alimento perene para a humanidade, como veremos nos próximos domingos.
No conjunto dos sete sinais (ou milagres) operados por Jesus no Evangelho
segundo João, esse é o quarto, assumindo uma centralidade tanto literária
quanto teológica.
O texto diz que “Jesus foi
para o outro lado do mar da Galileia, também chamado de Tiberíades” (v. 1).
Embora fosse apenas um lago, o evangelista se refere como mar para chamar a
atenção do leitor e evocar uma cena de libertação. De fato, passar de uma
margem a outra do mar é sempre uma recordação do Êxodo, evento fundante da
história de Israel, embora seus frutos já não fossem mais experimentados, ou
seja, o povo não vivia mais conforme a liberdade sonhada por Deus; tinha
voltado a ser escravo do sistema dominante religioso e político e de suas
próprias concepções equivocadas de Deus. Por isso, a mensagem de Jesus é um
convite à libertação porque o seu povo tinha se tornado escravo novamente.
O destino do novo êxodo não é
uma terra distante nem uma vida no além: é o Reino de Deus, um sistema baseado
na partilha, solidariedade, amor, justiça e dignidade. Para ingressar nesse,
não são necessárias longas caminhadas, mas somente a conversão, ou seja, a mudança
de mentalidade. Mesmo na posse da terra, Israel deixou de ser livre ao
reproduzir o sistema do antigo opressor. Por isso, o que Jesus propõe é uma
mudança de mentalidade e consciência, ou seja, uma mudança interior que, no
entanto, conduz a novas práticas, como a partilha, foco central do Evangelho de
hoje. Porém, reduzir esse trecho do Quarto Evangelho a uma mera comparação com
o antigo êxodo é um grande reducionismo.
Jesus chamava a atenção das
pessoas e atraía a multidão em seu seguimento “porque viam os sinais que ele
operava a favor dos doentes” (v. 2). Ao mencionar os doentes, o evangelista
enfatiza a prática de Jesus em favor dos mais necessitados, pobres e
vulneráveis. Os doentes representam as categorias de todas as pessoas
excluídas, sofredoras e abandonadas, de quem Jesus sentiu compaixão (cf. Mc
6,34). As multidões se admiram com Jesus, por isso o seguem. Ora, era difícil
alguém se preocupar com os marginalizados da sociedade, principalmente os
doentes; naquela época, a doença era considerada como castigo pelos pecados, o
que tornava o doente uma pessoa desprezível. Como Jesus priorizava as pessoas
que o sistema descartava, muitos o viam como sinal de esperança e de mudança,
por isso, muita gente o seguia.
As multidões seguiam Jesus
enquanto “estava próxima a Páscoa, a festa dos judeus” (v. 4). Com isso,
o evangelista enfatiza Jesus como único sinal autêntico de libertação e
alternativa para aquele povo abandonado como ovelha sem pastor. A páscoa, como “festa
dos judeus”, tinha sido transformada em instrumento de exploração, dominação e manutenção
da ordem vigente. Mesmo sutilmente, o evangelista apresenta uma grande ironia:
aquela festa celebrada em Jerusalém já não era Páscoa de Iahweh, mas “festa dos
judeus” (em grego: h` e`orth. tw/n VIoudai,wn – hé
heorté ton Iudaion). Quando João usa o termo judeus, não se refere a todo o
povo, mas às classes e grupos dirigentes, principalmente aos sacerdotes do
templo que, de fato, tinham desfigurado o rosto verdadeiro de Deus. Portanto,
Jesus é a alternativa de Deus à religião opressora do templo, e os primeiros a
perceber isso são as pessoas mais simples e humildes, os pobres e excluídos que
o seguem, quem tinha sido abandonado pelos maus pastores de Israel.
A multidão que segue Jesus é um
povo com necessidades concretas que não podem ser ignoradas. A primeira
necessidade é o alimento. Jesus se sente responsável, junto com seus
discípulos, e transmite essa responsabilidade para a sua comunidade ao longo da
história. Aquele seria um bom momento para medir o aprendizado e a maturidade dos
seus discípulos, por isso, provocou Filipe, mesmo já sabendo o que iria fazer: “Onde
vamos comprar pão para que eles possam comer?” (v. 5). A resposta de Filipe
é baseada em cálculos. Ele simplesmente apela para o campo da economia: “Nem
duzentas moedas de prata bastariam para dar um pedaço de pão a cada um” (v.
8). A tentação de Filipe é de reproduzir na comunidade do Reino as relações do
sistema: compra e venda, enquanto a dinâmica da comunidade deve ser outra: a
partilha.
André, outro discípulo, parece
começar a compreender a lógica de Jesus, embora ainda não tenha muita
convicção: “Está aqui um menino com cinco pães de cevada e dois peixes. Mas
o que é isso para tanta gente?” (v. 9). Enquanto Filipe pensou em
solucionar o problema com base na economia, André olhou para a própria comunidade,
percebendo o que já tinha, mesmo reconhecendo não ser suficiente. Aqui está a
transição para a proposta de Jesus, a lógica do Reino: a solução dos problemas
da comunidade deve ser buscada em seu interior.
Os cristãos não podem esperar
que o mundo ofereça condições para o Reino de Deus se estabelecer, mas são eles
mesmos quem tem que começar a viver os valores do Reino, mesmo em condições
desfavoráveis. Embora considerando insuficiente, a observação de André é muito
importante: “um menino tem cinco pães de cevada e dois peixes”. Um
menino era uma figura muito pouco representativa na época, sem nenhum valor
reconhecido, uma vez que não produzia. Para enfatizar ainda mais esse aspecto,
o evangelista emprega o diminutivo: um menininho (em grego: παιδαριον – paidárion). O pão de cevada era o alimento dos
pobres, enquanto os ricos comiam o pão de trigo. Os dois peixes servem de
complemento numérico para chegar a sete, número que evoca perfeição e
totalidade. Mais tarde, a comunidade cristã adotou também o peixe como símbolo
eucarístico.
O menininho com cinco pães e
dois peixes é a imagem do discípulo e da comunidade cristã. Antes de tudo, para
entrar na lógica do Reino é necessário fazer-se e reconhecer-se pequeno. Reino
de Deus e grandeza são incompatíveis. Não importa a quantidade daquilo que se
tem, mas a disposição de colocar a serviço do próximo. As soluções para os
problemas da comunidade devem vir de dentro. Essa é saciada quando o pouco que
tem é colocado em comum, quando cada um considera aquilo que tem como dom de
Deus e, por isso, destina à partilha. O menininho não mostrou resistências,
entregou o que tinha e “Jesus tomou os pães, deu graças e distribuiu-os aos
que estavam sentados, tanto quanto queriam. E fez o mesmo com os peixes” (v.
11). André lamentou que somente cinco pães e dois peixes não seriam
suficientes. Jesus foi mais adiante: “tomou os pães e deu graças”, ou seja,
agradeceu! O evangelista usa aqui o verbo grego ευχαριστεω (eukaristêo), do qual
provém a palavra Eucaristia, cujo significado é agradecimento/rendimento de
graças. Ao invés de lamentar-se, Jesus agradeceu pelo pouco que tinha e, daí,
veio a abundância.
Muitos pormenores e dúvidas ficam,
certamente, nas entrelinhas do texto, o que não ofusca o grande ensinamento de
Jesus para a sua comunidade. André observou que um menininho estava com cinco
pães e dois peixes, mas não diz que era somente aquele. O importante é que
alguém teve de coragem começar a colocar à disposição dos outros o pouco que
tinha, e Jesus agradeceu por aquilo. No final, todos ficaram satisfeitos. A
solução veio de dentro da comunidade. A abundância é gerada quando ninguém
considera somente seu o que possui, mas oferece, como dom, às necessidades do
próximo. E a primeira necessidade do ser humano é o alimento, o pão de cada
dia. Tendo ficado todos satisfeitos, percebendo o que ainda tinha sobrado, “Jesus
disse aos discípulos: “Recolhei os pedaços que sobraram, para que nada se
perca!” Recolheram os pedações e encheram doze cestos com as sobras dos cinco
pães, deixadas pelos que haviam comido” (v. 12-13). O número doze simboliza
a totalidade do povo, a nação inteira de Israel, reconfigurada na comunidade
cristã pelos doze apóstolos. A quantidade recolhida, doze cestos, significa,
portanto, que quando a partilha é praticada, tem alimento para todos e todas.
Essa não deve ser um ato isolado, mas uma prática constante na comunidade.
Assim como todos os sinais
cumpridos por Jesus no Evangelho segundo João visam a manifestação da glória de
Deus e o despertar da fé no Verbo Encarnado, também o sinal da condivisão dos
pães despertou reação e reconhecimento: “Este é verdadeiramente o Profeta,
aquele que deve vir ao mundo” (v. 14). Porém, essa é uma imagem
insuficiente para descrever Jesus. Vê-lo como simples profeta é colocá-lo em
continuidade com a antiga aliança e, portanto, negar a insuficiência e
decadência daquela aliança que ele denuncia com os sinais cumpridos. Inclusive,
a continuidade dos sinais ao longo do livro, mostra a necessidade de Jesus continuar
revelando sua novidade messiânica e a superação da antiga aliança.
A prova definitiva da incompreensão
do povo em relação a Jesus está no último versículo: “Mas, quando notou que
estavam querendo levá-lo para proclamá-lo rei, Jesus retirou-se de novo,
sozinho, para o monte” (v. 15). Enquanto Jesus queria ver o povo livre e emancipado,
ensinando inclusive a encontrar a solução para os problemas dentro da própria
comunidade, o povo faz o contrário: ao invés de viver a liberdade, quer um
soberano para si, alguém que o domine e governe. Para o problema da fome, por
exemplo, Jesus mostrou que a comunidade tem capacidade de superar quando vive o
espírito da partilha e da solidariedade. A proclamação de Jesus como rei seria
uma deformação do seu messianismo, o que persistirá por muito tempo na
comunidade, inclusive entre os discípulos, como mostrará João na última ceia,
com a resistência de Pedro à atitude serviçal de Jesus no lava-pés (cf. Jo 13,6ss).
O Evangelho de hoje mostra que
a comunidade deve ter prioridades irrenunciáveis, como encontrar solução para o
problema da fome, por exemplo. O exemplo do menininho, colocando à disposição
da comunidade os cinco pães e os dois peixes, e a atitude de Jesus rendendo
graças pelo pouco que tinha, oferecem muitas luzes para os cristãos de todos os
tempos. A comunidade não pode esperar ter condições necessárias para viver o
programa do Reino, mas é ela mesma que tem que criar tais condições,
encontrando dentro de si mesma a solução para os seus problemas, vencendo o
egoísmo, a inveja, o orgulho e o desejo de poder. É claro que o Evangelho não
tem respostas apenas para as necessidades materiais das pessoas, como veremos
nos próximos domingos. Mas, no texto específico de hoje, a ênfase do
evangelista é a necessidade de superar a fome de pão das pessoas necessitadas,
ou seja, das almas de carne e osso!
Pe. Francisco Cornelio Freire
Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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