terça-feira, dezembro 31, 2024

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE SANTA MARIA, MÃE DE DEUS – LUCAS 2,16-21



Na conclusão da oitava de Natal e o início do novo ano civil, a Igreja celebra a solenidade da Santa Mãe de Deus, Maria, recordando a afirmação do Concílio de Éfeso (ano 431) que a definiu como “Theotókos”, cujo significado literal é “aquela que gerou Deus”. O objetivo da Igreja com esta festa e com a definição conciliar, no entanto, é afirmar a identidade de Jesus como verdadeiro Deus e verdadeiro homem, e não necessariamente promover o culto e a devoção a Maria. Na verdade, de todas as festas marianas, essa é a que melhor exprime as motivações e o objeto do culto mariano, porque recorda que «a Virgem Maria é mãe de Deus porque pariu, segundo a carne, o Verbo de Deus» (afirmação do Concílio de Éfeso, ano 431). O sentido da festa, portanto, volta-se para o Cristo, recordando a participação decisiva de Maria na sua vinda ao mundo. Trata-se da festa mariana mais antiga, sendo celebrada desde o século VI. Ao longo do tempo, passou por diversas modificações, inclusive no título e na data. Por sinal, o título e a data atuais já são frutos da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II. O último título anterior ao Vaticano II era “festa da circuncisão” de Jesus, fundamentada na tradição judaica de circuncidar as crianças do sexo masculino no oitavo dia após o nascimento, como aconteceu, sem dúvidas, com Jesus. No ano de 1968, o então papa Paulo VI proclamou este dia – primeiro de janeiro – também como o Dia Mundial da Paz, convidando a inteira humanidade a empenhar-se na construção da paz e da fraternidade universal. Isso torna esta celebração ainda mais significativa.

O evangelho lido na liturgia deste dia é a continuação quase imediata daquele da noite de Natal, sendo separado por apenas um versículo: Lc 2,15. Enquanto na noite de Natal o evangelho foi Lc 2,1-14, na solenidade de hoje o texto proposto é Lc 2,16-21. Inclusive, é o mesmo texto para todos os anos. Por isso, consideramos que o primeiro passo para uma boa compreensão do evangelho de hoje é recordar o versículo que o antecede: «Quando os anjos os deixaram e foram para o céu, os pastores disseram uns aos outros: Vamos já a Belém para ver o que aconteceu e que o Senhor nos deu a conhecer» (Lc 1,15). Ora, os pastores ficaram maravilhados com a Boa Notícia que o anjo lhes tinha anunciado: um Salvador nasceu para eles, naquela noite (Lc 2,10). E, ao anúncio do anjo, seguiu-se o canto da multidão da corte celeste que desceu à terra, para junto dos pastores, proclamando a glória de Deus nos céus e a correspondente paz na terra entre a humanidade (2,13-14). Portanto, era inevitável a surpresa e a perplexidade nos pobres pastores, assim como a dúvida, afinal, conforme os parâmetros religiosos da época, eles seriam os últimos a receber uma mensagem do céu, pois pertenciam à categoria das pessoas mais simples e marginalizadas, e eram considerados impuros, compondo o último estrato social e religioso da época.

Uma das grandes novidades de Jesus, desde o nascimento, foi contradizer o que a sua religião tinha afirmado sobre o Messias e sobre Deus. Ora, a religião oficial tinha classificado as pessoas como puras e impuras, justas e pecadoras, imaginando que a vinda do Messias seria marcada pelo extermínio das classificadas como impuras e pecadoras, como eram considerados os pastores na época. Ao invés de seguir as determinações da religião, Jesus preferiu, desde o início, exatamente as categorias excluídas, contradizendo e frustrando muitas expectativas. É nessa perspectiva que podemos e devemos compreender a reação dos pastores ao anúncio do nascimento de Jesus. A eles, a religião tinha ensinado que estava fora de cogitação a salvação, pois eram gente da pior qualidade e que não observava a Lei. De repente, eles recebem um anúncio de salvação e sentem-se amados por Deus. Além, disso, a religião de Israel tinha alimentado as expectativas pela vinda de um messias poderoso, guerreiro e glorioso, e o que veio foi uma criança pobre, nascida em condições sub-humanas. Perplexos diante de tudo isso, eles decidiram ir a Belém para conferir e tirar todas as dúvidas (Lc 2,15).

Diante de uma novidade sem precedentes, é impossível esperar, por isso diz o texto que «Os pastores foram às pressas a Belém e encontraram Maria, José, e o recém-nascido deitado na manjedoura» (v. 16). Merece destaque a expressão adverbial “às pressas” (em grego: σπεύσαντες – speussantes), a qual possui grande relevância no vocabulário da teologia lucana: encontra-se logo após o anúncio do anjo a Maria, introduzindo a visita a Isabel (Lc 1,39), e na ordem de Jesus a Zaqueu, para que desça rapidamente da árvore, para acolher a salvação em sua casa (Lc 19,5-6). Isso quer dizer que, para Lucas, a salvação é uma Boa Notícia que não pode ser adiada, mas deve ser experimentada sem demora, com urgência. Tanto quem recebe quanto quem proclama o anúncio da salvação devem ter pressa. No caso dos pastores, mais ainda: como passaram a vida inteira às margens, sofrendo o desprezo e a exclusão, não poderiam mais perder tempo. Para eles e todas as categorias de pessoas marginalizadas, a inclusão tem de ser agora, hoje. Por isso, foram às pressas a Belém. Além da necessidade que sentiam, tendo em vista o histórico de marginalização que sofriam, a pressa dos pastores é também uma demonstração de fé e obediência a Deus. E, assim, o evangelista evidencia ainda mais as diferenças na maneira de acolher a mensagem de Deus entre as pessoas simples e os representantes da religião oficial: Maria e os pastores agiram com pressa diante do anúncio, enquanto Zacarias, um sacerdote do templo, exitou em acreditar. Com isso, Lucas vai, desde o início, delineando os traços de quem vai se abrir à mensagem de Jesus, durante o seu ministério.

Se os pastores ficaram surpresos com o anúncio do anjo, talvez tenham ficado mais ainda com o que viram em Belém: «encontraram Maria, José, e o recém-nascido deitado na manjedoura» (v. 16b). Na verdade, encontraram tudo conforme lhes tinha sido anunciado (Lc 2,12), mas é impossível que não tenham se surpreendido, tamanha a reviravolta na história. Ouviram que tinha nascido para eles um Salvador, e encontram na manjedoura, junto aos pais, uma pequena criança, provavelmente em meio às moscas e esterco de gado, sem nenhum sinal distintivo que revelasse glória ou poder, atributos próprios de um salvador. Porém, o que encontraram confirmava o que lhes tinha sido anunciado (Lc 2,12). Apesar da inevitável surpresa, veio a consciência da novidade e da nova história que estava começando. Ora, se tivesse nascido um Salvador conforme as expectativas da religião oficial, os pastores não conseguiriam sequer chegar perto, e seriam os últimos a saber. Aos poucos, foram compreendendo que um novo tempo com uma nova ordem estava surgindo, quem estava às margens estava passando para o centro, como eles. E essa mudança só se tornava possível porque o Salvador veio identificado com eles. Nesta cena, Lucas delineia o primeiro grande esboço de uma Igreja pobre e para os pobres!

Na sequência, o evangelista diz que os pastores «tendo-o visto, contaram o que lhes fora dito sobre o menino» (v. 17), tornando-se assim, também eles, mensageiros de salvação, portadores de Boa Notícia. Contaram que o anjo lhes aparecera anunciando o nascimento do Salvador, e que depois “uma multidão da corte celeste” baixou perto deles glorificando a Deus e anunciando a paz em toda a humanidade (Lc 2,10-14). Contaram coisas maravilhosas, de modo que quem os escutava também se maravilhava, ou seja, ficavam perplexos, admirados, pois, até então, não se tinha notícia de um Deus que fizesse conta de gente pouco importante e sem currículo, como eram eles, conforme os padrões da sociedade e da religião da época. Com isso, o evangelista ensina que os pastores foram os primeiros evangelizados com o nascimento de Jesus e se tornaram os primeiros evangelizadores de tão grande acontecimento. Assim, Lucas faz deles modelos de anunciadores, prefigurando neles a missão dos apóstolos e dos discípulos e discípulas de todos os tempos. De fato, mais adiante, no auge da missão e sofrendo as primeiras perseguições, os apóstolos vão confirmar a fidelidade seguindo o exemplo dos pastores: «não podemos deixar de falar sobre o que vimos e ouvimos» (At 4,20). Não calar diante do que se vê e se ouve é exigência básica da evangelização. E os pastores foram os primeiros a fazer isso.

De todas as pessoas que ouviram o relato dos pastores e ficaram maravilhadas, o texto destaca a reação de Maria como mais profunda, com menos surpresa e mais reflexão. Afinal de contas, ela já estava habituada às maravilhas de Deus, pois foi a primeira destinatária do anúncio salvífico através do anjo Gabriel (Lc 1,26-38) e tinha assistido à exaltação de Isabel quando a visitou (Lc 1,39-52). No entanto, ela não deixará de maravilhar-se, pois a trajetória de Jesus lhe trará outras surpresas, como no episódio da apresentação no templo, quando ela e José ficarão admirados com o que se dizia do menino (Lc 2,33). A reação de Maria é diferenciada, pois nela o evangelista está construindo a imagem da discípula modelo: «guardava todos esses fatos e meditava sobre eles em seu coração» (v. 19). Se na atitude dos pastores já havia esboço do modelo de discípulo e discípula, esse modelo se aperfeiçoa em Maria: não basta contar o que se vê e se escuta, mas é necessário também meditar, assimilar bem, interiorizar. O verbo grego empregado pelo evangelista, traduzido pelo lecionário como “meditar” (συμβαλλω – symbálô), possui um significado muito mais profundo: quer dizer “colocar junto”, “unir”, “reunir”, “interpretar”. E era isso que Maria fazia: percebia os diversos sinais e acontecimentos do agir de Deus e juntava-os, fazendo sua própria interpretação, da qual a melhor demonstração está no canto do Magnificat: uma síntese da história da salvação, com ênfase na opção de Deus pelos pobres e humildes de sempre.

Certamente, a meditação de Maria consistia em relacionar os acontecimentos do presente com as ações libertadoras de Deus ao longo da história, como ela mesma já expressara no Magnificat (Lc 1,46-55) e experimentara em sua vida. É exatamente aqui que ela se sobressai sobre os demais ouvintes, porque ela guardava, ou seja, escutava com atenção tudo o que os pastores tinham dito, e juntava com o que já sabia: as palavras do anjo Gabriel e as declarações de Isabel, e o histórico de Deus em favor dos pobres e humildes. Aquela que já era mãe, inicia agora uma nova etapa, o discipulado, e isso ela vai fazer ao longo de toda a sua vida e a de Jesus. Ao invés de ver os fatos isoladamente, ela vai juntando cada um, unindo as peças e percebendo, no seu coração, que a história da salvação está sendo reescrita com novos parâmetros, uma inversão de ordem: os últimos, como ela e os pastores, passaram a ser os primeiros. E é essa a prova de que o Reino de Deus, de fato, irrompeu na história. Nesse sentido, Maria se torna autêntica intérprete da nova história da salvação, sendo, por isso, modelo ideal de discípula e discípula.

Tendo comprovado e visto que tudo o que lhes tinha sido anunciado era verdade, «os pastores regressaram, glorificando e louvando a Deus» (v. 20). Realmente, não faltavam motivos para os pobrezinhos dos pastores glorificarem a Deus! É importante lembrar que a alegria e o louvor também são traços bem característicos de Lucas; quem faz a experiência do amor misericordioso de Deus reage louvando e glorificando. O louvor dos pastores mostra que, em Jesus, o abismo entre o humano e o divino foi eliminado; céus e terra foram unidos definitivamente. Cantar glória a Deus era função dos anjos no céu que, excepcionalmente desceram à terra e louvaram a Deus diante dos pastores (Lc 1,13-14), mas logo retornaram para o céu. Agora, também aos pastores, os últimos da terra, tem esse direito. Temos aqui uma mudança completa de paradigma: o que era privilégio dos primeiros do céu, se torna acessível aos últimos da terra. O louvor continuado dos pastores mostra que a experiência vivenciada por eles foi verdadeira. O mistério contemplado deixou marcas permanentes. Eles não assistiram apenas a um evento, mas se tornaram participantes e construtores de uma etapa nova da história. Regressaram transformados, renovados, animados, se sentindo gente de verdade. Por isso, daquele momento em diante, dificilmente eles deixaram de anunciar tudo o que tinham visto, escutado e vivido.

No final, vem evidenciado o papel importante de José e Maria na educação de Jesus, levando para a circuncisão conforme previa a lei e, ao mesmo tempo, a liberdade que tinham para seguir mais a Deus do que a Lei: «Quando se completaram os oitos dias para a circuncisão do menino, deram-lhes o nome de Jesus como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido» (v. 21). A circuncisão não era exclusividade de Israel. Era um costume comum a vários povos do antigo Oriente, sendo que a motivação era por questão de higiene e saúde. Em Israel se transformou em preceito religioso, passando a ser o principal sinal de pertença de um homem ao povo eleito. Com esse dado, Lucas reforça a concretude da encarnação. O que está sendo evidenciado mesmo é o nome dado à criança: Jesus, cujo significado é o “Senhor salva”. A Lei determinava que se desse o nome de um parente próximo. Contudo, o nome Jesus fora indicado pelo anjo, no momento do anúncio (Lc 1,31). Com isso, Lucas mostra que, entre a Lei e o Espírito Santo, Maria e José preferiram se orientar pelo Espírito Santo, prefigurando, assim, mais uma característica da comunidade cristã. E Lucas faz essa referência à circuncisão mais como dado cronológico do que mesmo identitário. O importante aqui é o nome que sintetiza a missão de Jesus. E o conjunto dos eventos, do anúncio do nascimento até aqui, mostra a atualidade desse nome.

O significado do nome Jesus é “Deus salva”, porque agora a salvação entrou definitivamente na história, como o anjo tinha anunciado aos pastores: «Hoje, nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor» (2,11). E, a partir desse nascimento, a salvação tornou-se acessível à humanidade inteira, deixando de ser privilégio de um povo. Isso quer dizer que todos os povos da terra compõem o “vós” para quem nasceu o Salvador, que é o Cristo Senhor. Portanto, hoje, especialmente, é mais do que justo recordarmos a Mãe desse Salvador, e seguir seu exemplo de discípula fiel.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sexta-feira, dezembro 27, 2024

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA SAGRADA FAMÍLIA – LUCAS 2,41-52 (ANO C)



Na continuidade da oitava de natal, a Igreja celebra hoje a festa da Sagrada Família: Jesus Maria e José. Por isso, o evangelho proposto pela liturgia é Lc 2,41-52, trecho que narra o episódio conhecido popularmente como “a perda e o reencontro de Jesus no templo de Jerusalém”, quando tinha doze anos. Esse é o último episódio da primeira parte do Evangelho segundo Lucas, conhecida como “Evangelho da Infância” (Lc 1 – 2), o que reforça ainda mais a sua importância, pois funciona como transição entre a infância e a vida pública de Jesus; nessa transição, o evangelista antecipa muitos aspectos importantes de sua teologia. Por isso, o objetivo de Lucas, ao narrar este episódio, não é apresentar um tratado sobre a família, mas mostrar elementos do cotidiano de Jesus, compreendendo seus costumes, o ambiente em que foi criado com suas tradições e, sobretudo, como ele sempre esteve atento “às coisas do Pai” sem, no entanto, negar a sua condição humana. Se o objetivo do evangelista fosse simplesmente apresentar o retrato de uma família perfeita, certamente teria contado a história de outra maneira, omitindo alguns elementos do relato atual.

Como se sabe, entre os evangelhos canônicos, o de Lucas é um dos mais tardios, escrito provavelmente fora da Palestina. O autor convivia com um cristianismo muito entusiasta do anúncio do Cristo Ressuscitado e glorioso, a ponto de quase esquecer que, mesmo sendo o Filho de Deus, Jesus de Nazaré foi um ser humano, nascido de uma mulher e crescido em uma família normal, conforme as condições e os costumes da época. Por isso, seu evangelho é aquele que mais fala da infância de Jesus e da convivência com seus pais, a fim de recordar aos seus leitores que ele viveu como uma pessoa normal, como, de fato, era. Para apresentá-lo inserido na cultura e na tradição do seu povo, o evangelista apresenta seus pais como fiéis devotos judeus; por isso, diz que «iam todos os anos a Jerusalém, para a festa da Páscoa» (v. 41). Conforme a Lei, os judeus adultos tinham a obrigação de ir a Jerusalém para as três grandes festas anuais: Páscoa, a festa das tendas e Pentecostes (Dt 16,16). Por causa disso, essas festas eram chamadas popularmente de “festas dos pés” porém, esse preceito era obrigatório apenas para as pessoas adultas e do sexo masculino. Também as mulheres com filhos pequenos tinham permissão de abster-se de participar. A afirmação sobe a peregrinação anual da família completa de Jesus  comporta, portanto, um certo exagero do evangelista, o que pode ser compreendido também como um atestado da sua carência de conhecimento de sobre alguns costumes judaicos, uma vez que se trata de um autor que viveu e estudou fora da Palestina. Além disso, quando escreveu o seu evangelho esses costumes já não existiam mais, pois Jerusalém e seu magnífico templo já tinha sido destruídos há mais de dez anos. De todo modo, ele quis mostrar o quanto pois os pais de Jesus eram fiéis observantes e cumpridores dos preceitos religiosos de então. 

E Lucas ainda mostra os pais de Jesus antecipando as obrigações do filho: «Quando ele completou doze anos, subiram para a festa, como de costume» (v. 42). Também aqui parece haver um pequeno equívoco da parte do evangelista, o que é bastante compreensível, devido ao desuso desse costume na sua época. Ora, a idade mínima exigida para que o filho homem começasse a participar publicamente da vida religiosa era treze anos; essa era a idade que um judeu do sexo masculino era considerado maior de idade e, por isso, recebia a obrigação de ler a Torá. Talvez, o evangelista apresenta a precocidade de Jesus até para contrastá-lo com as outras crianças da época, mostrando que ele era portador de traços diferenciados. A festa inteira da Páscoa durava uma semana, mas raramente os peregrinos pobres passavam todos os sete dias em Jerusalém; geralmente, passavam dois ou três dias e voltavam; o importante era passar pela cidade santa naquele período, independentemente da duração da estadia. Contudo, o  evangelista parece reforçar a piedade de José e Maria, fazendo supor que eles passaram todo o período da festa em Jerusalém, mas ao mesmo tempo mostra uma grande falta de atenção para com o filho: «Passados os dias da Páscoa, começaram a viagem de volta, mas o menino Jesus ficou em Jerusalém, sem que seus pais o notassem» (v. 43). É importante salientar que, se o objetivo do evangelista fosse apresentar uma crônica exata dos acontecimentos e a exemplaridade do casal, certamente teria omitido esse detalhe.

Durante a Páscoa, a população de Jerusalém praticamente triplicava com a grande quantidade de peregrinos que por lá passavam, tornando a cidade quase intransitável, o que exigia muito cuidado dos pais para com os filhos, para que não se perdessem. Somente pais muito desatentos iniciariam a viagem de volta sem dar-se conta do sumiço de um filho. E o evangelista ainda diz mais: «Pensando que ele estivesse na caravana, caminharam um dia inteiro. Depois começaram a procurá-lo entre os parentes e conhecidos» (v. 44). Aqui, o evangelista emprega uma palavra rara e de grande relevância para a reflexão teológica atual da palavra: synodia (συνοδίᾳ), traduzida como caravana. Trata-se do termo mais próximo a sínodo em todo o Novo Testamento, etimologicamente, e essa é a única ocorrência. A caravana, portanto, pode ser empregada como uma boa imagem da Igreja: pessoas que caminham juntas, na mesma direção, mantendo as diferenças que são peculiares a cada uma. Em caravana, o caminho se torna mais seguro; enquanto caminham, as pessoas interagem, se conhecem melhor, as crianças brincam. Era costume, nas caravanas, que as crianças e as mulheres caminhassem à frente dos homens; porém, qualquer mãe atenta se certificaria da presença de um filho antes de iniciar uma viagem longa e perigosa como aquela de Jerusalém para Nazaré. Somente depois de um dia inteiro de caminhada, foi que os pais de Jesus, «não o tendo encontrado, voltaram para Jerusalém à sua procura» (v. 45). Supõem-se que já estivessem bastante longe, após um dia inteiro de caminho; porém, o interesse do evangelista é teológico e catequético e, como sabemos, o movimento e o colocar-se em caminho é um tema muito caro para Lucas, do início ao fim de sua dupla obra (Evangelho e Atos dos Apóstolos). Assim, de um acontecimento aparentemente trágico, o evangelista aproveita para antecipar um dos temas prediletos de sua obra: o caminho, o movimento de ir e vir, como traço característica da sua teologia, prefigurando um ideal de Igreja.

O evangelista quer ensinar também que o encontro autêntico com Jesus é consequência de uma busca que todas as pessoas devem fazer, independente do grau de parentesco com ele. Nas comunidades do evangelista havia muitas pessoas seguras em si mesmas, fechadas em suas convicções, e outras muito vulneráveis e sem ânimo para acolher a boa nova; diante disso, Lucas insiste que é necessário buscar sempre o Senhor, pois ele não é posse de ninguém, como não foi sequer da sua família biológica. Até mesmo quem conviveu com ele, como seus pais, tiveram que procurá-lo e só o encontravam depois de um certo esforço: «Três dias depois, o encontraram no Templo. Estava sentado no meio dos mestres, escutando e fazendo perguntas» (v. 46). Com essa cena, o evangelista antecipa o drama da comunidade dos discípulos na próxima vez em que Jesus for a Jerusalém para celebrar também a Páscoa: após o drama da paixão, só o reencontrarão no terceiro dia, já ressuscitado, e isso depois de muita inquietação, como a das mulheres diante do sepulcro vazio (Lc 24,1-5) e dos discípulos de Emaús, no caminho (Lc 24,13ss). Assim, o evangelista reforça ainda mais, para a sua comunidade, a continuidade entre Jesus de Nazaré, o filho de Maria e José, e o Senhor ressuscitado. Também é importante recordar que a área do templo reservada para o ensinamento era o pórtico, precisamente o pórtico de Salomão, em homenagem ao grande rei e patrono da sabedoria em Israel. Certamente, era nesta área que Jesus se encontrava em meio aos mestres e doutores, escutando e fazendo perguntas. Ao dizer que Jesus estava no meio, o evangelista recorda que ele estava como protagonista. Mais tarde, Lucas vai situar o ensinamento dos apóstolos também no pórtico de Salomão, deixando clara a continuidade.

É claro que chama a atenção o local e o contexto em que os pais de Jesus o encontraram: no templo, interagindo com os mestres da Lei e conhecedores das Escrituras. Além dos mestres, os interlocutores diretos, supõem-se que havia também um público considerável, composto de peregrinos, assistindo ao debate entre o adolescente e os mestres: «Todos os que ouviam o menino estavam maravilhados com sua inteligência e suas respostas» (v. 47). Durante as festas, era normal que os mestres rabinos se apresentassem com seus discípulos, exibindo conhecimento e domínio da Lei entre as colunas do templo, muitas vezes apenas para chamar a atenção dos peregrinos; porém, eles iam com perguntas e respostas previamente ensaiadas entre os discípulos, para evitar constrangimentos. Como Jesus era muito novo e não fazia parte de nenhuma escola, a sua desenvoltura chamava a atenção de todos. Nesse aspecto também, há uma antecipação da sua futura atuação: o curto ministério em Jerusalém, na semana da paixão, será marcado por discussões doutrinais com os mestres da Lei, escribas e sacerdotes (Lc 20 – 21), tanto nos átrios quanto nos arredores do templo. Portanto, vai ficando cada vez mais claro que a ida de Jesus ainda adolescente para a festa da Páscoa antecipa a sua verdadeira Páscoa, aquela na qual ele se fez cordeiro, quando morreu na cruz e ressuscitou ao terceiro dia. Por sinal, a expressão “terceiro dia” ou “três dias depois”, em toda a Bíblia, é sempre um dado teológico, que indica o agir salvífico de Deus, muito mais do que uma anotação cronológica. 

Diante de uma cena como aquela: um menino de Nazaré, uma aldeia pobre e distante, discutindo com a elite intelectual do judaísmo, quem mais tinha motivos para se admirar eram os seus próprios pais, como afirma o evangelista: «Ao vê-lo, seus pais ficaram muito admirados e sua mãe lhe disse: “Meu filho, por que agiste assim conosco? Olha que teu pai e eu estávamos, angustiados, à tua procura”» (v. 48). Na perspectiva de Lucas, Maria é quem assume a liderança da família, dando protagonismo à mulher. Os pais se admiram, mas é a mulher, a mãe, quem intervém. Além da admiração com a cena inusitada, a mãe repreende o filho pela situação desagradável e preocupação que fez ela e o pai passarem. A admiração é acompanhada de vergonha, pois parecia tratar-se de um filho rebelde, fora dos padrões da época. Ao mostrar a incompreensão dos pais, aqui, o evangelista antecipa que não será fácil também para os discípulos compreenderem Jesus com suas opções e seu estilo de vido. Desde o início, bem antes mesmo de inaugurar o seu ministério, Jesus já provoca reviravolta na história, estabelecendo uma inversão de papeis. A aceitação e a compreensão da pessoa de Jesus e sua mensagem é sempre um processo longo. No início, os pais, durante a vida pública, os discípulos, todos têm dificuldade de compreender Jesus. Como se vê, na fala atribuída a Maria, revela-se uma quase não aceitação do jeito do filho se comportar: “por que agiste assim conosco?”. Era como se seus pais se sentissem traídos pelo filho. 

Em resposta à reação de seus pais e às repreensões da mãe, Lucas faz Jesus falar pela primeira vez em seu evangelho: «Jesus respondeu: “Por que me procuráveis? Não sabeis que devo estar na casa de meu Pai?”» (v. 49). Caso se tratasse da crônica descritiva de um modelo de família, certamente, também essa resposta de Jesus teria sido omitida. Em público, diante dos mestres e dos demais ouvintes, ele responde à mãe como um adolescente meio rebelde e malcriado. Uma criança obediente, apenas baixaria a cabeça e, se respondesse, seria com um pedido de desculpas aos pais pela preocupação e o constrangimento causados. Essa resposta, no entanto, consiste na primeira revelação que Jesus faz de sua identidade. Ora, até então, sua identidade divina tinha sido revelada pelo anjo (1,28-35; 2,10), por Isabel (1,42-43), por Zacarias (1,67-79) por Ana e Simeão (2,25-40); dessa vez, foi o próprio Jesus quem falou de si. É claro que ele não dispensa seus pais terrenos, certamente ele os amou intensamente, mas afirma que é a Deus que deve obedecer e fazer a sua vontade. Na verdade, Jesus não fala em “casa do Pai”, como consta na tradução litúrgica, mas em “coisas do Pai”; até porque, no futuro, ele defenderá a destruição do templo, ao constatar que fora transformado em casa de comércio e covil de bandidos. Em resposta à sua mãe, ele diz que deve estar tratando “do que é do Pai”, provavelmente contestando a doutrina dos mestres da Lei que ofuscava a identidade do seu Pai, marcada pelo amor e a misericórdia. É interessante notar que tanto nas primeiras quanto nas últimas falas de Jesus ele faz referências ao Pai, de quem é o verdadeiro revelador. Aqui, ele afirma seu dever de tratar das coisas do Pai; morrendo na cruz, ele entrega o espírito ao Pai (Lc 23,46); na ascensão, ele promete enviar o Espírito prometido pelo Pai (Lc 24,49). Toda a sua vida foi marcada pelo cuidado de revelar ao mundo o rosto do Pai misericordioso. Por isso, ele foi causa de contradição para muitos em Israel, como profetizou Simeão (Lc 2,34), inclusive para seu pais terrenos.

Em relação aos seus pais, Maria e José, é claro que «Eles, porém, não compreenderam as palavras que lhes dissera» (v. 50), mas Maria se antecipa, mais uma vez, como modelo de discípula, mesmo sem compreender. Eles não compreenderam apenas as palavras, mas todo o acontecimento, sobretudo, porque se trata de uma primeira antecipação da Páscoa de Jesus. Tudo o que estava acontecendo era novo, como será tudo novo no domingo da ressurreição, o que deixará as mulheres, os discípulos de Emaús e os Onze sem compreender, de início. Apesar de não compreender o jeito de ser de Jesus, «Sua mãe porém, conservava no coração todas estas coisas» (v. 51b). Para ser verdadeiro discípulo ou discípula, o mais importante não é a compreensão, mas a disposição e a capacidade de conservar no coração aquilo que é essencial: a fé, a confiança em Deus e a disponibilidade para o serviço, mesmo sem compreender. A compreensão se dá com o tempo. Por isso, Maria é sempre imagem e modelo de discípula e discípulo. O que ela não compreendia no momento, guardava no coração, o que significa meditar, refletir. As incompreensões de momento não faziam ela desistir. O que ela conservava não era apenas as palavras, mas todas as coisas: as palavras, os acontecimentos e o jeito de ser de Jesus, enfim, era o conjunto da obra. E, mais uma vez, o evangelista reforça a inserção e pertença de Jesus à sua família: «Jesus desceu então com seus pais para Nazaré, e era-lhes obediente» (v. 51a), mostrando que isso não o impedia de ser também o Filho de Deus; por isso, sintetiza o seu crescimento nas duas dimensões, a humana e a divina: «E Jesus crescia em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e diante dos homens» (v. 52). Uma dimensão, que mais tarde a teologia vai tratar como “natureza”, não anula a outra. Lucas quis mostrar para a sua comunidade que desde o início da sua vida, Jesus foi verdadeiro Deus e verdadeiro homem.

Que este tempo do natal e, sobretudo, esta solenidade nos ajude a aprender a cuidar e tratar somente das coisas do Pai, como Jesus, e a conservar tudo no coração, mesmo sem compreender tudo, como fez Maria, sua mãe e primeira discípula.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

terça-feira, dezembro 24, 2024

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DO NATAL DO SENHOR – JOÃO 1,1-18 (MISSA DO DIA)


Assim como acontece com a liturgia da missa da noite, o evangelho indicado para a missa do dia na solenidade do Natal do Senhor também é o mesmo para todos os anos. Trata-se do prólogo do Evangelho de João – Jo 1,1-18. Esse texto é considerado uma das páginas mais belas e profundas de toda a Bíblia. É um poema de elogio à Palavra de Deus, cuja encarnação constitui o centro do mistério do Natal e, consequentemente, da vida cristã. Enquanto Mateus e Lucas procuraram explicar o nascimento e a origem divina de Jesus a partir de relatos e reconstrução de prováveis genealogias (Mt 1,1-17; Lc 3,23-38), o autor do Quarto Evangelho recorda a sua preexistência enquanto Palavra ou Verbo de Deus que precede a criação do mundo, inclusive, apresentando a participação da própria Palavra na criação do mundo. Pela diferença de estilo literário, sobretudo, muitos estudiosos acreditam que esse texto é um acréscimo posterior da comunidade joanina, enquanto outros o vêem como uma introdução pensada pelo autor, desde o início, como chave de leitura de toda a obra, uma vez que no prólogo já se percebem indicações de praticamente todas as linhas teológicas tratadas no Quarto Evangelho e nas cartas atribuídas à tradição joanina. O debate em torno dessa questão continua aceso na exegese, sem perspectiva de conciliação. A extensão do texto não permite um comentário pormenorizado versículo por versículo. Por isso, procuramos colher a mensagem central do texto.

E começamos recordando que o prólogo do Evangelho de João foi visto com desconfiança em muitas comunidades cristãs dos primeiros séculos, devido a uma suposta influência da filosofia grega. Isso foi mais pela linguagem do que mesmo pelo conteúdo em si. De fato, nesse texto o autor procura conciliar a maneira de pensar dos gregos com o jeito de acreditar dos hebreus. Contudo, embora expressa em linguagem mais próxima da filosofia e poética gregas do que da literatura hebraica, a mensagem deste prólogo possui plena relação e continuidade com a teologia predominante da Bíblica Hebraica, apesar dos pontos de ruptura, como acontece com todos os escritos do Novo Testamento. Até mesmo em relação à linguagem fica evidente que o autor fez uso de modelos já conhecidos no mundo judaico, embora não tão aceitos, como os elogios à Sabedoria em Sb 6–9, Pr 8 e Eclo 24. De fato, a maneira como o autor do Quarto Evangelho apresenta a Palavra-Verbo (em grego: logos – λόγος) possui muita afinidade com o que se dizia da Sabedoria (em grego: sofia – σοφίᾳ) no Antigo Testamento que, personificada, desceu do céu e se tornou acessível à humanidade. Porém, dos textos citados do Antigo Testamento, que fazem elogio à Sabedoria e certamente influenciaram o autor do Quarto Evangelho, somente o de Provérbios faz parte da Bíblia Hebraica, pois os livros da Sabedoria e do Eclesiástico não são considerados inspirados pelos judeus.

Feitas algumas considerações a nível de contexto, olhemos para o texto e, logo de início, já percebemos a primeira grande afinidade com o Antigo Testamento: «No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus e a Palavra era Deus» (v. 1). A primeira expressão do prólogo é a mesma que abre o livro da Gênesis, na tradução grega dos Setenta (LXX): “no princípio” (Ἐν ἀρχῇ - en arkê). Em Gn 1,1 se diz que no “princípio Deus criou…”, mas aqui se diz que num princípio anterior à própria criação já havia a Palavra que estava com Deus e era ele próprio. Isso quer dizer que, enquanto Palavra, Jesus Cristo já existia antes da criação do mundo e ele mesmo foi agente da criação, junto com Deus, o Pai, como diz o texto: «Tudo foi feito por ela e sem ela nada se fez de tudo que foi feito» (v. 3). Talvez essa seja uma das descobertas mais surpreendentes e preciosas que o autor do Quarto Evangelho nos fornece. Ora, no Novo Testamento, existem hinos até mais antigos do que este que afirmam a pré-existência do Cristo, como Filho de Deus e agente da criação (Ef 1,3-14; Cl 1,15-20), mas não afirmando que ele é a Palavra com a clareza que João faz aqui. E a profundidade deste primeiro versículo de João se torna ainda mais evidente se o compararmos aos evangelhos sinóticos de Mateus e Lucas que, empregando o gênero literário da genealogia, chegam ao máximo em Abraão e Adão, quando procuram identificar as origens messiânicas de Jesus. Afirmando a preexistência da Palavra na eternidade de Deus, o autor ensina que Deus fala, ele se comunica com a humanidade. Aliás, diz que todo o agir de Deus se dá por meio da Palavra. Isso evoca a ideia de um Deus acessível à humanidade, como, de fato, a vida de Jesus demonstra tão bem.

Na sequência, o autor exalta as qualidades do Cristo enquanto Palavra e seus efeitos para o mundo: «Nela estava a vida, e a vida era a luz dos homens, e a luz brilha nas trevas, e as trevas não conseguiram dominá-la» (vv. 4-5). Vida e luz são duas das categorias teológicas mais relevantes na perspectiva do Quarto Evangelho, e aqui são diretamente associadas a Jesus: ele é fonte de vida e de luz. No auge de sua vida pública, Jesus mesmo vai dizer que veio ao mundo para trazer luz ao mundo e comunicar vida em abundância à humanidade (Jo 8,12; 10,10). Ele vai dizer claramente ser a luz e a vida verdadeiras. Sua luz é eterna, brilha fortemente, mas é perseguida pelas trevas, que são todas as forças de morte manifestadas ao longo da história, incluindo o poder religioso instituído em Israel e os diversos sistemas de poder político que já dominaram aquele povo. Na verdade, as trevas são todas as oposições ao projeto de Deus, desde a criação até os tempos atuais, de modo que as trevas aqui mencionadas não dizem respeito apenas à história de Israel, mas ao mundo inteiro. Todo impedimento ao projeto de Deus e da Palavra encarnada, Jesus, representa o mundo das trevas, em todos os tempos e lugares. A primeira vitória da luz aconteceu na criação: o primeiro ato criador de Deus foi invocar a luz sobre o caos primordial (Gn 1,3). E o Natal, enquanto “fazer-se carne” da Palavra é o começo da máxima manifestação dessa luz, cujo ápice será a ressurreição. Durante sua vida terrena, Jesus experimentou na carne o quanto a sua luz foi perseguida pelas trevas. Mas a ressurreição mostrou que as trevas não conseguiram dominá-la.

Por ser também uma síntese poetizada do percurso dinâmico da Palavra, desde a criação até a encarnação, o prólogo do evangelho joanino compreende também, embora implicitamente, uma síntese da história da salvação. Por isso, não poderiam faltar referências aos personagens mais relevantes da história e da religião de Israel. Mas o autor é muito cuidadoso nesse sentido, e cita somente dois nomes: Moisés e João, o Batista; um legislador e um profeta. João, o Batista, é identificado como enviado por Deus para dar testemunho da luz (vv. 6-9.15). O papel da testemunha é apontar para a luz, ajudando os outros a serem iluminados e, por consequência, a chegarem à fé, como consequência da luz contemplada e recebida. Nesse sentido, João é síntese de todo o profetismo bíblico que, ao longo da história, constituiu-se como a expressão religiosa mais autêntica de Israel. Com a instituição religiosa corrompida desde o início, por muitos séculos somente o profetismo fez a luz de Deus resplandecer sobre o seu povo. O aparato ritualista do templo, em conluio com a monarquia e, posteriormente, com os impérios dominantes, ofuscavam a luz verdadeira. Por isso, por tanto tempo a luz verdadeira não foi conhecida e nem reconhecida, apesar de nunca ter faltado o testemunho de profetas como João Batista (vv. 10-11). Também Moisés não poderia ser esquecido na apresentação da trajetória da Palavra-Luz. Seu papel é reconhecido, mas colocado em seu devido lugar: por meio dele foi dada a Lei (v. 17), que tem a sua importância na história, mas até certo ponto, pois ela não comunica graça e nem verdade, e pode ser distorcida por aqueles que se credenciam como seus legítimos interpretes, como realmente aconteceu. Basta olhar a história de Israel para perceber o quanto a Lei foi distorcida, sendo mais usada para escravizar do que mesmo para libertar. Por não comunicar graça e verdade, a Lei não gerava filhos para Deus, mas apenas servos. Só o Cristo-Palavra gera filhos para Deus, porque somente ele reflete a luz verdadeira do Pai e, por isso, ele é a própria luz (v. 18). Na verdade, tudo o que é propriedade do Pai só pode ser comunicado claramente por aquele que o conhece verdadeiramente, e é Jesus quem o conhece.

Até então, todas as formas de comunicação experimentadas por Deus para revelar-se claramente à humanidade tinham sido parciais e, por conseguinte, insuficientes (Hb 1,1-2). Por isso, chegou o momento em que «a Palavra se fez carne e habitou entre nós. E nós contemplamos a sua glória, glória que recebe do Pai como Filho Unigênito, cheio de graça e de verdade» (v. 14). Esse versículo é o ponto alto do texto e de toda a fé cristã. Sobrepõe-se, inclusive, à fé na ressurreição, porque a ressurreição é consequência da encarnação. Ele ressuscitou porque morreu, e só morreu porque se fez carne. Não há contraposição entre os dois mistérios, o que há é uma relação de causa e efeito. E Para compreender bem esse versículo, e perceber a verdadeira revolução que ele indica, é necessário voltar para o início e lê-lo em paralelo com o primeiro versículo: «No princípio era Palavra, e a Palavra estava com Deus e a Palavra era Deus» (v. 1). A Palavra que se fez carne é o próprio Deus. Temos aqui uma reviravolta maravilhosa na história! Ora, ao longo da história, não faltam personagens que agiram como se fossem deuses, que é a lógica do mundo. A ambição, o orgulho, a sede de poder e a prepotência levam os homens a quererem ser como Deus. E o Natal revela um movimento totalmente oposto a essa lógica: não é um homem que se fez Deus, mas um Deus que se fez homem, motivado pelo amor. E é somente por causa desse acontecimento que podemos contemplar a glória de Deus. Antes, imaginava-se que a glória de Deus poderia ser contemplada na Lei, no templo e, ocasionalmente, em algumas raras manifestações a personagens privilegiados. Aqui, o evangelista ensina que a carne humana, sinônimo de fragilidade na teologia tradicional de Israel, é o lugar privilegiado de manifestação da glória de Deus. Por isso, esse versículo (v. 14) pode ser considerado um dos mais revolucionários de toda a Bíblia.

A Palavra se fez carne, e nessa carne podemos contemplar a glória de Deus em plenitude, com transparência. E conhecemos como se deu esse “fazer-se carne” da Palavra: foi numa criança pobre, nascida em condições sub-humanas. Essa é a maior revolução da história. É o ponto de chegada de uma longa trajetória, anterior até mesmo à criação do mundo, e o ponto de partida de uma nova história, que começa pelos últimos, pelos pequenos, pelo que é frágil e marginalizado. O autor poderia dizer apenas que a Palavra se tornou humano ou homem, mas isso poderia ser distorcido; poderiam dizer que ele, em sua divindade, teria apenas se revestido de humanidade, sem, no entanto, ter-se tornado verdadeiramente humano e frágil. Inclusive, na própria comunidade do evangelista surgiu esse problema, o que se tornou um dos motivos principais para a redação da Primeira Carta de João: reafirmar que Jesus Cristo veio na carne (1Jo 4,1). Ora, o termo carne (em grego: σὰρξ – sarx) empregado pelo evangelista representa a dimensão mais frágil da condição humana. Inclusive, em algumas tendências teológicas, às vezes, é usado como sinônimo de pecado, em contraposição a “espírito”, como convite para o ser humano superar o “estado da carne”. Isso evidencia ainda mais o quanto a declaração de Jo 1,14 é revolucionária. A Palavra não apenas se fez carne. Mas escolheu o fazer-se carne para morar no meio da humanidade e como meio privilegiado de revelação da gloria de Deus. Ora, os judeus imaginavam a gloria de Deus como poder e forca, os gregos viam a gloria como a sabedoria fornecida pela filosofia, enquanto o cristianismo, na perspectiva do Quarto Evangelho, afirma que é na carne humana que a gloria de Deus se manifesta.

O Natal é, portanto, um convite atualizado para se conhecer a Deus e aprender como se pode conhecê-lo, porque ensina, acima de tudo, onde ele está, como ele se manifesta e qual é a expressão máxima da sua glória: é a carne humana, inicialmente a do seu Filho Unigênito, o menino pobre de Belém; depois, a carne de todas as pessoas que, no Filho, se tornam filhos e filhas de Deus também. Como dizia um anônimo teólogo, o cristianismo é “a religião do céu vazio”, porque Deus escolheu a carne humana para morar, armando definitivamente a sua tenda. 

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN


REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DO NATAL DO SENHOR – LUCAS 2,1-14 (MISSA DA NOITE)



O evangelho da solene liturgia da noite de Natal é sempre o mesmo para todos os anos: Lc 2,1-14. Isso se explica pelo fato de tratar-se do único texto do Novo Testamento que, de fato, narra o nascimento de Jesus. Como se sabe, somente dois dos evangelhos canônicos contêm relatos e informações sobre o nascimento e a infância de Jesus, que são Mateus e Lucas, respectivamente. Tanto é que os dois primeiros capítulos destes evangelhos ficaram conhecidos como “evangelhos da infância” (Mt 1–2; Lc 1–2). Contudo, o evangelho de Mateus não chega a narrar o nascimento, propriamente: da aceitação de José ao anúncio do anjo (Mt 1,24-25), o evangelista salta para o episódio da visita dos magos, já depois do nascimento do menino (cf. Mt 2,1-12). Essa lacuna de Mateus rendeu ainda mais privilégio e importância ao relato de Lucas, fazendo com que o texto lido nesta noite se tornasse um dos mais conhecidos e valorizados de toda a Bíblia, para as comunidades cristãs. Por se tratar de um texto relativamente longo, não comentaremos detalhadamente versículo por versículo. Procuraremos colher a mensagem em seu conjunto, embora seja necessário enfatizar alguns versículos em particular, após fazer algumas considerações a respeito do contexto do relato. Por sinal, também a contextualização será breve, tendo em vista que muitos elementos do contexto são os mesmos do evangelho de ontem, o quarto domingo do advento.

A propósito do contexto narrativo, observamos que, apesar da longa extensão do texto, o relato do nascimento propriamente é muito curto, ocupando apenas dois versículos (vv. 6-7). O restante da narrativa compreende uma ampla introdução (vv. 1-5) e o anúncio festivo aos pastores (vv. 8-14), os primeiros a se beneficiarem da libertação inaugurada pelo nascimento de Jesus. Recordamos que este é um dos textos que mais revela as qualidades literárias de Lucas e uma de suas linhas teológicas mais relevantes: a preferência de Deus pelos pobres e marginalizados. Ainda a nível de introdução e contexto, é importante recordar que os relatos da infância de Jesus, tanto em Mateus quanto em Lucas, não possuem finalidade cronística ou histórica, mas catequética e teológica. Aliás, esse pressuposto vale para todos os relatos evangélicos. No entanto, isso não significa que os fatos narrados não possuam fundamentos históricos. Mas quer dizer que todas as informações e detalhes do texto estão a serviço de um plano teológico e catequético, que visam responder a questionamentos e necessidades de comunidades concretas do final do primeiro século. O que o evangelista quis deixar claro foi que Jesus verdadeiramente nasceu, viveu, fez opções bem concretas e eliminou todas as barreiras entre Deus e a humanidade. Como o “evangelho da infância” funciona como introdução e síntese ao inteiro evangelho, o texto de hoje contém indícios ainda mais evidentes daquilo que o evangelista pretende desenvolver no restante da obra. Na verdade, possui aponta temas que serão desenvolvidos até mesmo no segundo volume de sua obra, o livro dos Atos dos Apóstolos.

Feitas as considerações contextuais, passemos a olhar diretamente para o texto, partindo do primeiro versículo, que é bastante carregado de informações: «Aconteceu que naqueles dias, César Augusto publicou um decreto, ordenando o recenseamento de toda a terra» (v. 1). De todos os evangelistas, Lucas é o que mais se preocupa em situar os eventos narrados na história universal. Ele faz isso para ressaltar que Jesus não é um personagem inventado, não é uma lenda, mas um homem concreto que não caiu do céu, e sim que teve uma existência real em circunstâncias de tempo e espaço bem definidos. Com isso, ele também indica a viabilidade do projeto de salvação e libertação inaugurado por Jesus. Não se trata de uma promessa de felicidade para o além, mas de uma proposta de vida para ser vivida já neste mundo, como ele mesmo viveu. É um programa de humanização para toda a humanidade; o único capaz de reverter a injusta ordem vigente, transformando o mundo egoísta, violento e injusto em verdadeira irmandade. E os relatos da infância de Jesus (Lc 1–2), sobretudo o nascimento, marcam o início dessa transformação, são o começo da reviravolta na história. Por isso, o episódio começa mencionando a maior autoridade do mundo conhecido na época, o imperador romano, para terminar com os últimos, os pastores, para quem o céu se abre em festa. Por isso, os dados do primeiro versículo são muito importantes para a compreensão de todo o texto. O dado temporal “naqueles dias” tem relação com os últimos acontecimentos narrados pelo evangelista, como a dupla anunciação – do nascimento de João e de Jesus (Lc1,5-23.26-38) –, a visita de Maria a Isabel (Lc 1,39-56) o nascimento de João (1,57-66). Do ponto de visto da história da salvação, era um tempo muito de intenso, repleto de acontecimentos importantes, embora inesperados. Enfim, eram dias de muitas novidades.

O evangelista localiza os eventos salvíficos, ocasionados pelo agir de Deus, no quadro da história universal, recordando também acontecimentos do mundo do império romano. Com isso, ele ensina que o agir de Deus se dá no curso da história. Não há duas histórias paralelas – uma sagrada e outra profana –, mas uma única história, na qual Deus age, salvado e libertando o seu povo. Assim, ele recorda as realizações do imperador romano César Augusto, chamado também de Otaviano, que comandou o império romano de 27a.C. a 14d.C., tendo sido um dos imperadores mais ambiciosos e poderosos da história. Foi ele quem criou a “pax romana”, que não passava de uma política de repressão e controle, com o falso pretexto de manter a lei e a ordem. Foi com ele que se consolidou a atribuição do título de “divino” ao imperador, que significava ser tratado como um deus. Sem dúvidas, era o homem mais poderoso da terra, na época. O decreto do recenseamento de “toda a terra” é uma prova disso. Aqui, por “toda a terra” (em grego: οἰκουμένην – oikumenen) compreende-se o território do império romano, o mundo habitado conhecido. Porém, esse dado é fruto da criatividade de Lucas. Não se tem notícias históricas de um recenseamento de abrangência universal na antiguidade. Quando aconteciam recenseamentos nos grandes impérios, incluindo o romano, se fazia por províncias ou, no máximo, por regiões. Provavelmente, Lucas soube de um recenseamento na província da Judeia e superdimensionou o fato, com a intenção de evidenciar a ambição do imperador com sua força opressora, uma vez que os recenseamentos eram abomináveis em Israel, por serem mecanismos de controle do povo, e só Deus tinha poder verdadeiro sobre o povo, segundo a mentalidade judaica. Por isso, os únicos recenseamentos considerados legítimos foram aqueles da época de Moisés, pois foram ordenados pelo próprio Deus, como demonstra o livro dos Números. Quando era proposto por um rei ou imperador era considerado pecado grave, porque servia para o controle dos impostos e a recrutamento de soldados para o exército. Inclusive, um dos pecados mais graves de Davi foi a realização de um recenseamento (2Sm 24,1-17). Quando Deus determinava um recenseamento, o fazia para saber se estava faltando algum dos seus filhos ou filhas, logo, era sinal de seu amor e cuidado.  

Outra intenção de Lucas com o dado do recenseamento foi encontrar um pretexto para levar o nascimento de Jesus para Belém e, assim, conferir-lhe as credenciais messiânicas, além de enfatizar a importância do caminho, que é outra linha teológica relevante na sua obra. Com isso, ele põe Maria em caminho pela segunda vez, sendo reforçando seu perfil de primeira missionária e peregrina do Evangelho. O primeiro caminho percorrido por Maria, já animada pelo Espírito Santo, se deu por ocasião da visita a Isabel (Lc 1,39-56). Agora, ele faz o segundo. Tudo isso, ressaltamos, está a serviço de um plano teológico traçado pelo evangelista. Por isso, o texto diz que, «Por ser da família e descendência de Davi, José subiu da cidade de Nazaré, na Galileia, até a cidade de Davi, chamada Belém, na Judeia» (v. 4). Esse versículo também é muito rico de significado e possui grande importância para o sentido do texto. Tradicionalmente, a cidade de Davi era Jerusalém, embora ele tenha nascido e sido ungido rei em Belém (1Sm 16,1-13; 2Sm 5,7.9). A pertença de José à descendência davídica dá legitimidade à messianidade de Jesus, o que já tinha sido informado ainda no evangelho da anunciação (Lc 1,27). A distância entre Nazaré e Belém é de aproximadamente 150 km, dificilmente percorrível por uma mulher em gravidez avançada, como se encontrava Maria. Mas a motivação é teológica. Com isso, ele antecipa que nenhum obstáculo impedirá o percurso da Palavra de Deus, que é o próprio Jesus. Quem se reveste do Espírito Santo, como Maria, jamais se acomoda, por mais que encontre adversidades. E essa deve ser a postura da comunidade cristã em todos os tempos, da qual Maria e José são modelos.

Apesar de ser a cidade natal de Davi, personagem importante da história de Israel, Belém era um lugar praticamente esquecido, sem importância. Possuía apenas um valor simbólico, a começar pelo nome, que significa “casa do pão”, além de uma profecia de Miquéias, pouco recordada no mundo judaico da época, que previa para lá acontecer o nascimento do Messias. Na prática, era considerada apenas um vilarejo da periferia de Jerusalém, separadas por apenas 10 km. Assim, o nascimento de Jesus nela não significa apenas o cumprimento das Escrituras, mas também a opção de Deus pelos últimos, pelo que é periférico e excluído. Com isso, percebemos uma das principais demonstrações da genialidade de Lucas: ao afirmar que «enquanto estavam em Belém, completaram-se os dias para o parto» (v. 6), ele confirma que Jesus será o Messias esperando, anunciado pelas Escrituras. Em seguida, quase como advertência, ele ensina que não será um Messias glorioso, guerreiro e poderoso como a religião de Israel esperava, ao narrar a situação de completa pobreza em que ele nasceu: «E Maria deu à luz o seu filho primogênito. Ela o enfaixou e o colocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles na hospedaria» (v. 7). Enfaixar os recém-nascidos era um sinal de cuidado e proteção, na antiguidade; acreditava-se que o enfaixamento ajudava a criança a crescer reta, sem deficiências. A falta de lugar na hospedaria é a primeira demonstração de que Jesus já nasceu excluído e entre os excluídos. Ele já nasce banido e, ao longo do seu ministério, vai juntar-se aos banidos de sempre. Pelas expectativas de Israel, o Messias deveria nascer em berço de ouro, enquanto o berço de Jesus foi uma manjedoura (em grego: φάτνῃ – fatne), ou seja, um cocho para alimentação de animais. Foi colocado num cocho de animais por falta de lugar digno. O texto não diz que a hospedaria estava lotada, apenas diz que não havia lugar para eles, mas poderia haver para outras pessoas. Não havia lugar para eles, talvez, pelas condições em que se encontravam: forasteiros, refugiados.

O evangelista deixa claro que Jesus nasce um Messias às avessas das expectativas. Nasceu em condições sub-humanas. Numa sociedade desigual, dividida entre privilegiados e injustiçados, ele ficou do lado dos injustiçados, desde o nascimento. Israel não estava preparado para receber um Messias assim e o cristianismo, a partir de  quando se institucionalizou, também parece ainda não ter assimilado como ele veio e viveu. Tudo isso aponta para um novo tempo, uma nova história, como a sequência do Evangelho de Lucas vai mostrar, mas o texto de hoje já antecipa. Ora, o episódio começou pelo imperador (v. 1), o maior na escala social, passou pelo governador (v. 2), e parou num casal desabrigado com um recém-nascido (v. 7), que é o ponto de partida de uma nova história, de um novo jeito de compreender o mundo. A partir de Jesus, os humildes passam a ter vez, começam a ser lembrados, como diz o texto: «Naquela região havia pastores que passavam a noite nos campos, tomando conta do seu rebanho» (v. 8). Apesar de romantizados na Bíblia, devido às origens pastoris do povo de Israel, os pastores constituíam a escória da sociedade, conforme a mentalidade vigente; ocupavam o último degrau da escala social, desde que Israel deixou a condição de povo nômade para sedentário, quando chegou na terra prometida. Devido aos cuidados que os rebanhos exigiam, os pastores não tinham condições de observar a Lei, sobretudo o repouso sabático; por causa das andanças dos rebanhos, eram obrigados a atravessar terras pagãs, e o contato constante e direto com os animais os tornavam impuros. Por isso, eram mais rejeitados até do que os cobradores de impostos. Além da total exclusão, também eram duramente explorados; cuidavam de rebanhos que não eram deles; tinham de vigiar durante dias noites, para defender os rebanhos de ameaças de lobos e assaltantes.

Como o nascimento de Jesus inaugura uma nova história, também marca o início de uma nova ordem, com novos protagonistas. Os últimos começam a se tornar primeiros, e o anúncio aos pastores é uma prova disso, como diz o texto: «Um anjo do Senhor apareceu aos pastores, a glória do Senhor os envolveu em luz, e eles ficaram com muito medo. O anjo, porém, disse aos pastores: ‘Não tenhais medo! Eu vos anuncio uma grande alegria, que o será para todo o povo’» (v. 9-10). Ora, de acordo com a religião da época, os últimos a receber uma mensagem de Deus seriam os pastores. Eles já tinham sido condenados antecipadamente. Mas, como Deus surpreende, eles se tornaram os primeiros destinatários do anúncio do nascimento de Jesus. A notícia dada pelo anjo é para todo o povo, como é a mensagem libertadora de Jesus. Mas algumas pessoas tem prioridade nesse anúncio: os pobres e excluídos. Essa é uma das grandes certezas que os evangelhos revelam e, sobretudo, o de Lucas. A opção preferencial pelos pobres é clara! Por isso, esse anúncio é dado com uma grande alegria para os pastores. Explorados e excluídos, eles nunca tinham recebido mensagem de alegria; quando alguém se dirigia a eles, o que era raro, era com palavras de condenação ou impondo ordens. O anúncio do nascimento de Jesus para eles é uma grande alegria porque traz eles para o centro da história, que começa a ser reescrita a partir de baixo, a partir dos pequenos e últimos. Com o anúncio do anjo aos pastores, portanto, o programa do Magnificat começou a ser realizado: finalmente, os humildes começaram a ser elevados. Os primeiros, como o imperador e o governador, passam a ser últimos, já não são mais lembrados na nova história que está começando.

E a notícia dada aos pastores é mesmo de alegria, é maravilhosa: «Hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor» (v. 11). Como se vê, o anúncio é atual, indica que a salvação não é um evento passado nem futuro, mas um fato do presente, do cotidiano: é para hoje! Temos aqui, mais uma linha importante da teologia de Lucas: o hoje (em grego: σήμερον – semeron), que indica a urgência da salvação/libertação, sobretudo para quem não pode mais esperar, como os pastores, na época, e tantas pessoas marginalizadas ainda hoje. E isso constitui uma séria advertência para a comunidade: é preciso discernir quais são as situações que exigem tomadas de posição e meios de transformação com urgência. Neste versículo, aparecem os três principais títulos cristológicos de Jesus: Salvador (em grego: σωτὴρ – sotér), Cristo, que significa Messias/ungido (em grego: χριστὸς – Christós), e Senhor (em grego:  κύριος – Kýrios). Quer dizer que Jesus possui a totalidade dos dons de Deus, e tudo foi disponibilizado à humanidade, a partir do seu nascimento. Com todos esses títulos aplicados a Jesus, o evangelista confronta a teologia de Israel e a ideologia imperial. Ora, os títulos de Salvador, Messias e Senhor eram muito caros ao pensamento judaico, que os concebia do ponto de vista triunfalista, com o qual o menino nascido na manjedoura nada tinha a ver. As credenciais de Jesus como Salvador, Messias e Senhor são o reverso do que se esperava em Israel. À exceção do título de Messias, o imperador romano também exigia ser reconhecido com esses títulos – salvador e senhor. Mas, de modo sutil e poético, pela boca do anjo, o evangelista denuncia essa falsa pretensão: só um verdadeiro Salvador, Messias e Senhor do mundo: é o frágil menino, enrolado em faixas, colocando numa manjedoura porque lhe negaram um lugar na hospedaria.

Para não deixar dúvidas, o anjo indica como os pastores encontrarão o Salvador nascido para eles (v. 12). A lógica seria procurá-lo num palácio ou num templo, em meio a refinados ornamentos. Mas desse modo os pastores jamais encontrariam, pois, as portas dos templos e palácios não se abririam para eles. Um recém-nascido é sinal de impotência e fragilidade, a manjedoura indica a extrema pobreza. Temos aqui um grande paradoxo: é nessa impotência, fragilidade e pobreza que está a glória de Deus em plenitude, o que é confirmado pela «multidão da coorte celeste» (v. 13) que se juntou ao primeiro anjo para cantar e festejar. Essa cena marca o fim definitivo da separação entre o céu e a terra, entre o humano e o divino. O nascimento de Jesus superou as antigas barreiras de separação. Diante dos pastores, os anjos não só cantam, mas proclamam uma nova imagem de Deus, mas também um jeito novo de se relacionar com ele e uma nova ordem para o mundo: «Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens por ele amados» (v. 14). Como se vê, a glória de Deus está intrinsecamente relacionada ao bem-estar da humanidade. A paz não é um sentimento, nenhuma tranquilidade interior; é a totalidade de todos os bens sonhados por Deus para a humanidade: justiça, liberdade, dignidade, igualdade, fraternidade, terra para trabalhar… logo, não tem sentido proclamar Deus como glorioso sem preocupar-se com essa paz entre os homens. Se as pessoas não podem viver bem na terra, pouco sentido tem a proclamação da glória de Deus nos céus.

Que a celebração de mais um Natal nos ajude a assimilar o seu verdadeiro sentido, abraçando as causas que ele pressupõe. Como diz o Papa Francisco, «Deus faz morada entre nós, pobre e necessitado, para nos dizer que é servindo aos pobres que amamos a ele». Celebremos o Natal, portanto, acolhendo Jesus que vem ao nosso encontro, reconhecendo-o entre aqueles que não tem lugar onde ser acolhido. Que a manjedoura, lugar de manifestação e revelação do Deus que é Salvador, Messias e Senhor, não seja romantizada. Jesus foi parar nela porque não lhe deram lugar na hospedaria. A manjedoura foi o que lhe restou. Que nosso coração seja hospedaria para Jesus nascer a cada dia, e que sejamos promotores de paz, justiça, amor e humanização, para proclamarmos a glória de Deus com a consciência tranquila. 

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, dezembro 21, 2024

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DO ADVENTO – LUCAS 1,39-45 (ANO C)



À medida em que o Natal do Senhor se aproxima, a preparação para a sua plena vivência, proposta pelo tempo do advento, se torna mais intensa.. Nesse sentido, é importante evidenciar os personagens humanos que Deus escolheu para intermediarem a transição entre as duas etapas da história da salvação: a antiga, baseada na Lei e na expectativa do cumprimento de tantas promessas, e a nova, fundada em Jesus, o Cristo, nascido de Maria, ápice da comunicação entre Deus e a humanidade, e cumprimento das antigas promessas de salvação. Enquanto no domingo passado a liturgia destacava a figura de João – aquele que batizava – e os efeitos de sua pregação, o evangelho de hoje – Lucas 1,39-45 – destaca o encontro e o papel de duas mulheres na história da salvação – Maria e Isabel –, evidenciando cada vez mais as preferências e opções de Deus pelo que aparenta ser mais frágil e desprezado, como era vista a mulher na época da cena narrada no evangelho. Lucas quer mostrar que, para transformar o mundo, Deus não chama os grandes e poderosos, e sim os/as humildes e pequenos(a); a escolha de Maria para ser mãe de seu Filho, não por suas qualidades, e sim pela sua pequenez e simplicidade, é a maior demonstração, e o evangelho de hoje nos ajuda a perceber isso, ao colocar duas simples mulheres frente a frente, como as primeiras a compreender e perceber o início de uma nova história e de um mundo novo.

O texto – Lucas 1,39-45 – narra o episódio tradicionalmente chamado de “visitação”. Se trata de uma passagem bastante conhecida, muito utilizada nas solenidades e festas marianas. Muitas vezes, à leitura desse texto é acrescentado o Magnificat (Lc 1,46-56), que faz parte do mesmo episódio. Hoje, especificamente, a liturgia utiliza apenas os versículos que tratam da apressada viagem de Maria e o seu encontro com Isabel (vv. 39-45), omitindo o cântico. Esse é o episódio que sucede de imediato ao anúncio do anjo; é importante perceber a relação entre as duas cenas para melhor compreender o texto de hoje. Com o anúncio do anjo, Maria ficou espantada, e com razão (Lc 1,29), afinal, aquela história  parecia absurda: como ela poderia ser mãe sem ter ainda se relacionado com o prometido esposo? À primeira vista, o anúncio do anjo representou uma tragédia para Maria, colocando em risco seu futuro matrimônio, uma vez que ela já estava comprometida com José, e a gravidez precoce poderia acabar o relacionamento. Por isso, corajosamente, ela questionou o mensageiro divino, pedindo-lhe explicação (Lc 1,34). E o próprio anjo tratou de tranquilizá-la, mostrando que tudo aquilo que estava acontecendo era iniciativa do Deus que faz coisas impossíveis, agindo contra a lógica humana. E o anjo ainda lhe deu um exemplo: Isabel, uma mulher anciã e estéril já estava no sexto mês de gravidez (Lc 1,3-37). Esse exemplo parece ter ajudado a convencer Maria de que também nela poderia acontecer algo de maravilhoso e fora dos padrões e esquemas tradicionais; por isso, respondeu ela sim ao anjo, tomando uma decisão corajosa e ousada. Com efeito, na época, a mulher não tinha poder de decisão sobre nada; sendo solteira, deveria consultar o pai ou o irmão mais velho, antes de qualquer decisão; sendo casada, consultava o marido. A decisão livre de Maria, sozinha, sem ter um homem que decidisse por ela, representa um grande passo para o protagonismo da mulher na história, que Lucas introduz em seu Evangelho. E esse protagonismo é evidenciado de maneira privilegiada no evangelho de hoje, ao colocar duas mulheres como protagonistas da cena.

O texto começa afirmando que «Naqueles dias, Maria partiu para a região montanhosa, dirigindo apressadamente, a uma cidade da Judeia» (v. 39). O indicativo temporal “naqueles dias” revela a relação e a continuidade deste episódio com o anteriores, na trama narrativa de Lucas; quer dizer que, pouco depois da anunciação do anjo, “Maria partiu”. O texto não diz quais foram os motivos da partida de Maria; muitos interpretam como a vontade de Maria colocar-se a serviço do próximo, no caso, da sua parenta Isabel; porém, o texto não evidencia nem sinaliza para isso. O destino também é vago e genérico: “a uma cidade da Judeia”, na “região montanhosa”. Partir, sair de si “apressadamente”, é a postura de quem acolhe a salvação oferecida por Deus, postura essa assumida por Maria. Dizer sim aos propósitos de Deus, como ela fez, é deixar-se transformar pela sua Palavra. Quem sente a ação de Deus em sua vida, põe-se em marcha, não permanece na mesma posição, nem com a mesma mentalidade; é isso que o evangelista quer destacar. Como a gravidez de Isabel foi colocada pelo anjo como exemplo de que nada é impossível para Deus, a viagem de Maria pode também ser interpretada como expressão da sua curiosidade e vontade de comprovar a autenticidade do anúncio. Além disso, há uma clara intenção de Lucas de colocar as duas mães juntas: a jovem e a anciã, a virgem e a estéril, reforçando que, nas contradições da história, Deus se manifesta; colocando juntas as mães, também os filhos se encontram, os protagonistas implícitos da cena.

Ao apresentar Maria em viagem, Lucas antecipa um dos temas mais fortes da sua teologia: o caminho, como figura da dinâmica do Reino e da Palavra de Deus. Desde essa visita de Maria até a chegada de Paulo prisioneiro em Roma (At 28), Lucas faz de sua dupla obra – Evangelho e Atos dos Apóstolos – um longo itinerário da Palavra. Com isso, ele mostra que, mesmo encontrando obstáculos, a Palavra não pode ficar presa em nenhuma estrutura; ela deve ecoar sempre. Maria se torna, assim, modelo antecipado do discipulado que Jesus começará a formar logo no início da sua vida pública. É também imagem do modelo da Igreja querida por Jesus e tão bem apresentada por Lucas: uma Igreja em saída, ou seja, em estado permanente de missão. O evangelista não perde tempo descrevendo a viagem, e logo diz que Maria chegou ao destino: «Entrou na casa de Zacarias e cumprimentou Isabel» (v. 40). De fato, o objetivo de Lucas é mostrar a chegada da Boa-Nova e com os seus efeitos. Zacarias, o esposo de Isabel, foi o primeiro destinatário do anúncio do anjo (Lc 1,8-23), mas não acreditou, por isso aqui é um personagem secundário. É recordado apenas como o dono da casa. O que o evangelista quer mostrar é a experiência de fé das duas mulheres sendo partilhada.  A fé transformadora vivida por cada uma delas não poderia ficar oculta, por isso Lucas coloca as duas frente a frente; e essa fé, quando partilhada, cresce e se fortalece, como mostra a sequência do texto: a companhia de Maria faz aumentar as convicções da fé de Isabel e, consequentemente, de Maria, culminando no Magnificat (Lc 1,46-56), a sua explosão de louvor a Deus.

O evangelista não revela o conteúdo da saudação de Maria, mas certamente foi o tradicional shalom hebraico, saudação típica do povo judeu, no qual se expressa a totalidade dos bens messiânicos. Como modelo de discípulo e discípula, Maria antecipa o que Jesus pedirá aos seus discípulos quando enviá-los, mais tarde: «Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: paz para esta casa» (Lc 10,5). Essa saudação não é um mero palavreado, mas é comunicação de vida, doação de amor e de energia transformadora. Por isso, o evangelista diz que «Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança pulou no seu ventre e Isabel ficou cheia do Espírito Santo» (v. 41). Mãe e filho, ambos repletos do Espírito Santo, reagem, cada um à sua maneira e conforme as suas possibilidades, à chegada do Salvador que Maria já carregava em si: o filho pulando no ventre e a mãe com palavras, tornando-se verdadeira profetisa. Com efeito, tanto Isabel quanto a criança em seu ventre reconhecem que é o Senhor quem, por meio de sua mãe, está os visitando. Isso ela mesma vai expressar com palavras, na sequência do texto, agindo como profetisa e plenamente reconhecedora das maravilhas de Deus realizadas para ela e Maria.

De fato, após a saudação de Maria, o evangelista dá a palavra a Isabel que faz grandes declarações de fé e alegria diante de tudo o que estava contemplando em sua vida, e com razão. Ora, como Zacarias tinha ficado mudo, devido à sua incredulidade diante do anúncio do anjo (Lc 1,20), Isabel já não tinha com quem dialogar sobre os últimos acontecimentos; precisava de alguém que lhe ouvisse, por isso, é só ela quem fala na cena: «Com grande grito, exclamou: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre! Logo que a tua saudação chegou aos meus ouvidos, a criança pulou de alegria em meu ventre. Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar? Bem-aventurada aquela que acreditou, porque será cumprido o que o Senhor lhe prometeu”» (vv. 42-45). Inspirada no Antigo Testamento, Isabel expressa a imensa alegria de ser contemplada com os favores de Deus, principalmente a misericórdia. A sua anterior condição de estéril era motivo de vergonha e humilhação; provavelmente, ninguém no povoado lhe dirigia a palavra, a não ser com insultos, e ninguém a escutava, pois, devido à esterilidade, ela era considerada amaldiçoada. O menino concebido em seu ventre provoca um verdadeiro êxodo em sua vida, transformando-a em mulher livre, com vez e voz, para expressar seus anseios e alegrias. Tudo o que ela diz de Maria e do fruto do seu ventre – Jesus – serve de lição para a humanidade inteira, em todos os tempos: não basta que aconteça a visita do Senhor, é necessário que aqueles que recebem a visita o reconheçam. E o Senhor não para de visitar o seu povo.

Lucas constrói o discurso de Isabel recorrendo ao Antigo Testamento para mostrar, sobretudo, o cumprimento das antigas promessas, e o começo da distinção entre João Batista e Jesus. A primeira declaração é também a primeira bem-aventurança do Evangelho de Lucas; as bem-aventuranças proclamadas por Jesus serão expressão do retrato ideal do seu discipulado; aqui, Maria é, antecipadamente, proclamada a discípula ideal. Ora, a missão do discípulo e discípula de Jesus consiste em torná-lo presente onde quer que o discípulo esteja. Por isso, Isabel reconhece Maria como a primeira bem-aventurada, pois ela já era portadora da salvação e do Salvador, antes mesmo do nascimento da criança. Na época, quem interpretava os sinais de Deus na história eram os sacerdotes e mestres da Lei. Aqui, Lucas apresenta uma verdadeira reviravolta na história, ao mostrar uma mulher, até pouco tempo vista como amaldiçoada, devido à esterilidade, percebendo e interpretando os sinais de Deus presentes, não mais nas estruturas faraônicas do templo, mas na simplicidade de outra humilde mulher. E, já consciente de ser a mãe do precursor, e feliz por isso, Isabel reconhece que Maria é a mãe do Senhor, reconhecendo-se até indigna de recebê-la. Ora, como estéril, Isabel era vista como esquecida por Deus; de repente, cheia do Espírito Santo, se reconhece como hospedeira do Senhor, presente ainda no ventre de sua mãe, Maria. É o começo de uma nova história. É a expressão dos(a) humildes que reconhecem reciprocamente suas forças, seus valores e seu poder de transformação quando se dispõem a viver conforme a Palavra de Deus.

A expressão de Isabel, sentindo-se indigna de receber a mãe do seu Senhor recorda a declaração de Davi, quando estava para receber a arca da aliança em sua casa: «Como virá a Arca de Iahweh para minha casa?» (2 Sm 6,9). Com isso, Lucas declara Maria como a nova arca da aliança, mas muito superior à antiga. Na antiga arca, estava a Lei escrita em tábuas de pedra, enquanto em Maria estava o próprio autor da Lei, não mais escrita em pedras, mas no coração, cujo efeito sobre o povo já não é o medo, mas a irradiação do amor e da misericórdia de Deus. E Isabel identifica o motivo da bem-aventurança de Maria, enquanto nova arca da aliança, e o que a habilita como modelo de discípula: a fé, pois é «Bem-aventurada aquela que acreditou»Essa declaração é muito importante! Talvez a mais relevante de todo o texto! O que Isabel identifica como excepcional em Maria não é a virgindade ou a prática de “bons costumes”, mas a fé. De fato, o texto bíblico, sobretudo o Evangelho de Lucas, aquele que mais fala sobre Maria, não apresenta um currículo da sua vida como atrativo para o chamado de Deus; apenas a descreve como alguém que foi agraciada por Deus e, diante disso, respondeu sim, deu uma adesão de fé. E, como mostra a Bíblia, Deus costuma escolher o que é historicamente rejeitado, excluído, humilhado, sem o mínimo poder de atração do ponto de vista humano. De fato, o que conta para Deus é a abertura ao seu projeto libertador. Maria abraçou esse projeto, por isso foi proclamada bem-aventurada. Bem-aventurança é a característica distintiva das pessoas preferidas de Deus, como o próprio Jesus irá proclamar: pobres, famintos, humildes e perseguidos (Lc 5,20-23). Maria é síntese de tudo isso. Por isso, é síntese e modelo da discípula e do discípulo ideal. 

Quem adere ao projeto libertador de Deus carrega em si Jesus, por onde passa faz ele nascer. Que este tempo do advento recorde à Igreja que esta é a sua missão originária. Fazer Jesus nascer em cada coração é missão da Igreja e caminho de humanização para o mundo. Acolhendo o Deus que se faz humano, o humano se humaniza, verdadeiramente. E, quanto mais humano for o ser humano, mais parecido com Deus ele se torna.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, dezembro 14, 2024

REFLEXÃO PARA O 3º DOMINGO DO ADVENTO – LUCAS 3,10-18 (ANO C)

 


Todos os anos, a liturgia do segundo e terceiro domingos do advento evidencia a figura de João, o Batista ou simplesmente “o que batizava”, apresentando-o como o profeta que antecede imediatamente a missão de Jesus e, desse modo, a prepara. De fato, no itinerário catequético-espiritual proposto pelo advento, conhecer a missão e a mensagem de João é imprescindível, pois ele se aproxima verdadeiramente de Jesus. Por isso, ficou conhecido como o profeta “precursor do Messias”. Neste ano, como a liturgia do segundo domingo foi substituída pela Solenidade da Imaculada Conceição, ficou apenas este terceiro domingo para a apresentação de João como o profeta da preparação imediata da missão de Jesus. Na verdade, o evangelho de hoje – Lc 3,10-18 – mostra que João não apenas prepara, mas até antecipa a missão de Jesus. Com efeito, Lucas é o evangelista que dá mais destaque à missão de João, colocando-o sempre em paralelo com Jesus, desde o anúncio do nascimento. É claro que ele faz isso para evidenciar a superioridade de Jesus, mas não deixa de ser uma valorização da figura de João na sua obra.

O evangelho que deveria ter sido o do domingo passado – Lc 3,1-6 –, fazia uma ampla introdução à missão de João: começava afirmando que a Palavra de Deus lhe fora dirigida no deserto, nos tempos do imperador Tibério e dos sacerdotes Anás e Caifás (Lc 3,1-2), confirmando as opções de Deus pelas margens e a intolerância com os sistemas de poder vigentes na época. Faz parte do estilo literário de Lucas apresentar os eventos da história da salvação dentro da história geral, a fim de mostrar que é no mundo concreto com seus fatos, por contraditórios que seja, que Deus liberta e salva. Isso significa também uma opção teológica clara. Ele recorda os grandes personagens do mundo do império e da religião judaica, mas mostra que é aos pequenos que Deus se dirige. Naquela ocasião, ele afirmava que João pregava um batismo de conversão, se auto apresentando como a voz de quem clama no deserto (Lc 3,3-6), citando o profeta Isaías (Is 40,3-5) como fundamentação. O conteúdo da pregação de João foi saltado pela liturgia (Lc 3,7-9), mas, pela reação dos seus ouvintes no evangelho de hoje, é possível imaginar o quanto repercutiu, causando grandes efeitos em quem o escutou.

É claro que nem todas as pessoas que ouviram João gostaram da sua pregação, afinal, até de “raça de víboras” ele chamou os seus ouvintes (Lc 3,7); contudo, é certo que muita gente se interessou pelo seu ensinamento, percebendo que o modelo vigente de religião, controlado pela hierarquia do templo de Jerusalém, conivente com a dominação romana, já não permitia um encontro verdadeiro com Deus; o templo tinha se transformado em mercado, como Jesus vai denunciar, no ápice de seu ministério. Por isso, muitas pessoas que escutaram João, interessadas em conhecer mais o seu programa, o procuraram, perguntando “o que devemos fazer?”para assimilar melhor o novo jeito de relacionar-se com Deus. A curiosidade dessas pessoas mostra a decadência da antiga religião e como os caminhos estavam, realmente, sendo aplainados para a vinda do Senhor ao encontro da humanidade. O evangelho de hoje apresenta a reação de três grupos de ouvintes do profeta precursor – multidões, cobradores de impostos e soldados – e as respostas concretas do próprio João a esses grupos. Assim, de uma pregação ampla e generalizada, João passa a uma mais particularizada, de acordo com as situações específicas de quem lhe procurava.

Feita a devida introdução contextualizadora, olhemos, então, para o texto de hoje, que começa afirmando que «As multidões perguntavam a João: “Que devemos fazer?”» (v. 10). Por multidões (em grego: ὄχλοις – oklois), supõe-se que se trate de um grupo amplo e diversificado, mas composto majoritariamente por gente simples e pobre, como as multidões que seguirão Jesus posteriormente. A pergunta sobre o que fazer reflete um sincero desejo de acolher a proposta de conversão apresentada por João, para entrar na nova dinâmica da salvação. E chega a ser surpreendente a resposta de João: «Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida faça o mesmo!» (v. 11). Ora, ele estava anunciando um batismo de conversão e, na época, o que os líderes religiosos exigiam como sinais de conversão era o jejum, a intensidade na oração, a penitência, a oferta de sacrifícios no templo, uma solene profissão de fé e, por último, a esmola. A resposta de João foi uma novidade para as multidões, embora estivesse plenamente alinhada à pregação dos profetas do Antigo Testamento, o que reforça o quanto ele antecipa, aqui, a missão de Jesus. É claro que a mensagem dos antigos profetas nunca perdeu a validade, mas tinha sido ofuscada pela hierarquia sacerdotal, interessada em lucrar às custas dos sacrifícios oferecidos no templo. Alimento e vestimenta são necessidades básicas do ser humano, coisas do cotidiano, e conversão é algo concreto, diz respeito ao modo de gerir a vida e a relação com o próximo; assim, é convertido quem não pensa em acumular, quem partilha com o próximo, não o que lhe sobra, mas aquilo de que o próximo necessita. João parte do que é mais simples: roupa e alimento, para mostrar que a partilha é indispensável, até mesmo para os que tem pouco.

Na sequência, o texto apresenta, de modo surpreendente, membros de dois grupos específicos também sedentos de conversão e interessados pela proposta de João: cobradores de impostos e soldados (vv. 12-14). Aqui está uma das grandes novidades do Evangelho de Lucas. É claro que nem todos os cobradores de impostos e soldados estavam ali para ouvir o Batista; certamente, muitos tinham ido até para vigiá-lo. Toda vez que surgia um novo pregador e multidões se reuniam para ouvi-lo, o aparelho repressor do estado (império romano), em conluio com a religião, ligava o sinal de alerta e passava a monitorar, a fim de evitar possíveis motins. Por isso, é muito importante o interesse de cobradores de impostos e soldados pela pregação de João. Provavelmente, foram para espioná-lo e terminaram se interessando pela pregação, que consistia num forte convite à conversão. Ora, Cobradores de impostos e soldados eram as profissões mais odiadas da época, na Palestina. Ambos os grupos, eram colaboradores diretos da administração romana e, por isso, muito mal vistos pelo povo, inclusive excluídos da religião, principalmente os cobradores de impostos. Na hierarquia socioeconômica, estavam bem posicionados, mas religiosamente eram pessoas marginalizadas. Somente Lucas apresenta esses grupos interessados em conversão, o que reforça a sua teologia da inclusão e da universalidade da salvação: ninguém é excluído pela condição social, étnica ou religiosa; a salvação é oferecida a toda a humanidade, e não a grupos privilegiados específicos. De fato no decorrer da sua obra, Lucas vai mostrar a salvação sendo acolhida por cobradores de impostos e soldados (Lc 5,27-39; 19,1-10; At 10,1-48).

A pergunta dos cobradores de impostos e dos soldados é a mesma das multidões: “O que devemos fazer?”. Essa pergunta funciona como um refrão neste trecho do evangelho, e como um convite do evangelista aos seus leitores de todos os tempos para também se perguntarem sobre o que devem fazer para viver o Evangelho e fazer o Reino de Deus acontecer. E o evangelista mostra que todos tem responsabilidade e devem colaborar nesse processo.  Ninguém deve sentir-se isento de responsabilidade na construção do Reino de Deus, e nem excluído. Também dos cobradores de impostos, João não exige penitência nem sacrifícios, nem qualquer gesto devocional, mas apenas a prática de justiça: «Não cobreis mais do que foi estabelecido» (v. 13). Por serem representantes do opressivo sistema romano de dominação, os cobradores de impostos eram automaticamente mal vistos, e a população tinha toda razão em vê-los negativamente. Ora, os impostos que Roma cobrava já eram bastante altos, além disso, os cobradores ainda exigiam quantias muito maiores do que as estabelecidas, assim, além do salário, ainda lucravam com a exploração, pois o que cobravam acima dos valores legais ficava para si; eram reconhecidos publicamente como corruptos e ladrões profissionais. A resposta de João a eles também é surpreendente: basta agir corretamente. Não deveriam abandonar a profissão, pois dependiam dela para sobreviver; deviam, no entanto, exercê-la com justiça e ética.

A exigência aos soldados tem o mesmo sentido: «Não tomeis à força dinheiro de ninguém, nem façais falsas acusações; ficai satisfeitos com o vosso salário!» (v. 14). Como se vê, também a eles, João não pede penitência, nem devoção, nem que abandonem a profissão, mas exige que a exerçam com justiça, retidão e sem violência. Muitas vezes, os soldados trabalhavam juntos com os cobradores de impostos, talvez por isso Lucas tenha recordado e mencionado os dois grupos em paralelo. Ora, como os cobradores de impostos exageravam nas taxas, cobrando além do estabelecido, muitas pessoas se recusavam a pagar e, diante disso, os cobradores pediam ajuda aos soldados, tomando o dinheiro à força, e depois repartiam entre si o valor cobrado além do estabelecido oficialmente. Quando as pessoas não tinham como pagar o exigido de maneira alguma, os soldados praticavam violência, inclusive violentando as mulheres e as crianças. Havia abuso de poder, corrupção generalizada e conivência entre os dois grupos. De todo o aparato administrativo, os cobradores de impostos e os soldados eram os que estavam diretamente em contato com o povo, por isso eram muito rejeitados e, sem dúvidas, davam muitos motivos para isso. Por isso, eram totalmente excluídos pela religião, inclusive o templo tinha seus próprios guardas, porque os soldados romanos eram considerados impuros e não podiam entrar lá. Com maestria, Lucas mostra João antecipando claramente a missão de Jesus. O que João pede aqui, como sinal de conversão, é praticamente o mesmo que Jesus exigirá como critério de pertença ao Reino de Deus.

A expectativa pela chegada do messias era muito grande, inclusive muitos pregadores, vez por outra, se apresentavam como tal; por isso, muitos perguntavam se João não seria o próprio messias (v. 15), até pela novidade da sua pregação. De acordo com o evangelista, o próprio João esclareceu não ser ele o messias, em atitude de humildade e reconhecimento do seu verdadeiro papel: «Eu vos batizo com água, mas virá aquele que é mais forte do que eu. Eu não sou digno de desamarrar a correia de suas sandálias. Ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo. Ele virá com a pá na mão: vai limpar sua eira e recolher o trigo no celeiro; mas a palha ele a queimará no fogo que não se apaga» (v. 16-17). Esse esclarecimento era muito necessário, tanto para os ouvintes diretos da pregação de João, quanto para a comunidade do evangelista e os futuros leitores de sua obra, como nós. O próprio Lucas registra, no segundo volume de sua obra – Atos dos Apóstolos –, que o batismo de João continuava sendo realizado como se fosse o batismo cristão, pois as pessoas não compreendiam a diferença entre um e outro, e isso gerava confusão em algumas comunidades, como em Éfeso, por exemplo (At 19,1-7). Por isso, a necessidade de fazer a distinção com o uso de imagens tão fortes. Ora, o movimento de João não desapareceu automaticamente após a sua morte; tudo indica que continuou e cresceu, chegando até a rivalizar com o movimento de Jesus. Após a morte de cada um, houve momentos de tensão em que os seguidores de cada um disputavam sobre qual era o maior dos dois mestres. Isso justifica a insistência dos evangelistas, sobretudo de Lucas, em mostrar o próprio João reconhecendo a superioridade de Jesus.

O batismo de João, com água, era apenas um sinal, um alerta sobre o tempo novo que estava por vir; batismo por excelência é o de Jesus, com o Espírito Santo; esse batismo é definitivo, é o cumprimento de profecias e critério para Israel e toda a humanidade voltar à condição de povo de Deus (Ez 36,24-28), e ao mesmo tempo sinal de universalização da salvação: o Espírito Santo, como superação e substituição da Lei, dará condições, ao ser acolhido, para que todos os povos sejam contemplados com a libertação inaugurada por Jesus. O uso das imagens da pá e do fogo não é de julgamento, mas significa a força da mensagem de Jesus (v. 17); a ele não interessam as aparências, mas somente os frutos; assim como só fica o trigo no celeiro, só pertence ao Reino quem vive segundo a justiça e o amor; a palha a ser queimada é a injustiça, a indiferença, o orgulho, a ambição e todos os males que afetam a dignidade humana, e não as pessoas. O “fogo que não se apaga” não é sinal de condenação, significa a falta de sentido para a existência, como é a vida de quem não faz opção pelo Reino.

Conclui o evangelista afirmando que «ainda de muitos outros modos, João anunciava ao povo a Boa-Nova» (v. 18). Aqui Lucas reforça que a pregação de João constituía também uma boa notícia, como será a de Jesus. Essa boa notícia era, sobretudo, a possibilidade de cada pessoa se relacionar com Deus sem depender das imposições do sistema religioso vigente. Fazer parte do Reino de Deus não depende da autorização de um sistema religioso, mas da atitude interior e decisão pessoal de cada um e cada uma que descobriu «o que é preciso fazer». E o que realmente é preciso fazer é humanizar-se e ajudar na humanização do mundo, a partir da mensagem de Jesus. É importante perceber e recordar que a nenhum dos grupos que o procuraram João pediu para se tornarem pessoas mais religiosas e devotas; pediu apenas que se tornassem pessoas melhores, se solidarizando com o próximo e praticando a justiça. A religião só tem sentido se nos ajudar a fazer isso!

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA QUARESMA – LUCAS 15,1-3.11-32 ANO C

A liturgia do quarto domingo do tempo da Quaresma, deste ano C, nos dá a oportunidade de ler mais uma passagem exclusiva do Terceiro Evangel...