Todos os anos, a liturgia do
segundo e terceiro domingos do advento evidencia a figura de João, o Batista ou
simplesmente “o que batizava”, apresentando-o como o profeta que antecede
imediatamente a missão de Jesus e, desse modo, a prepara. De fato, no itinerário
catequético-espiritual proposto pelo advento, conhecer a missão e a mensagem de
João é imprescindível, pois ele se aproxima verdadeiramente de Jesus. Por isso,
ficou conhecido como o profeta “precursor do Messias”. Neste ano, como a liturgia
do segundo domingo foi substituída pela Solenidade da Imaculada Conceição,
ficou apenas este terceiro domingo para a apresentação de João como o profeta
da preparação imediata da missão de Jesus. Na verdade, o evangelho de hoje – Lc
3,10-18 – mostra que João não apenas prepara, mas até antecipa a missão de
Jesus. Com efeito, Lucas é o evangelista que dá mais destaque à missão de João,
colocando-o sempre em paralelo com Jesus, desde o anúncio do nascimento. É claro
que ele faz isso para evidenciar a superioridade de Jesus, mas não deixa de ser
uma valorização da figura de João na sua obra.
O evangelho que deveria ter sido
o do domingo passado – Lc 3,1-6 –, fazia uma ampla introdução à missão de João:
começava afirmando que a Palavra de Deus lhe fora dirigida no deserto, nos
tempos do imperador Tibério e dos sacerdotes Anás e Caifás (Lc 3,1-2),
confirmando as opções de Deus pelas margens e a intolerância com os sistemas de
poder vigentes na época. Faz parte do estilo literário de Lucas apresentar os
eventos da história da salvação dentro da história geral, a fim de mostrar que
é no mundo concreto com seus fatos, por contraditórios que seja, que Deus liberta
e salva. Isso significa também uma opção teológica clara. Ele recorda os
grandes personagens do mundo do império e da religião judaica, mas mostra que é
aos pequenos que Deus se dirige. Naquela ocasião, ele afirmava que João pregava
um batismo de conversão, se auto apresentando como a voz de quem clama no
deserto (Lc 3,3-6), citando o profeta Isaías (Is 40,3-5) como fundamentação. O
conteúdo da pregação de João foi saltado pela liturgia (Lc 3,7-9), mas, pela
reação dos seus ouvintes no evangelho de hoje, é possível imaginar o quanto
repercutiu, causando grandes efeitos em quem o escutou.
É claro que nem todas as pessoas
que ouviram João gostaram da sua pregação, afinal, até de “raça de
víboras” ele chamou os seus ouvintes (Lc 3,7); contudo, é certo que
muita gente se interessou pelo seu ensinamento, percebendo que o modelo vigente
de religião, controlado pela hierarquia do templo de Jerusalém, conivente com a
dominação romana, já não permitia um encontro verdadeiro com Deus; o templo
tinha se transformado em mercado, como Jesus vai denunciar, no ápice de seu
ministério. Por isso, muitas pessoas que escutaram João, interessadas em
conhecer mais o seu programa, o procuraram, perguntando “o que devemos
fazer?”, para assimilar melhor o novo jeito de relacionar-se
com Deus. A curiosidade dessas pessoas mostra a decadência da antiga religião e
como os caminhos estavam, realmente, sendo aplainados para a vinda do Senhor ao
encontro da humanidade. O evangelho de hoje apresenta a reação de três grupos
de ouvintes do profeta precursor – multidões, cobradores de impostos e soldados
– e as respostas concretas do próprio João a esses grupos. Assim, de uma
pregação ampla e generalizada, João passa a uma mais particularizada, de acordo
com as situações específicas de quem lhe procurava.
Feita a devida introdução contextualizadora,
olhemos, então, para o texto de hoje, que começa afirmando que «As multidões
perguntavam a João: “Que devemos fazer?”» (v. 10). Por
multidões (em grego: ὄχλοις – oklois), supõe-se que se trate de um grupo amplo
e diversificado, mas composto majoritariamente por gente simples e pobre, como
as multidões que seguirão Jesus posteriormente. A pergunta sobre o que fazer reflete
um sincero desejo de acolher a proposta de conversão apresentada por João, para
entrar na nova dinâmica da salvação. E chega a ser surpreendente a resposta de
João: «Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver
comida faça o mesmo!» (v. 11). Ora, ele estava anunciando um batismo
de conversão e, na época, o que os líderes religiosos exigiam como sinais de
conversão era o jejum, a intensidade na oração, a penitência, a oferta de
sacrifícios no templo, uma solene profissão de fé e, por último, a esmola. A
resposta de João foi uma novidade para as multidões, embora estivesse
plenamente alinhada à pregação dos profetas do Antigo Testamento, o que reforça
o quanto ele antecipa, aqui, a missão de Jesus. É claro que a mensagem dos
antigos profetas nunca perdeu a validade, mas tinha sido ofuscada pela
hierarquia sacerdotal, interessada em lucrar às custas dos sacrifícios
oferecidos no templo. Alimento e vestimenta são necessidades básicas do ser
humano, coisas do cotidiano, e conversão é algo concreto, diz respeito ao modo
de gerir a vida e a relação com o próximo; assim, é convertido quem não pensa
em acumular, quem partilha com o próximo, não o que lhe sobra, mas aquilo de
que o próximo necessita. João parte do que é mais simples: roupa e alimento,
para mostrar que a partilha é indispensável, até mesmo para os que tem pouco.
Na sequência, o texto apresenta,
de modo surpreendente, membros de dois grupos específicos também sedentos de
conversão e interessados pela proposta de João: cobradores de impostos e
soldados (vv. 12-14). Aqui está uma das grandes novidades do Evangelho de
Lucas. É claro que nem todos os cobradores de impostos e soldados estavam ali
para ouvir o Batista; certamente, muitos tinham ido até para vigiá-lo. Toda vez
que surgia um novo pregador e multidões se reuniam para ouvi-lo, o aparelho
repressor do estado (império romano), em conluio com a religião, ligava o sinal
de alerta e passava a monitorar, a fim de evitar possíveis motins. Por isso, é
muito importante o interesse de cobradores de impostos e soldados pela pregação
de João. Provavelmente, foram para espioná-lo e terminaram se interessando pela
pregação, que consistia num forte convite à conversão. Ora, Cobradores de
impostos e soldados eram as profissões mais odiadas da época, na Palestina.
Ambos os grupos, eram colaboradores diretos da administração romana e, por
isso, muito mal vistos pelo povo, inclusive excluídos da religião,
principalmente os cobradores de impostos. Na hierarquia socioeconômica,
estavam bem posicionados, mas religiosamente eram pessoas marginalizadas.
Somente Lucas apresenta esses grupos interessados em conversão, o que reforça a
sua teologia da inclusão e da universalidade da salvação: ninguém é excluído
pela condição social, étnica ou religiosa; a salvação é oferecida a toda a
humanidade, e não a grupos privilegiados específicos. De fato no decorrer da
sua obra, Lucas vai mostrar a salvação sendo acolhida por cobradores de
impostos e soldados (Lc 5,27-39; 19,1-10; At 10,1-48).
A pergunta dos cobradores de
impostos e dos soldados é a mesma das multidões: “O que devemos fazer?”.
Essa pergunta funciona como um refrão neste trecho do evangelho, e como um
convite do evangelista aos seus leitores de todos os tempos para também se
perguntarem sobre o que devem fazer para viver o Evangelho e fazer o Reino de
Deus acontecer. E o evangelista mostra que todos tem responsabilidade e devem
colaborar nesse processo. Ninguém deve sentir-se isento de
responsabilidade na construção do Reino de Deus, e nem excluído. Também dos
cobradores de impostos, João não exige penitência nem sacrifícios, nem qualquer
gesto devocional, mas apenas a prática de justiça: «Não cobreis mais do
que foi estabelecido» (v. 13). Por serem representantes do opressivo
sistema romano de dominação, os cobradores de impostos eram automaticamente mal
vistos, e a população tinha toda razão em vê-los negativamente. Ora, os
impostos que Roma cobrava já eram bastante altos, além disso, os cobradores
ainda exigiam quantias muito maiores do que as estabelecidas, assim, além do
salário, ainda lucravam com a exploração, pois o que cobravam acima dos valores
legais ficava para si; eram reconhecidos publicamente como corruptos e ladrões
profissionais. A resposta de João a eles também é surpreendente: basta agir
corretamente. Não deveriam abandonar a profissão, pois dependiam dela para
sobreviver; deviam, no entanto, exercê-la com justiça e ética.
A exigência aos soldados tem o
mesmo sentido: «Não tomeis à força dinheiro de ninguém, nem façais
falsas acusações; ficai satisfeitos com o vosso salário!» (v.
14). Como se vê, também a eles, João não pede penitência, nem devoção, nem que
abandonem a profissão, mas exige que a exerçam com justiça, retidão e sem
violência. Muitas vezes, os soldados trabalhavam juntos com os cobradores de
impostos, talvez por isso Lucas tenha recordado e mencionado os dois grupos em
paralelo. Ora, como os cobradores de impostos exageravam nas taxas, cobrando
além do estabelecido, muitas pessoas se recusavam a pagar e, diante disso, os
cobradores pediam ajuda aos soldados, tomando o dinheiro à força, e depois
repartiam entre si o valor cobrado além do estabelecido oficialmente. Quando as
pessoas não tinham como pagar o exigido de maneira alguma, os soldados
praticavam violência, inclusive violentando as mulheres e as crianças. Havia
abuso de poder, corrupção generalizada e conivência entre os dois grupos. De
todo o aparato administrativo, os cobradores de impostos e os soldados eram os
que estavam diretamente em contato com o povo, por isso eram muito rejeitados
e, sem dúvidas, davam muitos motivos para isso. Por isso, eram totalmente
excluídos pela religião, inclusive o templo tinha seus próprios guardas, porque
os soldados romanos eram considerados impuros e não podiam entrar lá. Com
maestria, Lucas mostra João antecipando claramente a missão de Jesus. O que
João pede aqui, como sinal de conversão, é praticamente o mesmo que Jesus
exigirá como critério de pertença ao Reino de Deus.
A expectativa pela chegada do
messias era muito grande, inclusive muitos pregadores, vez por outra, se
apresentavam como tal; por isso, muitos perguntavam se João não seria o próprio
messias (v. 15), até pela novidade da sua pregação. De acordo com o evangelista,
o próprio João esclareceu não ser ele o messias, em atitude de humildade e
reconhecimento do seu verdadeiro papel: «Eu vos batizo com água, mas
virá aquele que é mais forte do que eu. Eu não sou digno de desamarrar a
correia de suas sandálias. Ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo. Ele
virá com a pá na mão: vai limpar sua eira e recolher o trigo no celeiro; mas a
palha ele a queimará no fogo que não se apaga» (v. 16-17). Esse
esclarecimento era muito necessário, tanto para os ouvintes diretos da pregação
de João, quanto para a comunidade do evangelista e os futuros leitores de sua
obra, como nós. O próprio Lucas registra, no segundo volume de sua obra – Atos dos
Apóstolos –, que o batismo de João continuava sendo realizado como se fosse o
batismo cristão, pois as pessoas não compreendiam a diferença entre um e outro,
e isso gerava confusão em algumas comunidades, como em Éfeso, por exemplo (At
19,1-7). Por isso, a necessidade de fazer a distinção com o uso de imagens tão
fortes. Ora, o movimento de João não desapareceu automaticamente após a sua
morte; tudo indica que continuou e cresceu, chegando até a rivalizar com o
movimento de Jesus. Após a morte de cada um, houve momentos de tensão em que os
seguidores de cada um disputavam sobre qual era o maior dos dois mestres. Isso
justifica a insistência dos evangelistas, sobretudo de Lucas, em mostrar o
próprio João reconhecendo a superioridade de Jesus.
O batismo de
João, com água, era apenas um sinal, um alerta sobre o tempo novo que estava
por vir; batismo por excelência é o de Jesus, com o Espírito Santo; esse
batismo é definitivo, é o cumprimento de profecias e critério para Israel e
toda a humanidade voltar à condição de povo de Deus (Ez 36,24-28), e ao mesmo
tempo sinal de universalização da salvação: o Espírito Santo, como superação e
substituição da Lei, dará condições, ao ser acolhido, para que todos os povos
sejam contemplados com a libertação inaugurada por Jesus. O uso das imagens da
pá e do fogo não é de julgamento, mas significa a força da mensagem de Jesus
(v. 17); a ele não interessam as aparências, mas somente os frutos; assim como
só fica o trigo no celeiro, só pertence ao Reino quem vive segundo a justiça e
o amor; a palha a ser queimada é a injustiça, a indiferença, o orgulho, a
ambição e todos os males que afetam a dignidade humana, e não as pessoas. O
“fogo que não se apaga” não é sinal de condenação, significa a falta de sentido
para a existência, como é a vida de quem não faz opção pelo Reino.
Conclui o evangelista afirmando
que «ainda de muitos outros modos, João anunciava ao povo a Boa-Nova» (v.
18). Aqui Lucas reforça que a pregação de João constituía também uma boa
notícia, como será a de Jesus. Essa boa notícia era, sobretudo, a possibilidade
de cada pessoa se relacionar com Deus sem depender das imposições do sistema
religioso vigente. Fazer parte do Reino de Deus não depende da autorização de
um sistema religioso, mas da atitude interior e decisão pessoal de cada um e
cada uma que descobriu «o que é preciso fazer». E o que realmente é
preciso fazer é humanizar-se e ajudar na humanização do mundo, a partir da
mensagem de Jesus. É importante perceber e recordar que a nenhum dos grupos que
o procuraram João pediu para se tornarem pessoas mais religiosas e devotas;
pediu apenas que se tornassem pessoas melhores, se solidarizando com o próximo
e praticando a justiça. A religião só tem sentido se nos ajudar a fazer isso!
Pe. Francisco Cornelio F.
Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN