sábado, dezembro 14, 2024

REFLEXÃO PARA O 3º DOMINGO DO ADVENTO – LUCAS 3,10-18 (ANO C)

 


Todos os anos, a liturgia do segundo e terceiro domingos do advento evidencia a figura de João, o Batista ou simplesmente “o que batizava”, apresentando-o como o profeta que antecede imediatamente a missão de Jesus e, desse modo, a prepara. De fato, no itinerário catequético-espiritual proposto pelo advento, conhecer a missão e a mensagem de João é imprescindível, pois ele se aproxima verdadeiramente de Jesus. Por isso, ficou conhecido como o profeta “precursor do Messias”. Neste ano, como a liturgia do segundo domingo foi substituída pela Solenidade da Imaculada Conceição, ficou apenas este terceiro domingo para a apresentação de João como o profeta da preparação imediata da missão de Jesus. Na verdade, o evangelho de hoje – Lc 3,10-18 – mostra que João não apenas prepara, mas até antecipa a missão de Jesus. Com efeito, Lucas é o evangelista que dá mais destaque à missão de João, colocando-o sempre em paralelo com Jesus, desde o anúncio do nascimento. É claro que ele faz isso para evidenciar a superioridade de Jesus, mas não deixa de ser uma valorização da figura de João na sua obra.

O evangelho que deveria ter sido o do domingo passado – Lc 3,1-6 –, fazia uma ampla introdução à missão de João: começava afirmando que a Palavra de Deus lhe fora dirigida no deserto, nos tempos do imperador Tibério e dos sacerdotes Anás e Caifás (Lc 3,1-2), confirmando as opções de Deus pelas margens e a intolerância com os sistemas de poder vigentes na época. Faz parte do estilo literário de Lucas apresentar os eventos da história da salvação dentro da história geral, a fim de mostrar que é no mundo concreto com seus fatos, por contraditórios que seja, que Deus liberta e salva. Isso significa também uma opção teológica clara. Ele recorda os grandes personagens do mundo do império e da religião judaica, mas mostra que é aos pequenos que Deus se dirige. Naquela ocasião, ele afirmava que João pregava um batismo de conversão, se auto apresentando como a voz de quem clama no deserto (Lc 3,3-6), citando o profeta Isaías (Is 40,3-5) como fundamentação. O conteúdo da pregação de João foi saltado pela liturgia (Lc 3,7-9), mas, pela reação dos seus ouvintes no evangelho de hoje, é possível imaginar o quanto repercutiu, causando grandes efeitos em quem o escutou.

É claro que nem todas as pessoas que ouviram João gostaram da sua pregação, afinal, até de “raça de víboras” ele chamou os seus ouvintes (Lc 3,7); contudo, é certo que muita gente se interessou pelo seu ensinamento, percebendo que o modelo vigente de religião, controlado pela hierarquia do templo de Jerusalém, conivente com a dominação romana, já não permitia um encontro verdadeiro com Deus; o templo tinha se transformado em mercado, como Jesus vai denunciar, no ápice de seu ministério. Por isso, muitas pessoas que escutaram João, interessadas em conhecer mais o seu programa, o procuraram, perguntando “o que devemos fazer?”para assimilar melhor o novo jeito de relacionar-se com Deus. A curiosidade dessas pessoas mostra a decadência da antiga religião e como os caminhos estavam, realmente, sendo aplainados para a vinda do Senhor ao encontro da humanidade. O evangelho de hoje apresenta a reação de três grupos de ouvintes do profeta precursor – multidões, cobradores de impostos e soldados – e as respostas concretas do próprio João a esses grupos. Assim, de uma pregação ampla e generalizada, João passa a uma mais particularizada, de acordo com as situações específicas de quem lhe procurava.

Feita a devida introdução contextualizadora, olhemos, então, para o texto de hoje, que começa afirmando que «As multidões perguntavam a João: “Que devemos fazer?”» (v. 10). Por multidões (em grego: ὄχλοις – oklois), supõe-se que se trate de um grupo amplo e diversificado, mas composto majoritariamente por gente simples e pobre, como as multidões que seguirão Jesus posteriormente. A pergunta sobre o que fazer reflete um sincero desejo de acolher a proposta de conversão apresentada por João, para entrar na nova dinâmica da salvação. E chega a ser surpreendente a resposta de João: «Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida faça o mesmo!» (v. 11). Ora, ele estava anunciando um batismo de conversão e, na época, o que os líderes religiosos exigiam como sinais de conversão era o jejum, a intensidade na oração, a penitência, a oferta de sacrifícios no templo, uma solene profissão de fé e, por último, a esmola. A resposta de João foi uma novidade para as multidões, embora estivesse plenamente alinhada à pregação dos profetas do Antigo Testamento, o que reforça o quanto ele antecipa, aqui, a missão de Jesus. É claro que a mensagem dos antigos profetas nunca perdeu a validade, mas tinha sido ofuscada pela hierarquia sacerdotal, interessada em lucrar às custas dos sacrifícios oferecidos no templo. Alimento e vestimenta são necessidades básicas do ser humano, coisas do cotidiano, e conversão é algo concreto, diz respeito ao modo de gerir a vida e a relação com o próximo; assim, é convertido quem não pensa em acumular, quem partilha com o próximo, não o que lhe sobra, mas aquilo de que o próximo necessita. João parte do que é mais simples: roupa e alimento, para mostrar que a partilha é indispensável, até mesmo para os que tem pouco.

Na sequência, o texto apresenta, de modo surpreendente, membros de dois grupos específicos também sedentos de conversão e interessados pela proposta de João: cobradores de impostos e soldados (vv. 12-14). Aqui está uma das grandes novidades do Evangelho de Lucas. É claro que nem todos os cobradores de impostos e soldados estavam ali para ouvir o Batista; certamente, muitos tinham ido até para vigiá-lo. Toda vez que surgia um novo pregador e multidões se reuniam para ouvi-lo, o aparelho repressor do estado (império romano), em conluio com a religião, ligava o sinal de alerta e passava a monitorar, a fim de evitar possíveis motins. Por isso, é muito importante o interesse de cobradores de impostos e soldados pela pregação de João. Provavelmente, foram para espioná-lo e terminaram se interessando pela pregação, que consistia num forte convite à conversão. Ora, Cobradores de impostos e soldados eram as profissões mais odiadas da época, na Palestina. Ambos os grupos, eram colaboradores diretos da administração romana e, por isso, muito mal vistos pelo povo, inclusive excluídos da religião, principalmente os cobradores de impostos. Na hierarquia socioeconômica, estavam bem posicionados, mas religiosamente eram pessoas marginalizadas. Somente Lucas apresenta esses grupos interessados em conversão, o que reforça a sua teologia da inclusão e da universalidade da salvação: ninguém é excluído pela condição social, étnica ou religiosa; a salvação é oferecida a toda a humanidade, e não a grupos privilegiados específicos. De fato no decorrer da sua obra, Lucas vai mostrar a salvação sendo acolhida por cobradores de impostos e soldados (Lc 5,27-39; 19,1-10; At 10,1-48).

A pergunta dos cobradores de impostos e dos soldados é a mesma das multidões: “O que devemos fazer?”. Essa pergunta funciona como um refrão neste trecho do evangelho, e como um convite do evangelista aos seus leitores de todos os tempos para também se perguntarem sobre o que devem fazer para viver o Evangelho e fazer o Reino de Deus acontecer. E o evangelista mostra que todos tem responsabilidade e devem colaborar nesse processo.  Ninguém deve sentir-se isento de responsabilidade na construção do Reino de Deus, e nem excluído. Também dos cobradores de impostos, João não exige penitência nem sacrifícios, nem qualquer gesto devocional, mas apenas a prática de justiça: «Não cobreis mais do que foi estabelecido» (v. 13). Por serem representantes do opressivo sistema romano de dominação, os cobradores de impostos eram automaticamente mal vistos, e a população tinha toda razão em vê-los negativamente. Ora, os impostos que Roma cobrava já eram bastante altos, além disso, os cobradores ainda exigiam quantias muito maiores do que as estabelecidas, assim, além do salário, ainda lucravam com a exploração, pois o que cobravam acima dos valores legais ficava para si; eram reconhecidos publicamente como corruptos e ladrões profissionais. A resposta de João a eles também é surpreendente: basta agir corretamente. Não deveriam abandonar a profissão, pois dependiam dela para sobreviver; deviam, no entanto, exercê-la com justiça e ética.

A exigência aos soldados tem o mesmo sentido: «Não tomeis à força dinheiro de ninguém, nem façais falsas acusações; ficai satisfeitos com o vosso salário!» (v. 14). Como se vê, também a eles, João não pede penitência, nem devoção, nem que abandonem a profissão, mas exige que a exerçam com justiça, retidão e sem violência. Muitas vezes, os soldados trabalhavam juntos com os cobradores de impostos, talvez por isso Lucas tenha recordado e mencionado os dois grupos em paralelo. Ora, como os cobradores de impostos exageravam nas taxas, cobrando além do estabelecido, muitas pessoas se recusavam a pagar e, diante disso, os cobradores pediam ajuda aos soldados, tomando o dinheiro à força, e depois repartiam entre si o valor cobrado além do estabelecido oficialmente. Quando as pessoas não tinham como pagar o exigido de maneira alguma, os soldados praticavam violência, inclusive violentando as mulheres e as crianças. Havia abuso de poder, corrupção generalizada e conivência entre os dois grupos. De todo o aparato administrativo, os cobradores de impostos e os soldados eram os que estavam diretamente em contato com o povo, por isso eram muito rejeitados e, sem dúvidas, davam muitos motivos para isso. Por isso, eram totalmente excluídos pela religião, inclusive o templo tinha seus próprios guardas, porque os soldados romanos eram considerados impuros e não podiam entrar lá. Com maestria, Lucas mostra João antecipando claramente a missão de Jesus. O que João pede aqui, como sinal de conversão, é praticamente o mesmo que Jesus exigirá como critério de pertença ao Reino de Deus.

A expectativa pela chegada do messias era muito grande, inclusive muitos pregadores, vez por outra, se apresentavam como tal; por isso, muitos perguntavam se João não seria o próprio messias (v. 15), até pela novidade da sua pregação. De acordo com o evangelista, o próprio João esclareceu não ser ele o messias, em atitude de humildade e reconhecimento do seu verdadeiro papel: «Eu vos batizo com água, mas virá aquele que é mais forte do que eu. Eu não sou digno de desamarrar a correia de suas sandálias. Ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo. Ele virá com a pá na mão: vai limpar sua eira e recolher o trigo no celeiro; mas a palha ele a queimará no fogo que não se apaga» (v. 16-17). Esse esclarecimento era muito necessário, tanto para os ouvintes diretos da pregação de João, quanto para a comunidade do evangelista e os futuros leitores de sua obra, como nós. O próprio Lucas registra, no segundo volume de sua obra – Atos dos Apóstolos –, que o batismo de João continuava sendo realizado como se fosse o batismo cristão, pois as pessoas não compreendiam a diferença entre um e outro, e isso gerava confusão em algumas comunidades, como em Éfeso, por exemplo (At 19,1-7). Por isso, a necessidade de fazer a distinção com o uso de imagens tão fortes. Ora, o movimento de João não desapareceu automaticamente após a sua morte; tudo indica que continuou e cresceu, chegando até a rivalizar com o movimento de Jesus. Após a morte de cada um, houve momentos de tensão em que os seguidores de cada um disputavam sobre qual era o maior dos dois mestres. Isso justifica a insistência dos evangelistas, sobretudo de Lucas, em mostrar o próprio João reconhecendo a superioridade de Jesus.

O batismo de João, com água, era apenas um sinal, um alerta sobre o tempo novo que estava por vir; batismo por excelência é o de Jesus, com o Espírito Santo; esse batismo é definitivo, é o cumprimento de profecias e critério para Israel e toda a humanidade voltar à condição de povo de Deus (Ez 36,24-28), e ao mesmo tempo sinal de universalização da salvação: o Espírito Santo, como superação e substituição da Lei, dará condições, ao ser acolhido, para que todos os povos sejam contemplados com a libertação inaugurada por Jesus. O uso das imagens da pá e do fogo não é de julgamento, mas significa a força da mensagem de Jesus (v. 17); a ele não interessam as aparências, mas somente os frutos; assim como só fica o trigo no celeiro, só pertence ao Reino quem vive segundo a justiça e o amor; a palha a ser queimada é a injustiça, a indiferença, o orgulho, a ambição e todos os males que afetam a dignidade humana, e não as pessoas. O “fogo que não se apaga” não é sinal de condenação, significa a falta de sentido para a existência, como é a vida de quem não faz opção pelo Reino.

Conclui o evangelista afirmando que «ainda de muitos outros modos, João anunciava ao povo a Boa-Nova» (v. 18). Aqui Lucas reforça que a pregação de João constituía também uma boa notícia, como será a de Jesus. Essa boa notícia era, sobretudo, a possibilidade de cada pessoa se relacionar com Deus sem depender das imposições do sistema religioso vigente. Fazer parte do Reino de Deus não depende da autorização de um sistema religioso, mas da atitude interior e decisão pessoal de cada um e cada uma que descobriu «o que é preciso fazer». E o que realmente é preciso fazer é humanizar-se e ajudar na humanização do mundo, a partir da mensagem de Jesus. É importante perceber e recordar que a nenhum dos grupos que o procuraram João pediu para se tornarem pessoas mais religiosas e devotas; pediu apenas que se tornassem pessoas melhores, se solidarizando com o próximo e praticando a justiça. A religião só tem sentido se nos ajudar a fazer isso!

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, dezembro 07, 2024

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA IMACULADA CONCEIÇÃO DA VIRGEM MARIA – LUCAS 1,16-38

 


Devido à coincidência de datas, a liturgia do segundo domingo do advento, neste ano, é substituída pela da Solenidade da Imaculada Conceição da Bem-aventurada Virgem Maria. E o evangelho para essa dada é Lc 1,26-38, o famoso relato da anunciação, um texto muito apropriado também para o advento, não importa o dia, inclusive, corresponde ao evangelho do quarto domingo do advento no litúrgico B. Antes de qualquer consideração contextual, independentemente da aplicação do mesmo a uma afirmação dogmática sobre Maria, esse texto revela como Deus intervém na história, vindo ao encontro da humanidade de maneira extraordinária e, ao mesmo tempo, tão simples. A Palavra de Deus irrompe no cotidiano interagindo surpreendentemente com o ser humano através do diálogo, propondo ao invés de impor, escolhendo os pequenos e marginalizados ao invés dos poderosos e ricos, fazendo morada na periferia ao invés dos grandes centros. Essas pequenas observações constituem uma breve introdução e síntese do evangelho de hoje, objeto da nossa reflexão, como veremos a seguir.

Antes de tudo, convém recordar sempre que os evangelhos não são livros de crônicas, e sim relatos catequéticos e teológicos, pensados inicialmente para comunidades concretas com características e problemas bem específicos. Somente dois evangelistas sentiram necessidade de falar do nascimento e da infância de Jesus, a saber, Mateus e Lucas, e cada um o fez segundo uma perspectiva própria, considerando suas intenções teológicas específicas e as necessidades de suas respectivas comunidades, destinatárias primeiras de cada relato. Aliás, esse princípio vale para os inteiros evangelhos. No caso do “evangelho da infância” de Lucas, do qual é tirado o texto de hoje, ele escolheu a perspectiva da mulher na construção do seu relato, antecipando as linhas teológicas de toda a sua obra, com uma clara opção de Jesus pelos mais pobres e excluídos, destinatários primeiros do anúncio do Reino de Deus. No “evangelho da infância” de Lucas (Lc 1–2), portanto, vemos uma introdução e síntese de tudo o que ele desenvolve nos vinte e dois capítulos restantes. Desse modo, podemos dizer que as características que marcam o anúncio e o nascimento de Jesus são as mesmas que vão marcar o seu ministério: misericórdia, justiça, inclusão, valorização da mulher e de todas as categorias de pessoas marginalizadas da sociedade e da maioria das religiões institucionalizadas, o amor acima de qualquer preceito, enfim, todos os elementos indispensáveis à construção de um mundo novo, justo, fraterno e humanizado. Acrescenta-se a isso a força criativa e fecunda do Espírito Santo, tão marcante no “evangelho da infância”, como será no caminho da Igreja, e o mesmo Lucas demonstra tão bem no segundo volume da sua obra, o livro dos Atos dos Apóstolos.

Ainda a nível de contexto, é importante recordar que a anunciação do nascimento de Jesus pelo anjo Gabriel a Maria não é um episódio isolado no “evangelho da infância” lucano, mas é precedido pelo anúncio do nascimento de João a Zacarias (Lc 1,5-25). Ambos seguem um modelo bíblico consolidado de anúncios de nascimentos extraordinários, com a intervenção direta de Deus: de Isaac (Gn 17–18), de Sansão (Jz 13), de Samuel (1Sm 1). Porém, é com o anúncio do nascimento de João que o de Jesus mais se relaciona. O narrador conta as duas histórias em paralelo, com um esquema comum, mas com muitas diferenças internas, para ajudar a comunidade leitora a perceber a novidade de Jesus e, consequentemente, a sua superioridade no contexto narrativo da obra e na história da salvação. Inclusive, para compreender melhor o anúncio a Maria, é necessário recordar alguns elementos do anúncio a Zacarias, como: o ambiente urbano e solene do templo de Jerusalém, um sacerdote como destinatário, a idade avançada dos personagens (Zacarias e Isabel), a incredulidade. Esses elementos são importantes para as intenções teológicas de Lucas, o qual convida o ouvinte/leitor a perceber que no anúncio a Maria acontece praticamente o contrário, apesar do esquema comum, como sinal de que, em Jesus, começa uma nova história, escrita a partir dos pequenos, com uma verdadeira revolução de valores e relações.

Feitas as devidas considerações contextuais, olhemos então para o texto, começando do primeiro versículo. De início, fazemos uma observação crítica a respeito da tradução do lecionário, que substituiu o indicativo temporal «No sexto mês» pela genérica e vaga fórmula de introdução «Naquele tempo». Essa observação é importante porque recorda a relação do que está para ser narrado com o episódio anterior. Portanto, assim é o primeiro versículo: «No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré» (v. 26). Ora, o sexto mês tem como referência o anúncio feito a Zacarias, no templo de Jerusalém; seis meses depois, o anjo Gabriel foi enviado a Nazaré para fazer um novo anúncio e teve uma acolhida diferente. Aqui começa a novidade. Ora, a Galiléia era uma terra desprezada pelo judaísmo da época, considerada semipagã. Embora fossem judeus de origem, seus habitantes eram vistos com desconfiança pelas autoridades religiosas e políticas de Jerusalém. Do ponto de vista religioso, os galileus eram considerados hereges, pouco observantes da Lei; do ponto de vista político, eram vistos como subversivos, rebeldes, agitadores. Essa era a fama da região. Mas a fama de Nazaré, uma pequena aldeia, na qual viviam aproximadamente duzentas pessoas, parece que era ainda pior do que a da região. Esse lugar não é citado sequer uma vez em todo o Antigo Testamento. O Evangelho de João mostra o quanto Nazaré era menosprezada, como se percebe pelo questionamento preconceituoso de Natanael, ao saber de onde tinha saído Jesus: «De Nazaré pode sair algo bom?» (Jo 1,46). É, portanto, para onde a religião só dispensava desprezo e discriminação que Deus envia o seu mensageiro para dar uma Boa Notícia. E lá a novidade de Deus será acolhida, ao contrário do que aconteceu no templo, onde Zacarias duvidou do anúncio do anjo.

Além do lugar desprezível como cenário do anúncio, Deus surpreende também na escolha da destinatária da sua mensagem: «a uma virgem, prometida em casamento, a um homem chamado José. Ele era descendente de Davi, e o nome da virgem era Maria» (vv. 27). Embora a tradição cristã tenha transformado a virgindade em virtude, para a mentalidade semita a mulher virgem tinha uma conotação bastante negativa. Na verdade, ser virgem significava não ter capacidade de atrair os desejos e olhares de um homem, e numa cultura extremamente machista, de completo desprezo pela mulher, isso era lamentável, sendo considerado sinônimo de humilhação e até de castigo de Deus. No caso de Maria, ainda bem que já estava «prometida em casamento», e isso significa que já estava oficialmente casado. É importante recordar como se dava o casamento judaico, para compreender essa expressão e a situação de Maria. Ora, o casamento acontecia em duas fases: a primeira, chamada de “etapa da promessa”, durava cerca de um ano; nessa fase, os noivos já considerados casados, mas ainda não mantinham relações sexuais; a noiva continuava morando na casa de seus pais, que já tinham recebido o pagamento do noivo. Na verdade, o casamento era um negócio; quem acertava tudo era o pai da noiva com o noivo. Um ano após a “promessa”, acontecia a celebração das bodas, dando início à segunda fase; após cerca de uma semana de festa, os cônjuges passavam a viver juntos. O casamento era consumado na primeira noite das bodas, por isso a noiva permanecia virgem durante toda a fase da promessa. A etapa da promessa começava quando a mulher tinha entre doze e doze anos e meio, enquanto o noivo tinha entre dezoito e vinte e quatro anos. Os dados referentes ao esposo de Maria, José, são importantes para o evangelista afirmar as raízes messiânicas da criança que vai nascer: o homem que irá assumir sua paternidade é um descendente de Davi, por isso, tem tudo para ser acolhido como o Messias esperado, o que não acontecerá devido à incredulidade e fechamento de Israel.

Os dois primeiros versículos funcionam como introdução e ambientação da cena (vv. 26-27). Do versículo 28 em diante, o texto ganha vida, se transforma em cena propriamente e se desenvolve em forma de um surpreendente diálogo entre o enviado de Deus e Maria. Inclusive, por causa disso, a atual crítica exegética identifica esse texto mais como um relato de vocação do que como uma anunciação, uma vez que a maneira como o diálogo flui revela que não se trata de um mero anúncio, mas de um chamado, no qual a pessoa interpelada, que neste caso é Maria, questiona o mensageiro , que insiste até convencê-la a aceitar a proposta, o que é muito típico dos relatos de vocação do Antigo Testamento. Nesse diálogo, cada fala dos personagens revela uma novidade de Deus. É importante perceber que, no diálogo, será evidenciada a identidade de Jesus, o que demonstra que o enfoque do evangelista é cristológico, e não mariológico, como às vezes se pensa. Eis a sequência: «O anjo entrou onde ela estava e disse: ‘Alegra-te cheia de graça, o Senhor está contigo!’» (v. 28). Ao dizer que o anjo entrou, o evangelista dá a entender que o anúncio aconteceu dentro de casa, contrapondo-o ao anúncio solene a Zacarias no templo de Jerusalém. Esse dado é extremamente importante, pois recorda que a vida cotidiana é lugar da revelação e manifestação de Deus. Através de seu mensageiro, ele rompe todas as barreiras de classe e cultura, dialogando com uma mulher jovem na casa de uma aldeia sem importância. Com isso, o evangelista já traça as primeiras linhas do modelo ideal de comunidade-igreja: a casa, como ambiente familiar onde todos se conhecem e se entendem. A casa é, portanto, o espaço do diálogo, das relações fraternas e sinceras, como deve ser a comunidade cristã. O imperativo “alegra-te” (em grego: χαῖρε – kaire) que abre o diálogo sinaliza para um novo tempo; é um convite a uma grande alegria, pois coisas boas estão para acontecer, uma nova história está surgindo. É também uma demonstração de que Deus não se deixa condicionar pelos esquemas da religião e da cultura, substituindo a tradicional fórmula de saudação hebraica “shalom”. Por isso, “alegra-te” não significa apenas uma saudação, mas um convite para participar de uma nova história.

A sequência da saudação também é muito importante, e muitas vezes distorcida: «cheia de graça, o Senhor está contigo»Algumas práticas devocionais mais exageradas tendem a supervalorizar os méritos de Maria, afirmando que Deus a premiou por isso, escolhendo-a para mãe de seu Filho; essa concepção distorce a gratuidade do amor e da benevolência de Deus que, historicamente, se dirige com predileção aos pequenos e fracos, que não têm capacidade de retribuir os dons recebidos. Logo, a saudação do anjo não é um atestado das virtudes de Maria, mas o anúncio de uma promessa maravilhosa. Inclusive, uma tradução mais justa seria: «O Senhor está contigo, te enchendo de dons gratuitamente». O anjo está garantindo que Deus não vai abandoná-la na missão que está lhe confiando, que lhe trará muitos riscos. A escolha de Maria, portanto, é uma demonstração da gratuidade do amor de Deus e sua predileção pelos pequenos e marginalizados, e não um prêmio por suas virtudes, que são indiscutíveis, mas não a causa da escolha de Deus. Inclusive, no Magnificat ela mesma reconhecerá que foi a sua pequenez que atraiu o olhar benévolo de Deus (Lc 1,48), e não os seus méritos. Como é normal nos grandes anúncios bíblicos, recebendo uma visita tão inesperada como a de um mensageiro divino, e recebendo uma notícia tão desconcertante, a reação inicial de Maria não poderia ser diferente, como diz o evangelista: «Maria ficou perturbada com essas palavras e começou a pensar qual seria o significado da saudação» (v. 29). O embaraço criado é consequência da novidade que estava acontecendo. Tanto o interlocutor de Maria quanto a mensagem que ele trazia eram inesperados. Num lugar simples como Nazaré, as coisas nunca mudavam, tudo permanecia do mesmo jeito. Por isso, Maria não poderia imaginar uma visita tão diferente. Mas, diante da novidade e ainda embaraçada, Maria começou a pensar, refletindo e questionando sobre o significado de tudo aquilo, o que mostra a qualidade da sua fé.

O embaraço de Maria diante da novidade de Deus provou até medo, o que também é compreensível, tamanha a grandeza do acontecimento. Daí, o encorajamento do próprio Deus, por meio de seu mensageiro: «Não tenhas medo, Maria, porque encontraste graça diante de Deus» (v. 30). Aqui, é a primeira vez que ela é chamada pelo nome pelo próprio mensageiro divino. No início do texto ela foi chamada assim pelo narrador (v. 27). Ser chamada pelo nome pelo mensageiro de Deus é sinal de muita predileção. É sinal da grandeza da missão para a qual ela está sendo chamada. Na Bíblia, o nome de uma pessoa indica sua identidade e sua missão. Quando Deus chama pelo nome, quer dizer que ele escolheu criteriosamente e, portanto, vai ficar sempre do lado daquela pessoa. A graça de Deus em sua vida é um dom gratuito e permanente, o que garante o êxito na missão. Não é resultado de um esforço humano, mas fruto do amor livre e gratuito de Deus. Por isso, tendo-a encorajado após o natural turbamento, o mensageiro de Deus explica os acontecimentos e diz qual será o papel de Maria na nova história que está sendo inaugurada: «Eis que conceberás e darás à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi. Ele reinará para sempre sobre os descendentes de Jacó, e o seu reino não terá fim» (vv. 31-33). A missão de Maria é de uma mulher autônoma, emancipada: conceber, dar à luz, pôr o nome. Pela tradição, quem dava o nome à criança era o pai, principalmente se o filho fosse varão. No entanto, com limiar de um novo tempo, a história toma um novo rumo com o protagonismo da mulher. É o começo de uma história a partir dos pequenos.

Simultâneo à explicação da missão de Maria, também vem explicada a missão e a identidade do filho, que é o centro do relato, começando pelo nome Jesus, o qual significa «Deus salva»; de fato, aqui está o sentido de todos estes acontecimentos. A ação salvífica de Deus, até então bloqueada pela religião do templo, de agora em diante se estenderá a todas as gerações e a todos os lugares. Sendo «Filho do Altíssimo»ninguém terá poder sobre Ele, como a religião tinha sobre a interpretação da Lei. Esse Filho ocupará de uma vez por todas o trono de Davi; não terá sucessores, como acontecera no passado, inaugurando um reino novo, na certeza de que esse não cairá nas mesmas contradições que ocorreram no antigo reino de Israel. Assim, cumprem-se as promessas do Antigo Testamento, mas não conforme as expectativas. «Deus salva» a partir dos pequenos e das margens; será essa a principal característica do Reino que está prestes a ser inaugurado. A interação de Maria com o anjo revela uma nova concepção de Deus. O Deus soberano e distante é coisa do passado. O Deus do diálogo entra em cena: vindo ao encontro da humanidade, escolhendo o lado mais fraco da história, permite ser questionado por uma jovem mulher. Assim, Maria antecipa um jeito novo de relacionar-se com Deus, quebrando protocolos, abandonando rituais, interagindo diretamente: «Como acontecerá isso, se eu não conheço homem algum?» (v. 34). Ela compreende que é possível dialogar com Deus e até questioná-lo, afinal, Ele quis ser um de nós! Mais do que percepção e cognição, o verbo conhecer (em grego: γινώσκω – guinôsko) na tradição bíblica significa intimidade, e até mesmo relação sexual; é nesse sentido que Lucas o emprega aqui. De fato, embora já fossem considerados marido e mulher, na primeira etapa do casamento não era permitido ter relação sexual. Na pergunta de Maria, Lucas antecipa o modelo ideal de discipulado: crente, confiante, perspicaz e questionador. A fé autêntica não está imune a questionamentos, pelo contrário. Com a crescente mercantilização do sagrado, o exemplo questionador de Maria se torna cada vez mais necessário no discipulado de Jesus; isso vale para todos os tempos. O questionamento de Maria, portanto, é fruto de uma fé madura e ativa.

À nova humanidade questionadora, prefigurada por Maria, Deus não responde com castigo, como muitos ainda hoje insistem. A resposta de Deus, através do anjo, é de quem acredita no ser humano e tem paciência com ele: «O Espírito virá sobre ti, e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra. Por isso, o menino que vai nascer será chamado Santo, Filho de Deus» (v. 35). Além da capacidade de Deus agir de modo completamente novo, extraordinário e surpreendente, a concepção divina de Jesus, dispensando a intervenção masculina, marca também um rompimento com a tradição familiar patriarcal. A figura masculina deixa de ser o centro da família e da sociedade, preconizando um mundo novo marcado pela igualdade nas relações. Com a promessa da vinda do Espírito sobre Maria, Lucas introduz um dos temas mais importantes da sua teologia, mostrando que é o Espírito Santo quem anima e conduz a vida da comunidade cristã, o que ficará mais claro no segundo volume da sua obra, o livro dos Atos dos Apóstolos. Ainda em resposta ao questionamento de Maria, o mensageiro de Deus cita, como sinal, o exemplo de Isabel, uma anciã considerada estéril, porém fecundada graças à intervenção divina (v. 36). Os dois casos, uma anciã estéril e uma jovem virgem grávidas, ressaltam a grandeza e a bondade de Deus; mostram que para Ele nada é impossível (v. 37). Como é a partir das dúvidas que a fé se torna sólida, Maria chega à conclusão da veracidade do anúncio e se prontifica a colaborar decisivamente com o projeto de Deus para a construção de um mundo novo e de uma humanidade renovada: «Eis aqui a serva do Senhor» (v. 37a). Mais do que uma prova de humildade, a resposta de Maria é uma profissão de fé, amor e confiança. Com a expressão «a serva do Senhor», Maria não dá uma simples declaração de humildade, mas se apresenta como colaboradora de Deus. Ora, no Antigo Testamento, “servo do Senhor” era um título de honra, aplicado apenas a figuras masculinas, tanto individuais quanto corporativas. O servo é aquele que participa da obra. Aplicando a si, Maria diz que também as mulheres podem ser colaboradoras de Deus e de seu plano salvífico.

O consentimento livre e espontâneo, depois de um diálogo franco e sincero, demonstra a autonomia e a confiança de Maria: «faça-se em mim segundo a tua palavra» (v. 37b). Naquelas circunstâncias históricas, a mulher não tinha nenhum poder de decisão; só o pai ou o marido poderiam decidir por ela. Inclusive, a etapa da promessa, na qual Maria se encontrava, era a fase de maior submissão da mulher, pois ela estava submissa simultaneamente a dois homens: ao pai e ao futuro marido. Antes dessa etapa, era submissa apenas ao pai, e depois das bodas passa a ser submissa apenas ao marido. Ao ser consultada e responder sozinha, sem pedir permissão a nenhum homem, Maria rompe completamente com os condicionamentos culturais da época, tirando a mulher da humilhante situação de submissão. O seu sim é um ato de fé, de confiança em Deus, mas também de coragem e subversão. Assim, ela afirma a dignidade da mulher, e reivindica o primado da Palavra na vida da Igreja, da qual ela é modelo. Abrindo-se com disponibilidade para o cumprimento da palavra, ela se torna exemplo de discípula, sendo a primeira a compreender o programa de Jesus, cujas relações são definidas mais pela escuta da Palavra do que pelos laços sanguíneos (Lc 8,19-21).

Neste contexto de preparação para a acolhida do Senhor, é indispensável olhar para o exemplo de Maria. Com seu testemunho de fé no Senhor, com o espírito questionador, com sua autonomia e coragem, ela se torna modelo e exemplo para o discipulado de todos os tempos. Tudo isso porque deixou a Palavra “fazer-se” em sua vida. E para sentir os sinais da sua vinda/presença, o Senhor nos convida, através do exemplo de Maria, a olhar para as margens, ouvir os silenciados de sempre e, assim, construir uma nova história. Isso é fazer acontecer conforme a Palavra.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

 

REFLEXÃO PARA O 3º DOMINGO DO ADVENTO – LUCAS 3,10-18 (ANO C)

  Todos os anos, a liturgia do segundo e terceiro domingos do advento evidencia a figura de João, o Batista ou simplesmente “o que batizav...