Na liturgia deste vigésimo nono
domingo do tempo comum, retoma-se a leitura semi-contínua do Evangelho de
Lucas, interrompida domingo passado, por ocasião da Solenidade da
Bem-aventurada Virgem Maria da Conceição Aparecida. Saltou-se, portanto, a liturgia
do vigésimo oitavo domingo, interrompendo-se a leitura do evangelho vigente,
retomada neste dia, cuja passagem proposta é Lc 18,1-8. Trata-se da parábola do
juiz iníquo e a viúva insistente ou simplesmente do juiz e da viúva. Essa é
mais uma parábola exclusiva de Lucas, ou seja, que não se encontra em outros
evangelhos. O contexto literário do referido texto continua sendo o caminho de
Jesus com seus discípulos em direção à cidade de Jerusalém, cujo ápice será a
paixão, morte e ressurreição. Com tem sido afirmado ao longo dos últimos
domingos, o caminho constitui a seção narrativa mais longa do Evangelho de Lucas,
sendo considerada também a mais importante, pois é a seção na qual o
evangelista distribuiu seus conteúdos mais originais, tendo em vista a formação
dos discípulos e discípulas de todos os tempos. Por isso, é importante recordar
que, mais do que um percurso físico, o caminho no Evangelho de Lucas é um
programa formativo, um itinerário teológico e catequético, ao mesmo tempo em
que funciona como imagem ideal da Igreja: uma comunidade dinâmica, aberta e
missionária, disposta a levar o Evangelho do Reino a todos os lugares, mesmo
correndo riscos.
É durante o caminho que o
evangelista apresenta os principais ensinamentos de Jesus aos discípulos e
discípulas, sendo até mesmo repetitivo e insistente, conforme a necessidade e a
importância da mensagem. E a parábola lida hoje apresenta temas que parecem
mesmo repetitivos no conjunto da catequese lucana: a necessidade da oração
contínua, juntamente com a busca pela justiça e a perseverança na fé. Ela está
localizada numa posição estratégica, entre um pequeno discurso escatológico (Lc
17,20-37) e a parábola do fariseu e o publicano (Lc 18,9-14). É inegável,
portanto, que esta parábola de hoje possui uma riqueza extraordinária, mas
carrega algumas dificuldades de interpretação, por isso ela tem sido pouco
considerada nos estudos e reflexões, passando quase despercebida no amplo
conjunto das parábolas exclusivas de Lucas. Inclusive, há estudiosos que,
equivocadamente, a vêem como mera introdução à conhecida parábola do fariseu e
o publicano, que também trata da oração, e que será lida na liturgia do próximo
domingo. O certo é que a beleza e a clareza dessa última têm contribuído para o
quase ofuscamento da parábola de hoje, tão rica de sentido, mas de difícil
interpretação. O primeiro passo para compreendê-la bem é considerar o contexto
histórico das comunidades do evangelista, as primeiras destinatárias deste
ensinamento.
Ora, entre os anos 80 e 90 do primeiro século, período
da redação do Evangelho segundo Lucas, quando Domiciano era o imperador romano,
as perseguições aos cristãos já estavam em plena evidência, o que gerava um
clima de desânimo nas comunidades. Daí, a necessidade de uma palavra de
encorajamento e estímulo à perseverança diante das hostilidades. Além da
violência, os cristãos eram vítimas de preconceitos e marginalização. Sendo rejeitados
pela sinagoga e sem espaço oficial de culto, eles se reuniam apenas nas casas,
dando ainda mais a impressão de marginalidade. Continuavam sendo tratados como
judeus, mas como dissidentes, adeptos de uma nova seita. Por isso, eram vistos
com desconfiança e todo o aparato administrativo do império conspirava contra
eles; inclusive, nos tribunais as causas sempre eram julgadas e resolvidas em
desfavor deles. E tudo isso gerava desânimo nas comunidades. Soma-se a isso,
ainda, o fato de grande parte dos membros das comunidades ligadas ao
evangelista Lucas serem de origem pagã e, por isso, não tinham hábitos de
oração. Em suas práticas religiosas anteriores, a relação com o divino se dava
basicamente por meio de ritos e sacrifícios, por isso tinham dificuldade de
assimilar a necessidade da oração constante. E esse foi um motivo a mais para o
evangelista Lucas insistir tanto com esse tema. Na verdade, também entre os
judeus o ritualismo se tinha sobreposto à verdadeira espiritualidade, o que não
passou despercebido por Jesus.
Feita a devida contextualização,
olhemos para o texto, cujo primeiro versículo funciona como introdução e
síntese, ao mesmo tempo: «Jesus contou aos discípulos uma parábola, para
mostrar-lhes a necessidade de rezar sempre, e nunca desistir, dizendo:» (v.
1). Quando o evangelista introduz um ensinamento de Jesus dizendo que é
dirigido aos discípulos, é sinal de grande importância e valor; significa que
se trata de algo essencial para o discipulado de todos os tempos, como é a
mensagem esta parábola de hoje. De fato, a prática da oração contínua,
juntamente com a luta por justiça e a perseverança na fé são dimensões que não
podem ser esquecidas na comunidade. Obviamente, o evangelista não trata de uma
oração ininterrupta com a repetição contínua de uma fórmula, mas de uma oração
que caracterize a própria existência. de fato, “rezar sempre” não significa
simplesmente dizer orações. É, acima de tudo, um convite para os cristãos
ritmarem as suas vidas pela oração, ou seja, pela intimidade com Deus. A oração
contínua dos cristãos visa sempre a chegada do Reino, como Jesus ensinou no Pai
nosso (Lc 11,2), que é essencialmente um reino de justiça. Por isso, o convite
à oração é completado pela demonstração da sua finalidade: “nunca desistir”, o
que poderia ser mais bem traduzido por “não desanimar” ou “não baixar a
cabeça”, considerando o significado do verbo empregado na língua original do
texto (em grego: ἐγκακέω – enkakêo). Por isso,
podemos compreender estas primeiras palavras de Jesus como um convite à oração
associado à não resignação diante das injustiças, como vai mostrar a sequência
do texto.
Do versículo introdutório,
passamos ao conteúdo da parábola, propriamente. Embora o tema anunciado pelo
narrador tenha sido apenas a oração, logo se percebe que esse compreende também
a busca por justiça. Como se vê, é uma parábola tipicamente lucana, a começar
pela construção dos personagens: um juiz injusto e uma viúva insistente. É
característica de Lucas apresentar dois personagens em paralelo com grandes
diferenças entre si, sobretudo nas parábolas, com o objetivo de levar o leitor
a tomar partido por um lado, identificando-se com um dos personagens, como por
exemplo: o pobre Lázaro e o rico avarento (Lc 16,19-31), o fariseu e o
publicano (cf. Lc 18,9-14), e tantas outras. Eis, portanto, o primeiro
personagem: «Numa cidade havia um juiz que não temia a Deus, e não
respeitava homem algum» (v. 2). A tradição bíblica, desde o Antigo
Testamento, apresenta a classe da magistratura com traços bastante negativos,
de modo que essa descrição do juiz da parábola é uma verdadeira síntese: a
falta de temor a Deus e de respeito ao próximo; isso representa o máximo de
prepotência e injustiça. Ora, toda a Lei, os Profetas e até o ensinamento de
Jesus visam ajudar cada pessoa a viver bem com Deus e com o próximo; logo, ao
ser descrito dessa maneira, esse juiz representa um contraexemplo em todos os
sentidos.
A experiência de Israel em sua
história mostra a atuação de juízes corruptos e adeptos ao suborno. Por isso,
um dos alvos constantes das denúncias dos profetas foi a figura do juiz ou
“administrador da justiça” (Is 10,1; Am 5,7; etc). Além de ser uma crítica à
magistratura, essa descrição também sintetiza o oposto de como deve ser a
pessoa cristã. Temor a Deus não significa medo, mas reverência, é o
reconhecimento da sua grandeza e do seu amor; o respeito ao próximo é o
reconhecimento da dignidade do outro, do valor que cada pessoa possui por ser
imagem e semelhança do Criador, independentemente das características
individuais de cada um. Os traços descritivos do juiz, portanto, são de quem
não está aberto ao advento do Reino de Deus e, consequentemente, não pode fazer
parte da comunidade cristã, por mais inclusiva que essa comunidade seja.
Paralelo ao juiz, o evangelista
apresenta o segundo personagem da parábola, com características completamente
opostas ao primeiro: «Na mesma cidade havia uma viúva, que vinha à
procura do juiz, pedindo: “Fazei-me justiça contra o meu adversário!”» (v.
3). Se o primeiro personagem é um homem poderoso e prepotente, um juiz, o
segundo é uma mulher indefesa e injustiçada. Daí o paradoxo entre os dois
personagens. A imagem da viúva, na tradição bíblica, é uma das expressões de
pessoa indefesa, necessitada e vulnerável; por consequência, se torna imagem da
pessoa predileta por Deus. Inclusive, a Lei hebraica previa proteção especial
às viúvas (Ex 22,21-23), mas nem sempre isso era bem observado. Entre o Antigo
e o Novo Testamento, não faltam críticas e lamentos pelos direitos usurpados
das viúvas. Do Novo Testamento, Lucas é o autor que mais dá atenção a essa
categoria social, inclusive, essa atenção às viúvas contribuiu para o seu
Evangelho ser considerado o “evangelho das mulheres e dos pobres”.
Das 26 vezes em que aparece a
palavra viúva (em grego: χήρα –
kêra) no Novo Testamento, doze delas estão na obra lucana (Lc-At). Em Atos dos
Apóstolos, por exemplo, ele apresenta o desprezo pelas viúvas como a primeira
causa de divisão e desagregação da comunidade de Jerusalém. Logo, sem atenção à
causa das viúvas, como síntese de todas as pessoas vulneráveis, não há vida
cristã autêntica. Ora, o estado de viuvez em si já é motivo de cuidados e
preocupação, o que exige bastante proteção; tudo isso aumenta ainda mais quando
a viúva tem um adversário (em grego: αντίδικος – antídikos) que ameaça
constantemente os seus poucos direitos. A cena descrita na parábola retrata bem
uma situação muito comum no antigo Israel. Como as mulheres se casavam muito
mais novas do que os homens, geralmente os maridos morriam antes; por isso,
havia muitas viúvas em Israel. Isso explica a preocupação constante com essa categoria
em toda a literatura bíblica. Geralmente, as viúvas tinham suas heranças
roubadas e, ao recorrer aos tribunais, tinham sempre o desfecho da causa em seu
desfavor. Mesmo que o evangelista não especifique a causa do pleito da viúva,
os casos mais comuns tinham a ver com herança.
Como se trata de uma parábola, o
que significa uma comparação, o objetivo do evangelista é descrever, de modo
comparado, a situação dos cristãos e cristãs da sua época. Assim, o juiz da
parábola é a imagem do império romano com todo o seu aparato ideológico e
militar que nega vida e dignidade aos mais pobres, mas também os sistemas
dominantes de todas as épocas. A viúva, por sua vez, é a imagem das comunidades
cristãs da época do evangelista, especialmente, que eram vítimas de injustiças
e perseguições, sem nenhum direito reconhecido, sem nenhum amparo, mesmo que
tivessem uma Lei favorável a elas. Essa imagem se aplica também às comunidades
de todos os tempos, bem como às pessoas pobres e marginalizadas em todas as
épocas. Também as constituições modernas garantem direitos aos pobres, como
acesso às necessidades básicas, como moradia, saúde, educação, trabalho, mas na
prática esses direitos são negados, quase sempre. Por isso, é importante a
luta, o “não baixar a cabeça”, “não desanimar”. Para haver transformação é
imprescindível a luta perseverante, com a oração, obviamente. O Reino de Deus
não será instaurado a partir dos sistemas de poder estabelecidos no mundo, mas
a partir da luta insistente dos cristãos e cristãs que rezam e buscam a justiça
constantemente.
E o desfecho da parábola mostra
que vale a pena lutar, mesmo quando tudo parece conspirar contra: «Durante
muito tempo, o juiz se recusou. Por fim, ele pensou: “Eu não temo a Deus, e não
respeito homem algum. Mas esta viúva já me está aborrecendo. Vou fazer-lhe
justiça, para que ela não venha a agredir-me!”» (vv. 4-5). A
insistência da viúva é uma demonstração de que não pode haver espírito de
conformismo e nem resignação na comunidade cristã; essa não pode assistir
passivamente às injustiças e negação da vida. Porém, não pode recorrer à
violência. A construção do Reino exige paciência e coragem para lutar sempre,
sem desanimar. As situações adversas não são meras fatalidades do destino, e
muito menos vontade de Deus. Tudo o que é injusto deve ser mudado e combatido
pelos cristãos e cristãs. Porém, as mudanças não acontecem com a rapidez
desejada. Por isso, é necessário perseverança e paciência. O medo de agressão
do juiz, obviamente, deve-se à desmoralização pública. É praticamente inimaginável
a agressão física da parte de uma pobre viúva a um juiz. Mas ele teme a força
da perseverança dela, como todos os sistemas injustos temem o despertar e a
organização do povo diante de suas atrocidades.
A explicação final que Jesus dá,
de acordo com o evangelista, é o que dá margens a interpretações equivocadas da
parábola, tornando-a difícil, com grandes riscos de distorção, como alertamos
na introdução: «E o Senhor acrescentou: “Escutai o que diz este juiz
injusto. E Deus, não fará justiça aos seus escolhidos, que dia e noite gritam
por ele? Será que vai fazê-los esperar? Eu vos digo que Deus lhes fará justiça
bem depressa”» (v. 6-8a). O equívoco que deve ser evitado é comparar o
juiz a Deus. Ora, os atributos do juiz são o oposto de Deus, o qual é descrito
por Lucas como um Pai cheio de amor e compaixão pela humanidade (Lc 15). De fato,
sobretudo, a partir do Evangelho de Lucas, uma das poucas certezas que podemos
ter na vida é a de que Deus é justo e a sua justiça nos é favorável, pois é
transformada em amor humanizante e misericórdia. Porém, essa certeza não deve
ser motivo de conformismo, e sim um incentivo para os cristãos lutarem sem
cessar, rezando, trabalhando e denunciando, para que os sistemas injustos deste
mundo sejam transformados. A palavra mais repetida no texto é justiça: aparece
quatro vezes (vv. 3.5.7.8). Assim, Jesus ensina, através do evangelista, que a
essência de ser cristão é empenhar-se por justiça.
Na conclusão, temos uma chamada
de atenção sobre a necessidade da fé perseverante como algo imprescindível para
as comunidades manterem viva a luta por justiça: «Mas o Filho do homem,
quando vier, será que ainda vai encontrar fé sobre a terra?» (v. 8).
Se trata de uma pergunta retórica que visa chamar a atenção dos discípulos de
todos os tempos. A vinda do Filho do Homem é uma referência à parusia, quer
dizer, ao final dos tempos, e significa que a fé é necessária durante todo o
tempo, durante toda a vida. É necessário que, até lá, os cristãos permaneçam em
oração sem cessar, lembrando, contudo, que a oração, para Jesus e para Lucas,
não significa dizer palavras, mas estar em comunhão com Deus, fazendo no mundo
aquilo que condiz com a sua vontade. E vontade de Deus é sempre o bem da
humanidade, que todos vivam como seus filhos e filhas, ou seja, como irmãos e
irmãs. A fé, aqui, portanto, é a consciência e a atitude dos cristãs e cristãs
em manterem-se constantemente em oração e na busca por justiça.
Pe. Francisco Cornelio Freire
Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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