sábado, julho 26, 2025

REFLEXÃO PARA O 17º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 11,1-13 (ANO C)



Neste décimo sétimo domingo do tempo comum, a liturgia prossegue com a leitura semi-contínua do Evangelho de Lucas, como é próprio do ano litúrgico C. E o texto proposto para este dia é a sequência imediata aquele do domingo passado, que correspondia ao episódio da visita de Jesus à casa das irmãs Marta e Maria (Lc 10,38-42). A passagem lida neste dia – Lc 11,1-13 – constitui-se uma verdadeira catequese sobre a oração, dentro do contexto do longo caminho de Jesus com seus discípulos para Jerusalém. Como tem sido afirmado nos últimos domingos, é sempre oportuno recordar a importância do caminho para as dinâmicas narrativa e teológica de Lucas: não se trata de um percurso físico-geográfico, simplesmente, mas de um itinerário formativo, catequético e espiritual, no qual Jesus apresenta o seu programa, com seus principais ensinamentos e as exigências básicas que o seu seguimento comporta. Na verdade, o caminho de Jesus na perspectiva de Lucas é metáfora da própria vida cristã. Logo, só pode ser cristão/cristã quem se dispõe a percorrer com ele esse caminho. E, enquanto caminha, Jesus se relaciona com Deus e com as outras pessoas: entra nas casas, responde perguntas, corrige os discípulos, faz advertências, conta histórias, participa de banquetes festivos e também encontra tempo para rezar, como mostra o evangelho de hoje.

Se no domingo passado o evangelho evidenciava a convivência de Jesus com as pessoas durante o caminho, ao relatar sua visita à casa das irmãs Marta e Maria, o de hoje destaca sua relação com Deus, o Pai, por meio da oração. Inclusive, convém recordar que Lucas é, por excelência, o evangelho da oração; ele faz referência a Jesus rezando/orando sete vezes, do batismo à paixão, o que corresponde exatamente à totalidade do seu ministério (Lc 3,21; 5,16; 6,12; 9,18; 9,28-29; 11,1; 22,41). De fato, Lucas mostra Jesus em oração do começo ao fim da sua missão. Atitude semelhante ele vai mostrar da Igreja, no segundo volume da sua obra, o livro de Atos dos Apóstolos. Obviamente, o evangelista quer mostrar que a oração foi o grande alimento de Jesus em sua vida pública. Foi pela força da oração que ele levou a cumprimento o projeto do Pai em sua vida. E o ponto alto do evangelho de hoje é a oração que Jesus ensina aos seus discípulos, preservada e transmitida pelas comunidades cristãs com o título de “Pai-nosso”. Se tem notícias de pelo menos três versões desta oração circulando nas primeiras comunidades: uma versão no Evangelho de Mateus (Mt 6,9-13), outra em Lucas, contida no evangelho deste domingo, e ainda outra na Didaquê, um texto do segundo século que é considerado o primeiro catecismo do cristianismo. Das três versões, a de Lucas é a mais abreviada e, por isso, considerada a mais próxima das palavras originais de Jesus, de acordo com a maioria dos estudiosos.

O texto começa com uma introdução típica de Lucas, que ajuda o leitor a perceber a ambientação e o contexto do episódio: «Jesus estava rezando num certo lugar» (v. 1a). Independentemente das circunstâncias, Jesus reservava sempre uma parte do seu tempo para a oração; era algo que integrava o seu cotidiano. Assim como tinha estado há pouco tempo numa casa, em diálogo claro e sincero com duas mulheres, Marta e Maria, agora ele se encontra em diálogo com Deus, o Pai. O ambiente é “um certo lugar”, provavelmente um espaço improvisado, de acordo com o contexto do caminho e das características itinerantes do seu movimento que, ao contrário do judaísmo oficial, não possuía estruturas fixas. Com isso, o evangelista quer recordar que ele não dependia das estruturas oferecidas pela religião oficial para cultivar sua intimidade com o Pai. Na sequência, encontramos informação impressionante: «Quando terminou, um de seus discípulos pediu-lhe: “Senhor, ensina-nos a rezar, como também João ensinou a seus discípulos”» (v. 1b). Certamente, era bonito o jeito de Jesus rezar, impressionava quem via, não pelo palavreado, mas pela intimidade com Deus que ele revelava. As entrelinhas do texto dão a entender que os discípulos estavam olhando ele rezar e ficaram admirados, tanto que não ousaram interrompê-lo, mas esperaram que ele terminasse. Impressionados, tiveram vontade de fazer o mesmo. Talvez, e muito provavelmente, estavam angustiados porque conviviam com ele já há um certo tempo e ainda não tinham aprendido muita coisa, nem mesmo a rezar como ele. E, o discípulo tem o dever de tornar-se parecido com o seu mestre, de fazer tudo à sua maneira, incluindo jeito de rezar.

Todo mestre ou rabino tinha um jeito próprio de conduzir o seu grupo, com seus ensinamentos, regras e fórmulas, inclusive, de oração. Geralmente, essas orações eram síntese da espiritualidade do grupo ou movimento. Parece que Jesus tinha deixado seu grupo muito à vontade, nesse sentido, não estabelecendo regras e fórmulas, o que poderia deixar seus discípulos muito livres, por um lado, mas também até inseguros, por outro. A regra de Jesus era apenas o seu jeito de viver. Em todos os evangelhos, essa é a única vez que os discípulos pedem que Jesus lhes ensine algo. Diante disso, seus discípulos usam o exemplo de João Batista, cujo movimento tinha características semelhantes ao de Jesus, até certo ponto, obviamente, entre os tantos existentes na época. Assim como outros mestres, João Batista tinha ensinado seus seguidores a rezar, embora não tenhamos conhecimento do seu conteúdo. Tem-se notícias de fórmulas de oração de outros movimentos e grupos contemporâneos. Tudo isso levava os discípulos de Jesus a sentirem necessidade de fórmulas também para eles. Contudo, a particularidade do jeito de Jesus exercer sua liderança era exclusivamente pelo exemplo, pelo seu jeito de viver. Por isso, não tinha preocupação de ensinar fórmulas para serem posteriormente repetidas.

Do jeito pessoal de Jesus rezar nasce a curiosidade e, da curiosidade, a necessidade nos seus discípulos. Por isso, pediram que lhes ensinasse. Ao pedido dos discípulos, Jesus responde. Mas, não dá uma fórmula, como faziam os rabinos do seu tempo. Pelo contrário, dá-lhes uma “anti-fórmula”, pois as primeiras palavras da sua oração sugerem exatamente uma quebra de protocolos e paradigmas. Os judeus, ao rezar, faziam longas introduções, exaltando a grandeza de Deus, antes de fazer as suas preces; utilizavam termos e expressões como “Altíssimo”, “Todo-Poderoso”, “Onipotente”, “Senhor”, “Santo dos Santos”, etc; essas expressões ajudam a reconhecer a grandeza de Deus, mas como alguém distante, em um grau infinitamente superior e alheio à realidade das pessoas. Jesus quer abolir essa mentalidade entre os seus seguidores. De fato, ele veio abolir o abismo estabelecido pela religião entre o humano e o divino. Por isso, introduz a sua oração ensinando a chamar a Deus de Pai, ou seja, como uma pessoa íntima e próxima de quem o invoca. Seu jeito de rezar causa impacto, sobretudo porque ele ensina na oração a chamar a Deus de Pai. Para nós, hoje, parece já não ser algo impactante. Mas, para a sua época foi altamente revolucionário. Ora, no Antigo Testamento, Deus é chamado de Pai poucas vezes, na maioria das vezes como metáfora ou como pai apenas de Israel enquanto povo, não na oração pessoal cotidiana. Em todo o Antigo Testamento, a palavra pai é atribuída a Deus somente quinze vezes. Enquanto isso, os evangelhos mostram Jesus chamando Deus de Pai cento e oitenta vezes, sem contar as inúmeras ocorrências nos demais livros do Novo Testamento. Tradicionalmente, a quem os judeus chamavam de pai era Abraão. Por isso a oração de Jesus é revolucionária e, mais ainda por ser um paradigma de relação com Deus e o próximo, muito mais do que uma fórmula.

Com o imperativo «Quando rezardes, dizei: Pai, santificado seja o teu nome» (v. 2), Jesus quer dizer, antes de tudo, que o primeiro elemento necessário para uma oração autêntica é ter clareza do seu destinatário. E é claro que é a Deus que deve ser direcionada toda oração cristã. Deus é um pai atento a todos os seus filhos e filhas que podem relacionar-se diretamente com ele, sem necessidade de intermediações. É um Deus que é, antes de tudo, um Pai! Logo, Jesus não inaugura uma nova fórmula de oração, mas propõe um novo jeito de se relacionar com Deus e com o próximo, como se verá na continuidade do texto. Dessa maneira nova de se relacionar com Deus, emerge a certeza de que ele está próximo de nós, como se fosse um amigo e, portanto, pode ser invocado a qualquer hora e em qualquer lugar. A «santificação do nome de Deus» (v. 2) e a “vinda do seu Reino” (v. 2) estão intrinsecamente relacionadas, a ponto de confundirem-se. Ora, o nome de Deus já é santificado, porque ele é, essencialmente, santo. O pedido diz respeito ao reconhecimento dessa santidade. E reconhecer a santidade de Deus é saber que ele é Pai, é aceitar a condição de filhos e filhas e, portanto, viver como irmãos e irmãs. Isso é permitir que o seu Reino seja instaurado entre nós. O Reino que já fora inaugurado por Jesus (Lc 4,16-22), precisa ser difundido pelos discípulos até chegar a todos os lugares e épocas. A construção do Reino é, pois, a constatação se o nome de Deus está sendo santificado ou não, ou seja, se ele está sendo reconhecido como realmente é:  um Pai. Logo de início já se percebe, portanto, o quanto é comprometedora a oração ensinada por Jesus, pois o seu primeiro fruto é a fraternidade, consequência imediata do reconhecimento de Deus como Pai. A invocação da vinda do Reino de Deus esclarece que não se trata de uma realidade para o futuro, não é uma promessa para o pós-morte, mas uma urgência para este mundo. O Reino de Deus pensado por Jesus é a alternativa de sociedade aos reinos deste mundo, sobretudo aos grandes impérios que dominaram Israel, como a Assíria, Babilônia, Pérsia, Grécia e Roma. Torna-se alternativa também a todos os projetos de poder que ferem a dignidade humana e a inteira criação. Por isso, continua urgente a sua instauração, cujo resultado será a vida em abundância, com o primado da fraternidade nas relações humanas e um mundo plenamente humanizado.

Na sequência da oração, Jesus vai recomendando o que é necessário pedir, ou seja, quais são as reais necessidades do ser humano. E a primeira petição corresponde à necessidade mais básica do ser humano: «Dá-nos a cada dia o pão de que precisamos» (v. 3). Na Palestina antiga, o pão era o principal alimento. Aqui, além do alimento concreto, significa tudo o que o que ser humano necessita para viver com dignidade, a começar pelo acesso diário às refeições. Com isso, Jesus compromete bastante os seus seguidores, associando a instauração do Reino de Deus ao compromisso concreto para que o pão cotidiano esteja sempre presente em todas as mesas. Invocar o Reino é comprometer-se na luta por uma vida digna para todas as pessoas. A falta de acesso ao alimento cotidiano denuncia que o Reino ainda não foi completamente instaurado e, portanto, recorda a necessidade de os seguidores de Jesus se empenharem cada vez mais nessa construção. Esta luta comporta um combate à cultura do acúmulo, ao egoísmo, por isso a invocação é pelo “pão de cada dia”, nem demais e nem de menos. Com isso, ele também recorda a condição existencial do ser humano: ele não pode ser autossuficiente por um dia sequer, mas em tudo depende de Deus, até mesmo no que é mais básico, como o alimento de cada dia. Um elemento indispensável para que uma comunidade viva efetivamente segundo as características do Reino é a confiança e a solidariedade. Obviamente, Jesus alude ao antigo maná (Ex 16) com essa petição. Há, aqui, um verdadeiro combate e denúncia à cultura do acúmulo, tema que será desenvolvido na sequência da viagem, principalmente com as parábolas do rico insensato (11,14-21) e do rico avarento com o pobre Lázaro (16,19-31).

A menção ao perdão não poderia faltar na oração que deve caracterizar a comunidade cristã, pois o perdão é essencial para a vivência da fraternidade plena. Por isso, Jesus recomenda este pedido na sua oração: «Perdoa-nos os nossos pecados, pois nós perdoamos também a todos os nossos devedores» (v. 4). O pedido de perdão a Deus era comum nas orações dos diversos movimentos religiosos, daquela época e de todos os tempos. Realmente, é somente Deus quem pode perdoar pecados. Assim como o pedido do pão cotidiano, também esse visa conscientizar o ser humano de sua necessidade diante de Deus. A grande novidade apresentada por Jesus nesta oração é a condição para se buscar o perdão de Deus: «nós também perdoamos aos nossos devedores» (v. 4). Com isso, Ele ensina que o perdão de Deus deve ser mediado pelo perdão fraterno; não porque a misericórdia de Deus esteja condicionada ao agir humano, mas porque a relação com Deus exige uma coerência de vida. A abertura total a Deus deve traduzir-se em uma relação nova com o próximo, tema tão caro a Lucas. Isso implica que, mais do que ser perdoado, é necessário viver reconciliado. Por isso, o perdão deve ser mútuo.

A última das petições da oração de Jesus é «não nos deixes cair em tentação» (v. 4). A palavra tentação (em grego:  πειρασμός – peirasmós), quando aplicada em relação aos discípulos, e aos cristãos em geral, significa desistir, abandonar. Assim, a comunidade é convidada a pedir ao Pai o dom da perseverança. Em outras palavras, é um pedido de coragem para levar adiante um projeto tão audacioso como o de Jesus. É necessária muita resistência para lutar pelo Reino, contentar-se apenas com o necessário para cada dia e perdoar aos devedores. Por isso, deve-se pedir constantemente para não abandonar essa proposta de vida tão revolucionária e desafiadora. Isso significa ainda que a nossa continuação no seguimento de Jesus não depende apenas da nossa força ou vontade, mas da graça de Deus, pois é Ele quem dá a força da perseverança. Na mentalidade hebraica, o filho é aquele que é parecido com o pai. Portanto, chamar a Deus de Pai era bastante comprometedor, pois exigia muitas implicações concretas. Era muito mais cômodo chamá-lo de Altíssimo, Onipotente ou Santíssimo, pois estas expressões evocam a alguém distante e inacessível, inalcançável, aquele que não está presente no cotidiano da comunidade para relacionar-se com ela. O Deus de Jesus, que é Pai, está presente. Os discípulos deveriam, assim como Jesus, viver como filhos. Diante das exigências, a tendência à desistência era muito comum. Por isso, Jesus pede que eles peçam, constantemente, a graça de não abandonarem o seu projeto.

Como explicação para o conteúdo da oração ensinada, Jesus conta duas pequenas parábolas: a do amigo importuno (vv. 5-8) e a do pai terreno (vv. 11-12). Ambas têm a função didática de explicitar a proximidade do Deus-Pai e a necessidade da perseverança da comunidade na oração. Esse Deus é muito mais disponível do que um amigo, e muito melhor do que um pai humano. Desse modo, ele ressalta que a qualquer momento se pode invocar esse Deus-Pai e, pedindo o que é justo, jamais ele deixará de atender. Um amigo e um pai terreno, por melhores que sejam, tem suas limitações, mas mesmo assim não deixam de atender a outro amigo ou a um filho quando recorrem. Deus pode ser comparado a eles, mas é muito superior, não apenas em poder, mas em bondade, acima de tudo. Por isso, dá o que tem de melhor: O Espírito Santo (v. 13). Ora, o Espírito Santo é o dom de Deus, por excelência, e a prova de que ele doa o que tem de melhor.

A comunidade que se deixa guiar pelo Espírito Santo, saberá discernir para pedir ao Pai o que é, de fato, essencial. E, pedindo o essencial, é claro que o Pai concederá, desde que em consonância com a sua vontade. E é da sua vontade que todas as pessoas tenham acesso aos bem e meios necessários para viver com dignidade e que possam todos viver como irmãos e irmãs. São estas, portanto, as causas de quem reza como Jesus ensinou, pois, mais do que uma fórmula, como já foi bastante enfatizado, o Pai-nosso é reflete um jeito de viver.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, julho 19, 2025

REFLEXÃO PARA O 16º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 10,38-42 (ANO C)



A liturgia deste décimo sexto domingo do tempo comum continua a nos situar no longo caminho de Jesus com seus discípulos para Jerusalém. Como se tem afirmado nos últimos domingos, este caminho que Lucas apresenta é, mais do que um percurso físico e geográfico, um itinerário teológico e catequético, no qual Jesus revela sua identidade messiânica e forma o seu discipulado, ao mesmo tempo em que delineia os principais traços característicos da comunidade cristã: aberta, acolhedora, inclusiva e missionária. O caminho corresponde à seção narrativa mais original de Lucas e o evangelho de hoje – Lc 10,38-42 – contém mais um episódio exclusivo seu. Trata-se do relato da visita de Jesus às irmãs Marta e Maria. Embora simples do ponto de vista narrativo, esse texto é altamente rico e revolucionário, no qual diversos paradigmas são quebrados. Como já estamos bastante familiarizados com o contexto do caminho, ao invés de nos prolongarmos na contextualização do texto, recordaremos inicialmente alguns aspectos relacionados à sua interpretação ao longo da história.

E começamos recordando que, por muito tempo, esse texto foi usado simplesmente para fundamentar a distinção entre duas formas de vida caras ao cristianismo católico: a vida ativa e a contemplativa, com uma clara superioridade da vida contemplativa, reservada a pessoas criteriosamente escolhidas por Deus para viver separadas do mundo, preservadas em mosteiros e conventos. De acordo com essa interpretação tradicional, a personagem Marta representa a vida ativa, enquanto Maria é o ícone da vida contemplativa. Contudo, manter o texto nesta perspectiva é aprisioná-lo e deixar de perceber a sua riqueza ímpar no conjunto da obra de Lucas, o autor do Novo Testamento que mais valoriza a participação das mulheres na missão de Jesus e nas primeiras comunidades cristãs. Por sinal, uma outra recomendação importante para uma compreensão adequada deste relato é mantê-lo isolado da passagem do Evangelho de João (Jo 11,1-43) na qual Jesus também aparece em relação de proximidade com as mesmas irmãs Marta e Maria, por ocasião da morte e reanimação de Lázaro, também irmão das duas. Há uma tendência quase automática de relacionar os dois relatos, o que prejudica a compreensão da perspectiva de Lucas que, para evidenciar a importância do encontro de Jesus com as duas mulheres, não faz qualquer menção a Lázaro. É nessa linha que devemos fazer a leitura.

Olhemos, então, atentamente para o texto, para perceber as novidades que Lucas apresenta nele. Eis o início: «Jesus entrou num povoado, e certa mulher, de nome Marta, recebeu-o em sua casa» (v. 38). Antes de tudo, recordamos que, naquele contexto, a mulher não tinha autonomia para receber um homem em casa. Esse papel exclusivo da figura masculina. Enquanto o homem dava atenção ao hóspede, as mulheres da casa permaneciam na cozinha, preparando o alimento e não ousavam, sequer, saudar o visitante. Por isso, trata-se de algo completamente novo, o que demonstra o quanto a atitude de Marta foi revolucionária. Ao acolher Jesus, ela rompeu barreiras. E revolucionária também foi a atitude de Jesus: no seu tempo, não era conveniente para um homem aceitar a acolhida só de mulheres. Temos logo no primeiro versículo, portanto, uma dupla transgressão: de Marta e de Jesus; ambos fizeram o que não era recomendável, conforme a moral e os bons costumes vigentes na época. Com isso, o evangelista ensina que homem e mulher possuem a mesma dignidade e, consequentemente, os mesmos direitos. Por onde Jesus passa, Ele quebra barreiras, rompe condicionamentos e promove libertação.

Na sequência, o evangelista introduz mais uma personagem, e com uma atitude ainda mais revolucionária que a de Marta: «Sua irmã, chamada Maria, sentou-se aos pés do Senhor, e escutava a sua palavra» (v. 39). A posição de Maria é muito importante e significativa, pois é a posição do discípulo, de acordo com o método rabínico de ensinamento. O gesto de sentar aos pés não quer dizer adoração nem devoção, como muitas interpretações afirmavam. Sentar-se aos pés para escutar quer dizer ser discípulo ou discípula; é aceitar o outro como mestre, como recordou Paulo em relação a Gamaliel, o seu mestre, ao defender-se dos judeus de Jerusalém: «Eu sou judeu, nascido em Tarso da Cilícia, mas criei-me nesta cidade. Fui educado aos pés de Gamaliel» (At 22,3). Portanto, Maria é apresentada como discípula, ao ser descrita com essa atitude e, consequentemente, como modelo a ser seguido. Assim, também ela rompe muitas barreiras. De fato, esse papel não era permitido às mulheres do seu tempo. Temos aqui, novamente, uma dupla transgressão: a de Maria, que exerce um papel inconcebível para uma mulher da sua época, e a de Jesus que, ao aceitar mulheres no seu discipulado, põe cada vez mais em xeque a sua condição de mestre. Inclusive, na época circulava o seguinte ditado: «é melhor queimar a Torá do que colocá-la nas mãos de uma mulher». Com isso, Jesus rompe com todos os padrões de mestre da sua época. De fato, rabino algum do seu tempo aceitava mulheres no discipulado. Além disso, já não era a Torá que ele ensinava, mas o seu próprio ensinamento, que consistia na apresentação do Evangelho do Reino, ou seja, era sua própria mensagem, cujo centro é o amor, fonte de vida abundante e de plena humanização.

Apesar de ter recebido um homem em casa, atitude revolucionária para uma mulher da sua época, Marta ainda estava condicionada, pelo menos em partes, aos padrões e normas do seu tempo, imaginando que a mulher não poderia fazer outra coisa além dos cuidados do lar, como recorda o evangelista: «Marta, porém, estava ocupada com muitos afazeres» (v. 40b). Isso quer dizer que ela recebeu Jesus em casa, mas ainda não o tinha acolhido plenamente, ou seja, a atenção dela ainda não estava voltada para ele. Temos aqui a descrição de uma situação normal para uma dona de casa, principalmente tendo de preparar refeição para uma visita importante. É a imagem típica da dona de casa disciplinada que não perde tempo para manter a casa em ordem e servir da melhor maneira possível aos hóspedes. Por isso, ela pede que Jesus intervenha, pois, fazendo tudo sozinha, talvez, não conseguisse preparar a refeição a tempo: «Senhor, não te importas que minha irmã me deixe sozinha, com todo o serviço? Manda que ela me venha ajudar!» (v. 40b).  Embora normal para uma dona de casa, o pedido de Marta é absurdo para Jesus: tirar Maria dos seus pés seria fazê-la renunciar à condição de discípula e privá-la de um direito conquistado, um ato de emancipação feminina. Nesse sentido, Marta revela-se acomodada e até egoísta, certamente por não ter ainda experimentado o que Maria já estava saboreando: a escuta de Jesus, suas palavras de vida, que libertam e humanizam. É interessante notar que ela não chama a irmã, mas pede a intervenção de Jesus, recorrendo à autoridade masculina, o que demonstra a sua necessidade de emancipação, pois a antiga mentalidade continuava arraigada nela. Para ela, somente a palavra de um homem poderia fazer Maria mudar de atitude.

Com serenidade, Jesus responde à solicitação de Marta, sem, no entanto, atender ao seu pleito, ou seja, sem tirar Maria dos seus pés: «O Senhor, porém, lhe respondeu: “Marta, Marta! Tu te preocupas e andas agitada por muitas coisas”» (v. 41). Antes de tudo, é necessário recordar que Jesus não está repreendendo Marta, como tradicionalmente tem sido interpretado esse versículo. De fato, ver essa passagem como uma repreensão é um dos maiores equívocos das interpretações mais comuns. É inegável que Jesus vê o ativismo desenfreado, no qual Marta estava envolvida, como um obstáculo à escuta da sua Palavra. Diante disso Ele não a repreende, mas dá uma oportunidade, faz um convite para o discipulado. Na linguagem bíblica, a dupla invocação de um nome por Deus ou por um mensageiro seu, como aqui – «Marta, Marta!» – é indicativo de chamado vocacional; recordemos alguns casos: «E Deus o chamou do meio da sarça, dizendo: ‘Moisés, Moisés!’ Este respondeu: ‘Eis-me aqui!’» (Ex 3,4); «Veio o Senhor e chamou como das outras vezes: ‘Samuel, Samuel!’ e Samuel respondeu: ‘Fala, pois, teu servo te escuta’» (1Sm 3,10); «Saulo, Saulo, porque me persegues?» (At 9,4b). Como Maria já tinha abraçado o discipulado, o que foi demonstrado pelo gesto de sentar-se aos seus pés, Jesus chama também Marta a essa condição, ao invés de repreendê-la pelas suas preocupações. Esse chamado pode ser visto também como uma maneira de equilibrar a comunidade, pois já havia duas duplas de irmãos entre os discípulos: Simão e André, João e Tiago (Lc 5,1-11; 6,14); é chegado também o momento de ter uma dupla de irmãs: Marta e Maria. Por isso, essa passagem é tão relevante para o caminho de Jesus e, consequentemente, para a vida da comunidade cristã em todos os tempos.

Assim como os discípulos pescadores foram chamados a deixar as redes para segui-lo, Marta é chamada a deixar certas preocupações e, assim como sua irmã, optar pela “parte boa”, como indica Jesus: «uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada» (v. 42). Embora a tradução litúrgica use a expressão “a melhor parte”, o correto é “a parte boa”, conforme o texto na língua original (em grego: τήν άγαθήν μερίδα – tén agathén merída). A parte boa quer dizer que se trata de algo incomparável, que não pode ser medido. Essa “parte boa” é o Evangelho, o conjunto do ensinamento de Jesus e a sua própria pessoa, por isso, é a única coisa necessária. É escolhendo a “parte boa” que o ser humano encontra vida em plenitude e, por isso, se torna uma pessoa livre, sobretudo, para servir. Depois de escolher a parte boa, ou seja, sentar-se aos pés de Jesus e ouvi-lo, a pessoa se torna também servidora, mas servirá com amor, com as motivações renovadas. E isso faz o serviço deixar de ser um peso, como estava sendo para Marta. Ora, Marta, por mais solícita que fosse ao receber Jesus em sua casa, Marta ainda estava presa a muitos condicionamentos do seu tempo. Por isso, Jesus a chamou, motivou-a a optar a parte boa também, para ela, finalmente, libertar-se.

Ser discípulo ou discípula de Jesus é optar pela liberdade, abrir mão de todas as formas de prisão existentes. Esse chamado é aberto a todos e todas. Foi compreendido por Maria e Jesus o estende também à sua irmã. A própria Marta já tinha dado um grande passo de emancipação ao atrever-se a acolher um homem em sua casa. Faltava mais um: sentar-se aos pés do mestre para ouvi-lo. Fazendo isso, ela estaria escolhendo a “parte boa” e, logo, conquistando a liberdade plena. Esse chamado é dirigido a todas as pessoas, de todos os tempos e lugares. Com isso, Jesus declara que mulher não foi criada simplesmente para os cuidados do lar, mas para ser o que ela quiser ser, e estar onde quiser, inclusive discípula de um nazareno pobre e mal-afamado, um mestre ao revés, como era Ele. 

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

sábado, julho 12, 2025

REFLEXÃO PARA O 15º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 10,25-37 (ANO C)



Neste décimo quinto domingo do tempo comum, a liturgia continua a leitura semi-contínua do Evangelho de Lucas, como é característico do ano litúrgico C. O texto proposto para este dia – Lc 10,25-37 – está localizado ainda no início da longa seção do caminho de Jesus para Jerusalém, e compreende uma das passagens mais bonitas, profundas e conhecidas de todo o Novo Testamento. Trata-se da famosa parábola do “bom samaritano” ou do “samaritano compassivo”, com o diálogo introdutório entre um mestre da Lei e Jesus. Como se sabe, o caminho no Evangelho de Lucas possui uma importância ímpar, em comparação aos outros evangelhos. Não é apenas um percurso físico e geográfico, mas é, acima de tudo, um itinerário formativo, no qual Jesus apresenta as exigências essenciais do seu discipulado e apresenta os principais elementos do seu programa. Por sinal, o caminho é a seção narrativa mais original de Lucas, é onde ele apresenta mais material exclusivo seu, ou seja, passagens que não existem em outros evangelhos. E a parábola do bom samaritano, lida hoje, é uma dessas. Por sinal, ela pode ser considerada uma síntese de todo o Evangelho de Lucas. Juntamente com a parábola do “pai misericordioso”, também chamada de parábola do “filho pródigo” (Lc 15,11-32), essa do samaritano bom ou compassivo constituem a melhor justificativa para a aplicação do título de “evangelho da misericórdia” ao evangelho lucana.

Esta parábola é um daqueles episódios em que Jesus esbanja misericórdia, o que é muito comum no Evangelho de Lucas. Ela está entre as mais conhecidas de todo Novo Testamento. Na verdade, é a segunda mais lida e estudada, desde os primeiros séculos, ficando atrás apenas daquela do filho pródigo, que ocupa o primeiro lugar. Para compreendê-la bem é importante considerar o seu contexto que, em parte, já foi apresentado anteriormente, e as circunstâncias que levaram Jesus a contá-la. Ainda sobre o caminho, vale ressaltar a abertura de Jesus: enquanto caminha, ele interage com as pessoas, escuta e responde às inquietações dos diversos interlocutores que encontra. Por isso, o caminho de Jesus constitui também um paradigma para a Igreja, na perspectiva de Lucas; é antecipação da “Igreja em saída”, que será ainda mais ressaltada em Atos dos Apóstolos, o segundo volume da sua obra. A parábola do bom samaritano surge como resposta de Jesus ao questionamento de um mestre da Lei. Essa observação também é importante, pois as parábolas de Jesus, em geral, mas sobretudo em Lucas, não surgem do nada, e sim das situações concretas, a partir das interpelações dos seus interlocutores. Nesse caso específico, a parábola ilustra a resposta de Jesus a um mestre da Lei que, embora fosse um grande conhecedor das Escrituras, lhe faltava a vivência do essencial, que é o amor ao próximo, por meio do qual se demonstra adesão aos propósitos de Deus.

O texto começa dizendo que «um mestre da Lei se levantou e, para tentar Jesus, fez-lhe uma pergunta» (v 25a). De imediato, se percebe o quanto Jesus era acessível. Enquanto caminhava, qualquer pessoa poderia dirigir-se a ele, tanto pessoas bem-intencionadas quanto mal-intencionadas. O mestre da Lei era um estudioso autorizado pela religião para interpretar as Sagradas Escrituras do judaísmo, que compreende todo o Antigo Testamento, sendo que a Lei – a Torá (Pentateuco) – é a parte principal. Lucas não esconde as intenções do mestre da Lei: tentar Jesus, ou seja, colocá-lo à prova. Obviamente, o mestre da Lei não pretendia tirar uma dúvida teórica com Jesus, mas procurar, em sua resposta, um motivo para acusá-lo de desvio de doutrina, quer dizer, de herege. Por isso, Lucas emprega aqui o mesmo verbo usado no episódio das tentações (em grego: ἐκπειράζω = ekpeirazô; Lc 4,1-13), cujo significado é tentar; pôr alguém à prova. Esse indicativo é importante porque já confere um caráter diabólico às intenções do mestre da Lei, pois, tentar Jesus, pondo-o à prova é a atitude de satanás, conforme a linguagem bíblica e lucana, principalmente. É a postura de quem não aceita o Deus acolhedor e misericordioso que Jesus veio mostrar ao mundo. Após apresentar a intenção e a atitude do mestre da Lei, que era tentar Jesus, perguntando, temos, então, o conteúdo da pergunta: «Mestre, que devo fazer para receber em herança a vida eterna?» (v. 25b). Se trata de uma pergunta muito profunda e bem elaborada, própria de um bom conhecedor da Escritura, como, de fato ele era, ao mesmo tempo em que apresenta uma lacuna: a preocupação excessiva com a vida eterna, sem demonstrar interesse pela vida presente e concreta do cotidiano.

Como era próprio da cultura dos rabinos responder a uma pergunta com outra pergunta, Jesus também assim o faz, e responde perguntando exatamente o que a Lei dizia a propósito da observação do interlocutor: «O que está escrito na Lei, como lês?» (v. 26). E, como bom conhecedor, o mestre da Lei responde prontamente com duas citações da Escritura (Dt 6,5; Lv 19,18): «Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração e com toda a tua alma, com toda a tua força e com toda a tua inteligência; e ao teu próximo como a ti mesmo!» (v. 27). Esta resposta é própria de quem examinava a Lei dia e noite, como era próprio do seu ofício. De certo modo, esse mestre da Lei se destacava entre os demais membros de sua categoria que também entrarão em contato com Jesus, fazendo perguntas. Ele sabe o que é fundamental na Lei. No entanto, a continuidade do diálogo revela a sua exterioridade e superficialidade. Teoricamente, seu conhecimento era perfeito, tanto que o próprio Jesus reconheceu: «Tu respondeste corretamente. Faze isso e viverás» (v. 28). Mas, sua tentativa de justificar-se demonstra o quanto era limitada sua vivência religiosa, descomprometida; ele conhecia o ensinamento, mas parecia não o praticar, como se percebe pela sua pergunta a Jesus: «Ele, porém, querendo justificar-se, disse a Jesus: “E quem é o meu próximo?”» (v. 29). Ora, ao querer justificar-se, o mestre da Lei praticamente reconhece que seu conhecimento era apenas teórico, pois nem sequer sabia quem era seu próximo; na verdade, ele não sabia fazer-se próximo. Ele conhecia todas as passagens da Escritura, era um intérprete oficial e, no entanto, não sabia quem era seu próximo porque não se aproximava das pessoas com suas necessidades reais e dramas existenciais. Vivia fechado em seu mundo.

Daí, percebendo a malícia do mestre da Lei, e ao mesmo tempo, o vazio de sentido naquela religião estéril em que ele vivia, Jesus aproveita a oportunidade para apresentar um dos seus mais célebres ensinamentos, contando a parábola do bom samaritano, como resposta. Aqui, ele revela toda a sua habilidade pedagógica. Das situações concretas da vida, Jesus sabia tirar os seus ensinamentos mais profundos e propô-los, desconstruindo as ideias ultrapassadas e excludentes que permeavam a mentalidade da maioria de seus interlocutores, sobretudo os fariseus e mestres da Lei, que não se apresentavam apenas como interlocutores, mas como ferrenhos adversários. A parábola contada a esse mestre da Lei não visa apenas fazer-lhe um esclarecimento teórico; quer provocar-lhe a todo um processo de revisão de conceitos, inclusive, a uma nova leitura da história de Israel, uma vez que a apresentação de um samaritano bom leva o interlocutor a revisar importantes acontecimentos históricos, como veremos ao longo da explicação. Ao contar a parábola, portanto, Jesus propõe um caminho de humanização, como, aliás, ele faz em todos os seus ensinamentos. Porém, nesse o aspecto humanizador se torna mais evidente, pois a misericórdia-compaixão é apresentada como fonte, o que faz desta parábola uma miniatura de toda a sua mensagem.

Eis então a parábola: «certo homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos de assaltantes» (v. 30a). Ora, embora a distância entre as duas cidades não fosse tão grande, era aproximadamente 30 km, havia grandes obstáculos naquele caminho. A começar pelo desnível entre as duas cidades. Enquanto Jerusalém estava a mais de 700 metros acima do nível do mar, Jericó estava a aproximadamente 300 metros abaixo do nível do mar. Além disso, tinha de atravessar o deserto de Judá. Era uma estrada tão perigosa, que não se recomendava percorrê-la sozinho, mas sempre em grupo, considerando tanto os obstáculos da natureza quanto o perigo dos assaltantes. Logo, com esse primeiro dado Jesus não apresenta nenhuma novidade, uma vez que eram comuns os assaltos naquela estrada. Portanto, de início, a história contada parece não despertar curiosidade alguma; é no desenvolvimento que as novidades aparecem. Na descrição do assalto, Jesus acrescenta detalhes, enfatizando que os assaltantes, além de espancar o homem, levaram tudo e o deixaram “quase morto” (v. 30b). Claro que há, nisso tudo, uma clara intenção teológico-literária de Lucas visando supervalorizar a atitude do samaritano e contrapô-la à indiferença do sacerdote e do levita. Por isso, na continuidade, Ele diz: «Por acaso, um sacerdote estava descendo por aquele caminho» (v. 31a); provavelmente, estava voltando de Jerusalém, após uma semana inteira de serviço no templo, conforme a distribuição das classes sacerdotais durante o ano litúrgico judaico. Portanto, estava em seu grau máximo de pureza. Por isso, «quando viu o homem, seguiu adiante pelo outro lado» (v. 30b), exatamente porque o contato com um homem quase morto o tornaria impuro também, conforme determinava a Lei. E a Lei estava acima da vida para a religião judaica do tempo de Jesus. O sacerdote cumpre rigorosamente a Lei, assim como o mestre interlocutor de Jesus tinha dificuldade em reconhecer quem é o seu próximo porque vivia uma religiosidade meramente ritualista e vazia de amor.

A mesma indiferença do sacerdote é repetida por um levita, que era uma espécie de “sacristão”, o auxiliar dos sacerdotes no serviço litúrgico do templo. Diz o texto que ele «chegou ao lugar, viu o homem e seguiu pelo outro lado» (v. 32). Como bom “sacristão”, o levita não poderia ter outro exemplo a seguir senão o do sacerdote, por isso, imita seus gestos, inclusive a indiferença diante do sofrimento do outro. Como provavelmente também voltava do serviço litúrgico, não queria contaminar-se com um quase morto, certamente ensanguentado do espancamento. Temos assim, com a descrição das atitudes do sacerdote e do levita, uma forte chamada de atenção de Jesus: a religião que provoca distanciamento e preconceitos entre as pessoas é perigosa. Quando a religião não ajuda a tornar as pessoas melhores, mais sensíveis aos sofrimentos e necessidades do próximo, quando ela não funciona como meio de humanização, ela não faz bem. O “outro lado” escolhido pelo sacerdote e o levita representa toda indiferença que a religião pode provocar no ser humano. E Jesus denuncia esse tipo de religião. Ora, a religião só tem sentido quando serve para quebrar barreiras, superar preconceitos, aproximando as pessoas, estimulando a solidariedade e o amor.     

A denúncia de Jesus ao mestre da lei e seu modo de viver a religião chega ao ápice quando ele diz, na parábola, que «um samaritano que estava viajando, chegou perto dele, viu e sentiu compaixão» (v. 33). Ora, os samaritanos eram mal vistos pelos judeus; havia uma rivalidade que durava vários séculos, entre eles. Quando a Assíria conquistou Samaria, a capital do Reino do Norte, em 722 a.C., deportou a população local e trouxe povos estrangeiros para habitar na cidade (2 Rs 17,24-28). Os novos habitantes levaram seus costumes e tradições religiosas, o que levou a Samaria a ser conhecida como terra de sincretismo, de heresias e povo impuro. É essa a origem histórica da relação conflituosa. Inclusive, quando os judeus retornaram do exílio e começaram a reconstruir o tempo e a cidade de Jerusalém, mesmo em meio às dificuldades, rejeitaram a ajuda oferecida pelos samaritanos, como atesta o livro histórico de Esdras (Es 4,3). A maior ofensa que um judeu poderia receber era ser chamado de samaritano. Era o mesmo que dizer herege, pecador, impuro... alguém da pior qualidade possível. Inclusive, o próprio Jesus com seus discípulos tinham sido rejeitados pelos samaritanos no início do caminho (Lc 9,53), e agora ele apresenta um samaritano como alguém que age como Deus.

Ver e ter compaixão são atitudes próprias de Deus, o mesmo que viu a miséria do seu povo no Egito e desceu para libertá-lo (Ex 3,7ss). E, ironicamente, os homens que pareciam conhecer a Deus, o sacerdote e o levita, não conheciam os seus sentimentos, mas um infiel aos olhos da religião agiu à maneira de Deus. Aqui está o auge da contundente e irônica denúncia de Jesus. Inclusive, o verbo empregado nesta parábola para expressar a compaixão do samaritano é usado somente três vezes no Evangelho de Lucas: aqui (v. 33), no episódio do filho morto da viúva de Naim (7,13) e na parábola do pai misericordioso ou filho pródigo (15,20). Trata-se do verbo grego “splanknizomai” (σπλαγχνίζομαι), que expressa o amor que sai do mais profundo do ser, as vísceras ou o útero, o que é mas íntimo que o próprio coração, conforme a mentalidade semita. Esse verbo possui um significado tão profundo, que chega a ser impossível expressá-lo com palavras. Exprime um agir que, depois de Deus, somente um pai ou uma mãe poderiam demonstrar, agindo e amando. Para amar de modo tão profundo, com misericórdia e compaixão, é necessário aproximar-se e ver a situação do outro, abaixando-se totalmente até tocar as feridas, como fez o samaritano. Por isso, misericórdia ou compaixão não é um sentimento, mas modo de agir, que corresponde à maneira de Deus.

O sacerdote e o levita viram o estado miserável em que se encontrava o homem, mas foram para o outro lado do caminho. O samaritano viu, sentiu compaixão e aproximou-se. Duas atitudes completamente opostas. A compaixão do samaritano fez com que ele se aproximasse e cuidasse do homem, como diz o texto: «Aproximou-se dele e fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas. Depois colocou o homem em seu próprio animal e levou-o a uma pensão, onde cuidou dele» (v. 34). Ao todo, entre os versículos 33 a 35, são empregados mais de dez verbos de ação para descrever a atitude do samaritano. Assim, Jesus contrapõe a omissão dos praticantes da religião à ação movida de compaixão da parte daquele que era considerado herege, denunciando ainda mais o mestre da Lei. Por isso, pode-se dizer que esta é a parábola de Jesus que contém mais dados autobiográficos: o agir do samaritano se assemelha ao seu, que veio para estar com os pecadores, com as pessoas sofridas, excluídas e marginalizadas. Uma vez que a parábola foi contada como resposta à pergunta «E quem é o meu próximo?» (v. 29), Jesus devolve novamente uma pergunta ao mestre, pedindo dele um posicionamento: «Na tua opinião qual dos três foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?» (v. 36). Da pergunta de Jesus emerge um dado muito importante: o próximo não é, o próximo se faz. Ora, para os judeus, o próximo era o parente, o companheiro de religião e, no máximo, o estrangeiro radicado entre eles. Portanto, era uma categoria estática, pré-definida. Jesus diz, com a parábola e a pergunta final que o próximo se faz, ou seja, são as circunstâncias que tornam alguém próximo do outro. Deve-se fazer próximo de toda pessoa, com predileção pelas marginalizadas, feridas, como fez o samaritano.

A resposta do mestre à pergunta de Jesus é correta, embora ele mesmo não a aceite: «Aquele que usou de misericórdia para com ele» (v. 37a) foi o próximo. Dois aspectos chamam a atenção nessa resposta: primeiro, o mestre evita mencionar “o samaritano”, o que para ele era uma espécie de palavrão, por isso, diz apenas “aquele”, quer dizer que aquele mestre da Lei, judeu fiel, continuava fechado em sua mentalidade mesquinha e cheio de rancor; segundo, o uso da misericórdia que é atribuído somente a Deus em todo o Antigo Testamento e apenas a Jesus no Novo, é agora atribuído também a um homem, e da pior qualidade possível, conforme a mentalidade judaica da época. E isto é muito significativo. A única vez em que se atribui a um homem o uso da misericórdia é aqui. E não se atribui a um homem da religião, mas a um herege. Essa é uma das grandes novidades de Jesus e de Lucas em seu Evangelho. De todos os envolvidos na parábola, o único que foi considerado um exemplo e parecido com Deus foi um homem que a religião condenava. Ao mestre da lei, Jesus aconselha: «Vai e faze a mesma coisa» (v. 37), ou seja, pede que seja como um samaritano, um excluído e tratado como herege, mas que se deixe mover pela compaixão. Este convite, imperativo, é dirigido a todo ouvinte e leitor da obra de Lucas, em todos os tempos. Fazer a mesma coisa que o samaritano é fazer-se próximo das pessoas mais necessitadas, as pessoas feridas e marginalizadas.

Com isso, Jesus convida o mestre da Lei e a todas as pessoas, de ontem e de hoje, a romper todas as barreiras impostas pela religião e perceber que o amor a Deus e ao próximo são inseparáveis. É preciso fazer-se próximo, à medida em que se caminha e vê as situações que necessitam de cuidado e atenção. Por isso, o samaritano é imagem do Deus de Jesus e paradigma para os cristãos e cristãs de todos os tempos.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, julho 05, 2025

REFLEXÃO PARA O 14º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 10,1-12.17-20 (ANO C)



Neste décimo quarto domingo do tempo comum, a liturgia retoma a leitura semi-contínua do Evangelho de Lucas, interrompida domingo passado, por ocasião da solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo, que substitui o décimo terceiro domingo. O texto proposto para hoje é Lc 10,1-12.17-20, tradicionalmente conhecido como a “missão dos setenta e dois discípulos”, um episódio exclusivo de Lucas, que funciona como uma síntese antecipada da missão universal, o que o autor irá desenvolver com mais precisão no segundo volume da sua obra, o livro dos Atos dos Apóstolos. O contexto dessa passagem já é o da grande viagem – o caminho –de Jesus para Jerusalém, em companhia dos seus discípulos, que constitui a seção narrativa mais extensa de todo o Evangelho de Lucas, totalizando dez capítulos (9,51 – 19,28). Com esse caminho, o evangelista não trata apenas de um percurso físico, mas de um itinerário teológico e catequético, ressaltando a itinerância do movimento de Jesus e preparando a missionariedade futura da Igreja. Para Lucas, o caminho é metáfora da missão da Igreja, do discipulado de Jesus e da própria vida.

Como se sabe, literalmente, ser discípulo é ser seguidor de alguém – um mestre. Logo, é na dinâmica do caminho que o discipulado se constrói. Por isso, essa etapa corresponde ao ponto alto da formação dos discípulos de Jesus, na perspectiva do evangelista Lucas. Inclusive, é durante essa seção narrativa que ele mais apresenta mais elementos exclusivos seus, ou seja, acontecimentos e palavras de Jesus que não se encontram nos outros evangelhos. Com exceção do chamado “Evangelho da Infância” (Lc 1 – 2), podemos dizer que a etapa do caminho para Jerusalém corresponde ao que Lucas apresenta de mais original em seu Evangelho. E a passagem lido na liturgia de hoje ilustra essa originalidade, o que serve como indicativo de importância. Diante disso, é importante recordar que os três evangelhos sinóticos mostram o envio missionário dos Doze discípulos (Mt 10,1-11; Mc 6,7-13; Lc 9,1-6), cujas regras são praticamente as mesmas do episódio de hoje; mas a missão dos setenta e dois é exclusividade de Lucas. Ao longo da reflexão, ainda serão recordados outros elementos a nível de contexto, essenciais para a compreensão do texto.

Infelizmente, o primeiro elemento a ser destacado no evangelho de hoje foi omitido pela tradução do lecionário, sendo substituído pela genérica fórmula de introdução “naquele tempo”. Trata-se da expressão “depois disso” ou “depois dessas coisas” (em grego: Μετὰ δὲ ταῦτα – metá dé tauta). Ora, sempre que uma cena bíblica começa com uma expressão desse tipo, deve-se recordar os acontecimentos anteriores, pois é certo que há relação, seja como continuidade, ruptura ou consequência. No caso do evangelho de hoje, a relação parece ser de consequência. Os acontecimentos anteriores, ou seja, o “isso” ou “essas coisas” que precedem a missão dos setenta e dois discípulos são o conjunto dos fatos que se deram após o início do caminho: a passagem por um povoado da Samaria, onde houve rejeição dos samaritanos e intolerância dos filhos de Zebedeu (Lc 9,51-53); depois desse fato, enquanto caminhavam, Jesus foi interpelado por três pessoas que demonstraram interesse em segui-lo, mas impuseram certas condições prévias, e Jesus nãos as aceitou. O envio dos setenta e dois, portanto, é precedido por duas situações de aparente fracasso no caminho de Jesus, e deve ser visto como resposta a elas. Por isso, é também uma demonstração da sua perseverança e confiança na força da Palavra. Diante das adversidades, ele não desistia; pelo contrário, renovava as convicções e reforçava o empenho para que o anúncio acontecesse com mais eficácia.

Diante disso, «O Senhor escolheu outros setenta e dois discípulos e os enviou dois a dois, na sua frente, a toda cidade e lugar aonde ele próprio devia ir» (v. 1). O termo “outros” (em grego: ἕτερος – heteros) indica tratar-se de um grupo além dos Doze, enviados em missão antes do início do caminho (9,1-6). São outros, mas não inferiores, são outros porque o seguimento de Jesus é aberto a todos, aos outros, ao que é diferente. Todos têm espaço na comunidade cristã. De fato, o número dos “outros” – setenta e dois – evoca o universalismo, pois os judeus imaginavam que fosse esse o número das nações da terra (Gn 10) – setenta ou setenta e duas. Com isso, o evangelista recorda que o mundo todo será contemplado com o anúncio do Reino de Deus e, por consequência, humanizado por seu amor. É também uma recordação atualizada dos setenta e dois anciãos escolhidos como colaboradores de Moisés na condução do povo de Deus na travessia do deserto, no contexto do êxodo, a quem foi dado o espírito da profecia (Nm 11,24-30). O envio “dois a dois” recorda a importância da vida comunitária; o ser humano não foi criado para estar sozinho, mas acompanhado (Gn 1,18). O número dois é o princípio da pluralidade, o rompimento do fechamento e do egoísmo. Aqui há também uma maneira de chamar a atenção para o compromisso dos discípulos: a chegada de Jesus e sua mensagem a um lugar depende essencialmente da presença dos seus seguidores. Jesus vai aonde eles vão, pois são eles que levam Jesus, através da missão.

Com a imagem da messe, Jesus alerta para a urgência do anúncio, ao mesmo tempo em que ensina os discípulos a cultivarem intimidade com o Pai, o verdadeiro dono da messe: «E dizia-lhes: “A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. Por isso, pedi ao dono da messe que mande trabalhadores para a colheita”» (v. 2). A messe é grande porque representa o mundo inteiro, o que torna os trabalhadores sempre poucos, insuficientes, para deixar o mundo como Deus quer: plenamente humanizado, cheio de amor, com todas as pessoas vivendo como irmãs umas das outras, cuidando também da criação. Por isso, devemos todos nos sentir enviados e destinatários, ao mesmo tempo, pedindo sempre ao dono da messe que mande operários para a colheita. O dono da messe é Deus – o Pai –, princípio e fonte da missão, sendo Jesus – o Filho – o primeiro enviado seu. Com efeito, Jesus é o enviado do Pai, e tem autoridade para ampliar sua missão, compartilhando as suas prerrogativas com seus discípulos de todos os tempos, tamanho o seu amor compassivo. A grandeza da messe corresponde também à imensidão dos braços de Deus, capazes de abraçar o mundo inteiro. Jesus veio ao mundo estender esses braços sobre toda a humanidade e, para isso, quis contar com a colaboração dos seus seguidores e seguidoras. A missão da Igreja, portanto, pode ser definida como extensão do abraço de Deus ao mundo. Por isso, deve ser marcada pelo amor, fonte de salvação e humanização. Pedir operários ao Pai indica a necessidade de intimidade com Deus, além de confiança na sua providência.

Ao mesmo tempo em que convoca e envia, Jesus prevê hostilidades aos discípulos durante a missão, por isso os adverte: «Eis que vos envio como cordeiros para o meio de lobos» (v. 3). Ora, os últimos acontecimentos já demonstravam que a mensagem de Jesus encontraria empecilhos. Aliás, desde o anúncio do seu ministério ele sofria rejeição, como aconteceu em Nazaré, sua terra natal (Lc 4,14-30). O anúncio do Reino vai de encontro a projetos de poder que incentivam a violência e fazem uso dessa. Os representantes desses projetos são verdadeiros lobos. E, para Jesus, é inadmissível o uso da força pelos seus discípulos, nem mesmo para autodefesa, por isso, emprega a imagem do cordeiro, como símbolo de quem não reage à violência com violência em hipótese alguma. Faz parte da missão confiar na bondade das pessoas, inclusive para a própria sobrevivência, por isso, ele recomenda a sobriedade na missão: «Não leveis bolsa, nem sacola, nem sandálias, e não cumprimenteis ninguém pelo caminho!» (v. 4). Bolsa e sacola significam desejo de acúmulo e apego ao supérfluo, e sandálias aqui, especificamente, significa comodidade; portanto, são coisas incompatíveis com o seguimento de Jesus. É claro que a sandália constitui um item indispensável para o caminho. Nesse versículo possui valor simbólico. Também a recomendação para não cumprimentar ninguém no caminho é simbólica, indica do urgência do anúncio, pois as saudações pessoais nas antigas culturas orientais compreendiam rituais bastante longos.

Na continuidade das recomendações, Jesus ensina o que é realmente essencial anunciar: «Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: “A paz esteja nesta casa!”. Se ali morar um amigo da paz, a vossa paz repousará sobre ele; se não, ela voltará para vós» (vv. 5-6). A paz era o bem mais almejado para o ser humano, de acordo com a mentalidade bíblica, pois compreendia a felicidade e o bem-estar integral do ser humano, contemplando todas as dimensões da vida, e isso coincide exatamente com a proposta do Reino de Deus: promover o bem do ser humano, acima de tudo. Além do desapego aos bens materiais, o discipulado exige também o abandono de mentalidades fechadas e de preceitos separatistas, como as leis de pureza alimentar: «Permanecei naquela mesma casa, comei e bebei do que tiverem, porque o trabalhador merece o seu salário. Não passeis de casa em casa. Quando entrardes numa cidade e fordes bem recebidos, comei do que vos servirem, curai os doentes que nela houver e dizei ao povo: “O Reino de Deus está próximo de vós”» (vv. 7-9). Um dos maiores entraves para a convivência dos judeus com não-judeus era a observância rígida das regras de pureza alimentar; eles não entravam de casa em casa com medo de se contaminarem; tinham uma lista de alimentos “puros” e só comiam daquilo, o que faz com que essa recomendação de Jesus se torne altamente revolucionária. A missão dos enviados de Jesus, independente da época histórica, consiste na promoção da vida e da dignidade das pessoas. Curar e expulsar demônios, na linguagem bíblica, é combater tudo o que impede o bem-estar do ser humano, incluindo a cura das doenças e a libertação das estruturas injustas e toda forma de escravidão; e esses são os sinais de que o Reino de Deus está se concretizando.

Jesus previne os discípulos também para a possibilidade de não aceitação da sua mensagem, não pregando vingança, mas alertando para que não insistam diante da recusa e partam logo para outros lugares: «Mas, quando entrardes numa cidade e não fordes bem recebidos, saindo pelas ruas, dizei: “Até a poeira de vossa cidade, que se apegou aos nossos pés, sacudimos contra vós. No entanto, sabei que o Reino de Deus está próximo!”. Eu vos digo que, naquele dia, Sodoma será tratada com menos rigor do que essa cidade» (vv. 10-12). O anúncio cristão é uma proposta de vida que não pode ser imposta, mas apenas oferecida. Aqui, Jesus não propõe a vingança para quem não aceita o anúncio do Reino, mas alerta os discípulos a não perderem tempo e deixa claro que há consequências para quem recusa o anúncio do Reino; essas consequências não são castigo, mas a privação da vida plena e abundante que somente com a vivência do Evangelho é possível experimentar.

A liturgia salta alguns versículos (vv. 13-16) e já passa para o retorno dos discípulos, bastante entusiasta, por sinal: «Os setenta e dois voltaram muito contentes, dizendo: “Senhor, até os demônios nos obedeceram por causa do teu nome”» (v. 17). A alegria dos discípulos pelo êxito da missão corresponde à força da Palavra por eles anunciada. A “obediência dos demônios” significa o mal combatido em todos os sentidos, incluindo a superação das doenças, da violência, das injustiças e preconceitos. Isso só é possível quando tudo é feito no nome de Jesus, o Reino de Deus em pessoa. Diante do entusiasmo dos discípulos, Jesus toma novamente a palavra: «Jesus respondeu: “Eu vi Satanás cair do céu, como um relâmpago. Eu vos dei o poder de pisar em cima de cobras e escorpiões e sobre toda a força do inimigo. E nada vos poderá fazer mal”» (vv. 18-19). Jesus interpreta o sucesso da missão dos setenta e dois como o fim do domínio das forças do mal sobre o mundo. A imagem de “satanás caindo do céu” não significa a queda de um monstro das alturas, mas a superação do mal pelo bem. Quer dizer que a missão transforma realidades, não obstante as hostilidades, representadas nas palavras de Jesus pelas imagens das “cobras e escorpiões”. O Evangelho liberta das mais perversas estruturas de poder que geram morte, dor, injustiça e preconceito. Onde o Reino se instaura, o mal desaparece.

Por último, Jesus recomenda aos discípulos que não se entusiasmem demais com os resultados, inclusive por precaução de um possível envaidecimento da parte deles: «Contudo, não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem. Antes ficai alegres porque vossos nomes estão escritos no céu» (v. 20). O que importa para o discipulado é a certeza de estar em sintonia com os propósitos de Deus, ajudando a construir o seu Reino. Ter o nome inscrito no céu significa a certeza de ser amado por Deus, e é isso que conta na vida do ser humano, e não os méritos pessoais de cada um. É a certeza desse amor que deve motivar o ser humano a lutar para que esse mesmo amor chegue a todos os lugares e corações e, para isso, é necessária a missão.

A missão dos setenta e dois é um aceno do evangelista Lucas à inclusão e à superação de círculos fechados que muitas vezes aprisionam o Evangelho nas comunidades. Jesus não deixou a sua mensagem a encargo somente dos Doze, mas de qualquer pessoa que esteja disposta a colaborar com a missão de fazer o Reino de Deus acontecer. Para colaborar com o Reino é necessário colocar-se em caminho com Jesus, com disposição para amar indistintamente, conviver com as diferenças, criar laços e superar barreiras. A luta contra o mal exige essa disposição.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 26º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 16,19-31 (ANO C)

Na liturgia deste domingo – o vigésimo sexto do tempo comum – o evangelho continua sendo tirado do capítulo dezesseis de Lucas, a exemplo ...