Neste décimo quarto domingo do tempo
comum, a liturgia retoma a leitura semi-contínua do Evangelho de Lucas,
interrompida domingo passado, por ocasião da solenidade dos apóstolos Pedro e
Paulo, que substitui o décimo terceiro domingo. O texto proposto para hoje é Lc
10,1-12.17-20, tradicionalmente conhecido como a “missão dos setenta e dois
discípulos”, um episódio exclusivo de Lucas, que funciona como uma síntese
antecipada da missão universal, o que o autor irá desenvolver com mais precisão
no segundo volume da sua obra, o livro dos Atos dos Apóstolos. O contexto dessa
passagem já é o da grande viagem – o caminho –de Jesus para Jerusalém, em
companhia dos seus discípulos, que constitui a seção narrativa mais extensa de
todo o Evangelho de Lucas, totalizando dez capítulos (9,51 – 19,28). Com esse
caminho, o evangelista não trata apenas de um percurso físico, mas de um
itinerário teológico e catequético, ressaltando a itinerância do movimento de
Jesus e preparando a missionariedade futura da Igreja. Para Lucas, o caminho é metáfora
da missão da Igreja, do discipulado de Jesus e da própria vida.
Como se sabe, literalmente, ser
discípulo é ser seguidor de alguém – um mestre. Logo, é na dinâmica do caminho
que o discipulado se constrói. Por isso, essa etapa corresponde ao ponto alto
da formação dos discípulos de Jesus, na perspectiva do evangelista Lucas.
Inclusive, é durante essa seção narrativa que ele mais apresenta mais elementos
exclusivos seus, ou seja, acontecimentos e palavras de Jesus que não se
encontram nos outros evangelhos. Com exceção do chamado “Evangelho da Infância”
(Lc 1 – 2), podemos dizer que a etapa do caminho para Jerusalém corresponde ao
que Lucas apresenta de mais original em seu Evangelho. E a passagem lido na
liturgia de hoje ilustra essa originalidade, o que serve como indicativo de
importância. Diante disso, é importante recordar que os três evangelhos
sinóticos mostram o envio missionário dos Doze discípulos (Mt 10,1-11; Mc
6,7-13; Lc 9,1-6), cujas regras são praticamente as mesmas do episódio de hoje;
mas a missão dos setenta e dois é exclusividade de Lucas. Ao longo da reflexão,
ainda serão recordados outros elementos a nível de contexto, essenciais para a
compreensão do texto.
Infelizmente, o primeiro elemento a
ser destacado no evangelho de hoje foi omitido pela tradução do lecionário,
sendo substituído pela genérica fórmula de introdução “naquele tempo”. Trata-se
da expressão “depois disso” ou “depois dessas coisas” (em grego: Μετὰ δὲ ταῦτα – metá
dé tauta). Ora, sempre que uma cena bíblica começa com uma expressão desse tipo,
deve-se recordar os acontecimentos anteriores, pois é certo que há relação,
seja como continuidade, ruptura ou consequência. No caso do evangelho de hoje,
a relação parece ser de consequência. Os acontecimentos anteriores, ou seja, o “isso”
ou “essas coisas” que precedem a missão dos setenta e dois discípulos são o conjunto
dos fatos que se deram após o início do caminho: a passagem por um povoado da
Samaria, onde houve rejeição dos samaritanos e intolerância dos filhos de
Zebedeu (Lc 9,51-53); depois desse fato, enquanto caminhavam, Jesus foi interpelado
por três pessoas que demonstraram interesse em segui-lo, mas impuseram certas
condições prévias, e Jesus nãos as aceitou. O envio dos setenta e dois, portanto,
é precedido por duas situações de aparente fracasso no caminho de Jesus, e deve
ser visto como resposta a elas. Por isso, é também uma demonstração da sua
perseverança e confiança na força da Palavra. Diante das adversidades, ele não
desistia; pelo contrário, renovava as convicções e reforçava o empenho para que
o anúncio acontecesse com mais eficácia.
Diante disso, «O
Senhor escolheu outros setenta e dois discípulos e os enviou dois a dois, na
sua frente, a toda cidade e lugar aonde ele próprio devia ir» (v. 1). O
termo “outros” (em grego: ἕτερος – heteros)
indica tratar-se de um grupo além dos Doze, enviados em missão antes do início
do caminho (9,1-6). São outros, mas não inferiores, são outros porque o
seguimento de Jesus é aberto a todos, aos outros, ao que é diferente. Todos têm
espaço na comunidade cristã. De fato, o número dos “outros” – setenta e dois –
evoca o universalismo, pois os judeus imaginavam que fosse esse o número das
nações da terra (Gn 10) – setenta ou setenta e duas. Com isso, o evangelista
recorda que o mundo todo será contemplado com o anúncio do Reino de Deus e, por
consequência, humanizado por seu amor. É também uma recordação atualizada dos setenta e dois anciãos escolhidos como colaboradores de Moisés na condução do povo de Deus na travessia do deserto, no contexto do êxodo, a quem foi dado o espírito da profecia (Nm 11,24-30). O envio “dois a dois” recorda a
importância da vida comunitária; o ser humano não foi criado para estar
sozinho, mas acompanhado (Gn 1,18). O número dois é o princípio da pluralidade,
o rompimento do fechamento e do egoísmo. Aqui há também uma maneira de chamar a
atenção para o compromisso dos discípulos: a chegada de Jesus e sua mensagem a
um lugar depende essencialmente da presença dos seus seguidores. Jesus vai
aonde eles vão, pois são eles que levam Jesus, através da missão.
Com a imagem da messe, Jesus alerta
para a urgência do anúncio, ao mesmo tempo em que ensina os discípulos a cultivarem
intimidade com o Pai, o verdadeiro dono da messe: «E dizia-lhes: “A messe é
grande, mas os trabalhadores são poucos. Por isso, pedi ao dono da messe que
mande trabalhadores para a colheita”» (v. 2). A messe é grande porque
representa o mundo inteiro, o que torna os trabalhadores sempre poucos,
insuficientes, para deixar o mundo como Deus quer: plenamente humanizado, cheio
de amor, com todas as pessoas vivendo como irmãs umas das outras, cuidando
também da criação. Por isso, devemos todos nos sentir enviados e destinatários,
ao mesmo tempo, pedindo sempre ao dono da messe que mande operários para a
colheita. O dono da messe é Deus – o Pai –, princípio e fonte da missão, sendo
Jesus – o Filho – o primeiro enviado seu. Com efeito, Jesus é o enviado do Pai,
e tem autoridade para ampliar sua missão, compartilhando as suas prerrogativas com
seus discípulos de todos os tempos, tamanho o seu amor compassivo. A grandeza
da messe corresponde também à imensidão dos braços de Deus, capazes de abraçar
o mundo inteiro. Jesus veio ao mundo estender esses braços sobre toda a
humanidade e, para isso, quis contar com a colaboração dos seus seguidores e
seguidoras. A missão da Igreja, portanto, pode ser definida como extensão do
abraço de Deus ao mundo. Por isso, deve ser marcada pelo amor, fonte de
salvação e humanização. Pedir operários ao Pai indica a necessidade de intimidade
com Deus, além de confiança na sua providência.
Ao mesmo tempo em que convoca e
envia, Jesus prevê hostilidades aos discípulos durante a missão, por isso os
adverte: «Eis que vos envio como cordeiros para o meio de lobos» (v.
3). Ora, os últimos acontecimentos já demonstravam que a mensagem de Jesus
encontraria empecilhos. Aliás, desde o anúncio do seu ministério ele sofria
rejeição, como aconteceu em Nazaré, sua terra natal (Lc 4,14-30). O anúncio do
Reino vai de encontro a projetos de poder que incentivam a violência e fazem
uso dessa. Os representantes desses projetos são verdadeiros lobos. E, para
Jesus, é inadmissível o uso da força pelos seus discípulos, nem mesmo para
autodefesa, por isso, emprega a imagem do cordeiro, como símbolo de quem não
reage à violência com violência em hipótese alguma. Faz parte da missão confiar
na bondade das pessoas, inclusive para a própria sobrevivência, por isso, ele
recomenda a sobriedade na missão: «Não leveis bolsa, nem sacola, nem
sandálias, e não cumprimenteis ninguém pelo caminho!» (v. 4). Bolsa e
sacola significam desejo de acúmulo e apego ao supérfluo, e sandálias aqui,
especificamente, significa comodidade; portanto, são coisas incompatíveis com o
seguimento de Jesus. É claro que a sandália constitui um item indispensável
para o caminho. Nesse versículo possui valor simbólico. Também a recomendação
para não cumprimentar ninguém no caminho é simbólica, indica do urgência do
anúncio, pois as saudações pessoais nas antigas culturas orientais compreendiam
rituais bastante longos.
Na continuidade das recomendações,
Jesus ensina o que é realmente essencial anunciar: «Em qualquer casa em
que entrardes, dizei primeiro: “A paz esteja nesta casa!”. Se ali morar um
amigo da paz, a vossa paz repousará sobre ele; se não, ela voltará para vós» (vv.
5-6). A paz era o bem mais almejado para o ser humano, de acordo com a
mentalidade bíblica, pois compreendia a felicidade e o bem-estar integral do
ser humano, contemplando todas as dimensões da vida, e isso coincide exatamente
com a proposta do Reino de Deus: promover o bem do ser humano, acima de tudo. Além
do desapego aos bens materiais, o discipulado exige também o abandono de
mentalidades fechadas e de preceitos separatistas, como as leis de pureza
alimentar: «Permanecei naquela mesma casa, comei e bebei do que
tiverem, porque o trabalhador merece o seu salário. Não passeis de casa em
casa. Quando entrardes numa cidade e fordes bem recebidos, comei do que vos
servirem, curai os doentes que nela houver e dizei ao povo: “O Reino de
Deus está próximo de vós”» (vv. 7-9). Um dos maiores entraves para a
convivência dos judeus com não-judeus era a observância rígida das regras de
pureza alimentar; eles não entravam de casa em casa com medo de se
contaminarem; tinham uma lista de alimentos “puros” e só comiam daquilo, o que
faz com que essa recomendação de Jesus se torne altamente revolucionária. A
missão dos enviados de Jesus, independente da época histórica, consiste na
promoção da vida e da dignidade das pessoas. Curar e expulsar demônios, na
linguagem bíblica, é combater tudo o que impede o bem-estar do ser humano,
incluindo a cura das doenças e a libertação das estruturas injustas e toda
forma de escravidão; e esses são os sinais de que o Reino de Deus está se
concretizando.
Jesus previne os discípulos também
para a possibilidade de não aceitação da sua mensagem, não pregando vingança,
mas alertando para que não insistam diante da recusa e partam logo para outros
lugares: «Mas, quando entrardes numa cidade e não fordes bem recebidos,
saindo pelas ruas, dizei: “Até a poeira de vossa cidade, que se apegou aos
nossos pés, sacudimos contra vós. No entanto, sabei que o Reino de Deus está
próximo!”. Eu vos digo que, naquele dia, Sodoma será tratada com menos rigor do
que essa cidade» (vv. 10-12). O anúncio cristão é uma proposta de vida
que não pode ser imposta, mas apenas oferecida. Aqui, Jesus não propõe a
vingança para quem não aceita o anúncio do Reino, mas alerta os discípulos a
não perderem tempo e deixa claro que há consequências para quem recusa o
anúncio do Reino; essas consequências não são castigo, mas a privação da vida
plena e abundante que somente com a vivência do Evangelho é possível
experimentar.
A liturgia salta alguns versículos
(vv. 13-16) e já passa para o retorno dos discípulos, bastante entusiasta, por
sinal: «Os setenta e dois voltaram muito contentes, dizendo: “Senhor,
até os demônios nos obedeceram por causa do teu nome”» (v. 17). A
alegria dos discípulos pelo êxito da missão corresponde à força da Palavra por
eles anunciada. A “obediência dos demônios” significa o mal combatido em todos
os sentidos, incluindo a superação das doenças, da violência, das injustiças e preconceitos.
Isso só é possível quando tudo é feito no nome de Jesus, o Reino de Deus em
pessoa. Diante do entusiasmo dos discípulos, Jesus toma novamente a
palavra: «Jesus respondeu: “Eu vi Satanás cair do céu, como um
relâmpago. Eu vos dei o poder de pisar em cima de cobras e escorpiões e sobre
toda a força do inimigo. E nada vos poderá fazer mal”» (vv. 18-19).
Jesus interpreta o sucesso da missão dos setenta e dois como o fim do domínio
das forças do mal sobre o mundo. A imagem de “satanás caindo do céu” não
significa a queda de um monstro das alturas, mas a superação do mal pelo bem.
Quer dizer que a missão transforma realidades, não obstante as hostilidades,
representadas nas palavras de Jesus pelas imagens das “cobras e escorpiões”. O
Evangelho liberta das mais perversas estruturas de poder que geram morte, dor,
injustiça e preconceito. Onde o Reino se instaura, o mal desaparece.
Por último, Jesus recomenda aos
discípulos que não se entusiasmem demais com os resultados, inclusive por
precaução de um possível envaidecimento da parte deles: «Contudo, não
vos alegreis porque os espíritos vos obedecem. Antes ficai alegres porque
vossos nomes estão escritos no céu» (v. 20). O que importa para o
discipulado é a certeza de estar em sintonia com os propósitos de Deus,
ajudando a construir o seu Reino. Ter o nome inscrito no céu significa a
certeza de ser amado por Deus, e é isso que conta na vida do ser humano, e não
os méritos pessoais de cada um. É a certeza desse amor que deve motivar o ser
humano a lutar para que esse mesmo amor chegue a todos os lugares e corações e,
para isso, é necessária a missão.
A missão dos setenta e dois é um
aceno do evangelista Lucas à inclusão e à superação de círculos fechados que
muitas vezes aprisionam o Evangelho nas comunidades. Jesus não deixou a sua
mensagem a encargo somente dos Doze, mas de qualquer pessoa que esteja disposta
a colaborar com a missão de fazer o Reino de Deus acontecer. Para colaborar com
o Reino é necessário colocar-se em caminho com Jesus, com disposição para amar
indistintamente, conviver com as diferenças, criar laços e superar barreiras. A
luta contra o mal exige essa disposição.
Pe. Francisco Cornelio Freire
Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN