Após dois domingos seguidos de
interrupção, por ocasião da comemoração dos fiéis defuntos e da solenidade de
dedicação da basílica de São João de Latrão, retoma-se a liturgia dos domingos
do tempo comum, celebrando-se hoje o Trigésimo Terceiro, que já é o penúltimo
do ano litúrgico. Com isso, retoma-se também a leitura semi-contínua do
Evangelho de Lucas, igualmente interrompida. Como se sabe, a reta final do ano
litúrgico é sempre marcada pela leitura de textos do gênero literário
apocalíptico, como acontece neste domingo. O evangelho proposto para este dia é
tirado do discurso escatológico de Jesus no Evangelho de Lucas – Lc 21,5-19.
Por tratar-se de um texto bastante longo, não comentaremos versículo por
versículo. Procuraremos colher a mensagem central do texto, embora seja
necessário destacar e aprofundar alguns versículos específicos, conforme a
importância que ocupam no desenvolvimento do discurso. Recordamos que o discurso
escatológico de Jesus está presente nos três evangelhos sinóticos (Mt 24–25; Mc
13,1-37; Lc 23,5-38). A versão de Lucas parece ser a mais sóbria, provavelmente
porque ele já tinha antecipado alguns elementos típicos desse discurso na ampla
catequese do caminho para Jerusalém, principalmente quando mostrava Jesus
insistindo com o tema da oração associado ao da vigilância (Lc 12,35-59; 17,20–18,8)
E a vigilância é um dos temas predominantes do discurso escatológico. O
contexto narrativo deste discurso é o ministério de Jesus em Jerusalém, após um
longo caminho, desde a Galileia até a entrada na grande cidade.
Ainda a nível
de contexto, é importante fazer algumas considerações sobre o gênero literário
ao qual pertence o evangelho de hoje e todo o discurso escatológico. Trata-se do
gênero “apocalíptico”, adjetivo derivado do substantivo “apocalipse” (em
grego: ἀποκάλυψις –
apocalýpsis), cujo significado é “revelação”, “manifestação da verdade” ou
“tornar conhecido algo que estava escondido”. O gênero apocalíptico é bastante
empregado na Bíblia, nos dois testamentos, mas tem sido muito distorcido ao
longo da história, passando a ser tratado como sinônimo de catástrofes e
desastres, causando medo nas pessoas, quando, na verdade, comporta uma
linguagem usada pelos autores bíblicos para transmitir mensagens de esperança e
resistência às comunidades destinatárias. Logo, ao invés de causar terror e medo,
a mensagem do evangelho de hoje deve nos animar, como veremos no decorrer da
reflexão. Já o adjetivo “escatológico”, esse deriva da palavra grega “éskaton”
(ἔσχατον), que
significa fim, diz respeito às realidades últimas. Porém, ao falar de fim, os
evangelistas pensam em dois sentidos: fim como supressão de tudo o que impede a
realização plena do Reino de Deus, e como finalidade da criação, sobretudo do
gênero humano, alcançando seu verdadeiro destino.
A mensagem do
evangelho de hoje aponta para os dois sentidos: é preciso dar fim a um mundo
injusto, tendo como finalidade o surgimento de um mundo novo, plenamente humanizado
pelo amor. Infelizmente, a maioria das interpretações têm estimulado uma
concepção de fim enquanto extermínio, marcado por uma sequência de catástrofes,
o que termina inculcando medo nas pessoas e levando-as a um fundamentalismo
extremo. Na verdade, Jesus está anunciando a transição entre os dois reinos ou
dois mundos: o mundo vigente, marcado por violência, ódio, injustiças, e o
Reino de Deus, no qual prevalecerá o amor e a justiça, com igualdade e vida
abundante, marcado pela plena humanização. Por isso, não se trata de um mundo
para o além, apenas, mas de criar neste mundo as condições necessárias para o
projeto de Deus se realizar já aqui, com justiça, igualdade e fraternidade.
Obviamente, pelos contrastes abissais entre os dois mundos, a transição deverá
ser marcada por inevitáveis conflitos, tendo em vista que o advento do Reino de
Deus pressupõe a superação de todas as forças e mecanismos que o obstaculizam.
Por isso, Jesus previne e encoraja os seus discípulos para a inevitável tensão
no período de transição e os consequentes perigos. E os discípulos não devem
sossegar enquanto não vivenciarem essa transformação que, mesmo sendo dom de
Deus, depende do empenho e da colaboração de todos os homens e mulheres que
derem adesão ao programa de Jesus.
Feitas as
devidas considerações sobre o contexto, olhemos então para o complexo texto que
nos é proposto. A cena transcorre nas dependências do templo de Jerusalém,
ambiente de decepção para Jesus, considerando que, de “casa de oração”, fora
transformado em “covil de ladrões”, conforme ele denunciou anteriormente (Lc
19,45-46). Em Marcos e Mateus, no entanto, esta cena está situada no monte das
Oliveiras (Mc13,3; Mt 24,3). Ao situá-la no próprio templo, Lucas enfatiza
ainda mais a oposição de Jesus à instituição religiosa vigente, mostrando que
era urgente que ela fosse abolida, ou seja, destruída. Eis o texto: «Algumas
pessoas comentavam a respeito do Templo que era enfeitado com belas pedras e
com ofertas votivas» (v. 5). Ora, o Templo de Jerusalém era uma
construção magnífica, uma obra faraônica, considerado uma das maravilhas do
mundo na época, por isso, chamava a atenção de todas as pessoas que o viam, e
podia ser visto de longe, devido à sua alta localização. Como estava na
semana da Páscoa, conforme o contexto narrativo do evangelho, aquele ambiente já
estava bastante movimentado, com a presença de muitos peregrinos de diversas
partes do mundo. Muitos desses peregrinos, provavelmente, estavam lá pela
primeira vez. Por isso, a admiração de alguns, que poderiam ser discípulos de Jesus,
inclusive. De fato, em Marcos e Mateus são os discípulos mesmos que expressam
tal admiração (Mc 13,1; Mt 24,1).
O templo de
Jerusalém foi construído, destruído e reconstruído mais de uma vez. Na época de
Jesus, estava de pé a construção de Herodes, considerada pelos historiadores
como a mais luxuosa de todas, superando até a primeira construção, que tinha
sido obra de Salomão. Além de símbolo da identidade de Israel, para os judeus,
o templo representava a certeza da presença de Deus no meio deles. Por isso,
era o maior motivo do orgulho nacional deles. Quem passava por Jerusalém se
admirava com a beleza e o esplendor do templo, por isso, eram muito comuns os
elogios como esse dos interlocutores de Jesus. Por sua vez, Jesus via o templo sob
outra perspectiva. Ele sabia que o principal entrave para o advento do mundo
novo que ele almejava – o Reino de Deus – era exatamente a manipulação
religiosa com todas as injustiças que dela derivavam, como a conivência e até
conluio com o sistema político e econômico. E era isso o que acontecia em
Israel. O esplendor do templo era consequência direta da exploração ideológica
e econômica. Além dos altos impostos cobrados pelo império romano, o povo era
obrigado a pagar taxas também ao templo. “As belas pedras” que o enfeitavam
eram consequência de grande exploração, inclusive das pessoas mais
necessitadas, como as viúvas pobres (Lc 21,1-4). E, além dos adornos do templo,
a exploração e manipulação religiosa mantinha também todos os privilégios das
classes dirigentes de Israel, como os sacerdotes. Por isso, o templo de
Jerusalém, para Jesus, era a primeira instituição a ser destruída, para
aparecerem os primeiros sinais do mundo novo. Daí, a sua resposta objetiva e
clara: «não restará pedra sobre pedra» (v. 6b). Com essa
expressão, ele externa seu total descontentamento com aquela instituição,
dizendo que não há nada a se aproveitar dela: deve ser exterminada o quanto
antes. Com toda certeza, o anúncio da destruição do templo revela a necessidade
de uma nova concepção de culto e de relação com Deus.
É claro que o
anúncio da destruição do templo causou espanto e desconforto nos interlocutores
de Jesus. Para quem usufruía daquela estrutura, esse anúncio significava ameaça
e perda de privilégios; para quem era vítima da estrutura, significava
esperança de libertação. Para os judeus mais devotos, era uma grande blasfêmia,
pois, sendo o templo a morada de Deus na terra, sua destruição significava o
distanciamento de Deus. Para Jesus, pode ter sido uma causa a mais para a sua
iminente condenação à morte na cruz. Por isso, os questionamentos dos seus
interlocutores são compreensíveis e inevitáveis: «Quando acontecerá
isso? Qual o sinal de que estas coisas estão para acontecer?» (v. 7).
A perguntas desse gênero, Jesus responde com muita cautela e precisão, embora
não diga quando, pois não é competência sua, nem se trata de algo relevante. O
que ele pede, na verdade, é que seus discípulos não se apavorem com os
acontecimentos que refletem os antigos sinais do fim dos tempos, preditos ao
longo da história de Israel pelos profetas: guerras, revoluções e catástrofes
naturais, como terremotos e pestes (vv. 9, 10, 11). A estes fenômenos e
acontecimentos, ele aponta outro perigo, mais grave, até: a manipulação de seu
nome por falsos pregadores e espertalhões que predizem, sem fundamentação
alguma, o final dos tempos e apresentam-se como conhecedores das realidades
futuras: «Cuidado para não serdes enganados, porque muitos virão em meu nome
dizendo: “Sou eu!” e ainda: “O tempo está próximo”. Não sigais essa gente»
(v. 8). Como se vê, ele pede para a comunidade não se deixar enganar por esse
tipo de gente que continua presente nos tempos atuais, talvez até com mais astúcia.
E essa é a primeira advertência de Jesus: é preciso ter cuidado com as pessoas
que usam o seu nome, apresentando-se como ele mesmo ou como seus mensageiros mais
autorizados! As pessoas mais perigosas, para Jesus, são aquelas que provocam
medo nas pessoas em seu nome, são aquelas que se apresentam como seus
representantes, para fazer o mal, para explorar os outros e distorcer sua
mensagem.
Na sequência,
Jesus chama ainda mais a atenção dos seus discípulos para as consequências da
fidelidade ao seu projeto de construção de um mundo novo: uma sociedade
alternativa baseada em novos valores e princípios. Obviamente, o advento de um
mundo novo requer a superação de um mundo antigo, o que exige a substituição
dos valores tradicionais, cultivados pela sociedade e a religião do tempo de
Jesus, pelos valores que compõem o seu Evangelho. Eis porque os conflitos se
tornam inevitáveis: quem aceitar o Evangelho com seus valores, rejeitará os
princípios da antiga ordem estabelecida, mantida pela aparelhagem ideológica da
religião e do estado. Tais consequências culminam com as perseguições nos mais
diversos âmbitos: religioso, político e até familiar. Quanto às perseguições,
que muitos viam como o fim dos tempos, Jesus as apresenta como meios que
conduzirão o mundo ao seu verdadeiro fim (finalidade): são sinais de que o
Reino de Deus se aproxima. De fato, a fidelidade de seus discípulos será medida
pela reação de três instituições a eles: a religião, o poder político e a
família. Por isso, Jesus diz que os seguidores do seu Evangelho serão
perseguidos e entregues às sinagogas (v. 12), prova de que sua mensagem
desmascarava a religião institucional de seu tempo; serão conduzidos diante de
reis e governadores (v. 12), sinal da oposição radical entre o Reino de Deus e
os poderes políticos vigentes; e serão entregues e mortos até mesmo pelos
próprios familiares (v. 16), o sinal de que até mesmo a instituição familiar
tradicional é abalada pela mensagem renovadora e libertadora de Jesus.
Diante de uma
proposta tão exigente e ousada, Jesus faz um forte apelo à fidelidade e à perseverança
dos seus discípulos, encorajando-os a não desanimarem diante das adversidades.
Antes de tudo, Ele garante que, quando estas coisas começarem a acontecer, os
discípulos terão a oportunidade de dar testemunho da fé nele (v. 13). Ora,
testemunho, em grego “martyrion” (μαρτύριον), significa testemunhar e
assumir as consequências desse testemunho, dando a vida se for preciso, como
Jesus mesmo prevê (v. 16b). Ele aconselha os discípulos também a confiarem
plenamente nele, sem preocupações com o que dizer e o jeito de se defenderem
diante das perseguições (vv. 14-15). Basta confiar e testemunhar. E é
inevitável que, testemunhando Jesus, os discípulos estarão alimentando o ódio
daqueles que querem permanecer ligados às antigas instituições e fechados à
novidade do Evangelho. Porém, Jesus garante que o mais importante – a vida –
será preservada em sua plenitude: «não perdereis um só fio de cabelo de
vossa cabeça» (v. 18). Ora, o fio de cabelo significava a menor parte
da vida de uma pessoa na mentalidade hebraica; assim, Jesus diz que a vida do
discípulo e discípula que perseverar no testemunho corajoso do seu Evangelho
será ganha em sua totalidade e abundância. Por isso, a palavra-chave de todo o
texto é “perseverança”, embora a tradução litúrgica a tenha substituído pela
expressão “permanecendo firmes” (v. 19). Mas, “perseverança” (em grego: ὑπομονῇ -
hipomonê), além de traduzir mais adequadamente o termo grego, expressa melhor a
atitude que Jesus espera dos discípulos: uma espera com esperança e luta, que
não comporta comodismo, nem desânimo; uma espera com disposição e esforço,
transformando a pessoa que espera em agente de transformação e libertação.
É, portanto,
urgente e necessário conceber a adesão ao ensinamento de Jesus como ruptura com
as estruturas e instituições tradicionais para, de fato, testemunhar, de modo
livre e novo, os valores que seu Evangelho comporta. É urgente que abracemos seu
projeto de mundo novo, caracterizado por novas relações em todos os âmbitos da
vida, motivadas única e exclusivamente pelo amor, deixando para trás todas as
experiências ultrapassadas, mesmo que usem o nome de Deus, como usava o
esplêndido templo de Jerusalém, o qual não merecia outro destino, senão a
destruição completa. Por isso, temos a certeza de que Jesus pregava o fim de um
mundo antigo insustentável, tendo como finalidade a construção de um mundo novo,
humanizado baseado nos valores do seu Evangelho. E, recordando a jornada
mundial dos pobres, instituída pelo Papa Francisco, é importante que o primeiro
fruto da transformação desejada por Jesus seja um mundo inclusivo, justo e
fraterno.
Pe. Francisco
Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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