sábado, novembro 15, 2025

REFLEXÃO PARA O 33º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 21,5-19 (ANO C)

 


Após dois domingos seguidos de interrupção, por ocasião da comemoração dos fiéis defuntos e da solenidade de dedicação da basílica de São João de Latrão, retoma-se a liturgia dos domingos do tempo comum, celebrando-se hoje o Trigésimo Terceiro, que já é o penúltimo do ano litúrgico. Com isso, retoma-se também a leitura semi-contínua do Evangelho de Lucas, igualmente interrompida. Como se sabe, a reta final do ano litúrgico é sempre marcada pela leitura de textos do gênero literário apocalíptico, como acontece neste domingo. O evangelho proposto para este dia é tirado do discurso escatológico de Jesus no Evangelho de Lucas – Lc 21,5-19. Por tratar-se de um texto bastante longo, não comentaremos versículo por versículo. Procuraremos colher a mensagem central do texto, embora seja necessário destacar e aprofundar alguns versículos específicos, conforme a importância que ocupam no desenvolvimento do discurso. Recordamos que o discurso escatológico de Jesus está presente nos três evangelhos sinóticos (Mt 24–25; Mc 13,1-37; Lc 23,5-38). A versão de Lucas parece ser a mais sóbria, provavelmente porque ele já tinha antecipado alguns elementos típicos desse discurso na ampla catequese do caminho para Jerusalém, principalmente quando mostrava Jesus insistindo com o tema da oração associado ao da vigilância (Lc 12,35-59; 17,20–18,8) E a vigilância é um dos temas predominantes do discurso escatológico. O contexto narrativo deste discurso é o ministério de Jesus em Jerusalém, após um longo caminho, desde a Galileia até a entrada na grande cidade.

Ainda a nível de contexto, é importante fazer algumas considerações sobre o gênero literário ao qual pertence o evangelho de hoje e todo o discurso escatológico. Trata-se do gênero “apocalíptico”, adjetivo derivado do substantivo “apocalipse” (em grego: ἀποκάλυψις – apocalýpsis), cujo significado é “revelação”, “manifestação da verdade” ou “tornar conhecido algo que estava escondido”. O gênero apocalíptico é bastante empregado na Bíblia, nos dois testamentos, mas tem sido muito distorcido ao longo da história, passando a ser tratado como sinônimo de catástrofes e desastres, causando medo nas pessoas, quando, na verdade, comporta uma linguagem usada pelos autores bíblicos para transmitir mensagens de esperança e resistência às comunidades destinatárias. Logo, ao invés de causar terror e medo, a mensagem do evangelho de hoje deve nos animar, como veremos no decorrer da reflexão. Já o adjetivo “escatológico”, esse deriva da palavra grega “éskaton” (ἔσχατον), que significa fim, diz respeito às realidades últimas. Porém, ao falar de fim, os evangelistas pensam em dois sentidos: fim como supressão de tudo o que impede a realização plena do Reino de Deus, e como finalidade da criação, sobretudo do gênero humano, alcançando seu verdadeiro destino.

A mensagem do evangelho de hoje aponta para os dois sentidos: é preciso dar fim a um mundo injusto, tendo como finalidade o surgimento de um mundo novo, plenamente humanizado pelo amor. Infelizmente, a maioria das interpretações têm estimulado uma concepção de fim enquanto extermínio, marcado por uma sequência de catástrofes, o que termina inculcando medo nas pessoas e levando-as a um fundamentalismo extremo. Na verdade, Jesus está anunciando a transição entre os dois reinos ou dois mundos: o mundo vigente, marcado por violência, ódio, injustiças, e o Reino de Deus, no qual prevalecerá o amor e a justiça, com igualdade e vida abundante, marcado pela plena humanização. Por isso, não se trata de um mundo para o além, apenas, mas de criar neste mundo as condições necessárias para o projeto de Deus se realizar já aqui, com justiça, igualdade e fraternidade. Obviamente, pelos contrastes abissais entre os dois mundos, a transição deverá ser marcada por inevitáveis conflitos, tendo em vista que o advento do Reino de Deus pressupõe a superação de todas as forças e mecanismos que o obstaculizam. Por isso, Jesus previne e encoraja os seus discípulos para a inevitável tensão no período de transição e os consequentes perigos. E os discípulos não devem sossegar enquanto não vivenciarem essa transformação que, mesmo sendo dom de Deus, depende do empenho e da colaboração de todos os homens e mulheres que derem adesão ao programa de Jesus.

Feitas as devidas considerações sobre o contexto, olhemos então para o complexo texto que nos é proposto. A cena transcorre nas dependências do templo de Jerusalém, ambiente de decepção para Jesus, considerando que, de “casa de oração”, fora transformado em “covil de ladrões”, conforme ele denunciou anteriormente (Lc 19,45-46). Em Marcos e Mateus, no entanto, esta cena está situada no monte das Oliveiras (Mc13,3; Mt 24,3). Ao situá-la no próprio templo, Lucas enfatiza ainda mais a oposição de Jesus à instituição religiosa vigente, mostrando que era urgente que ela fosse abolida, ou seja, destruída. Eis o texto: «Algumas pessoas comentavam a respeito do Templo que era enfeitado com belas pedras e com ofertas votivas» (v. 5). Ora, o Templo de Jerusalém era uma construção magnífica, uma obra faraônica, considerado uma das maravilhas do mundo na época, por isso, chamava a atenção de todas as pessoas que o viam, e podia ser visto de longe, devido à sua alta localização. Como estava na semana da Páscoa, conforme o contexto narrativo do evangelho, aquele ambiente já estava bastante movimentado, com a presença de muitos peregrinos de diversas partes do mundo. Muitos desses peregrinos, provavelmente, estavam lá pela primeira vez. Por isso, a admiração de alguns, que poderiam ser discípulos de Jesus, inclusive. De fato, em Marcos e Mateus são os discípulos mesmos que expressam tal admiração (Mc 13,1; Mt 24,1).

O templo de Jerusalém foi construído, destruído e reconstruído mais de uma vez. Na época de Jesus, estava de pé a construção de Herodes, considerada pelos historiadores como a mais luxuosa de todas, superando até a primeira construção, que tinha sido obra de Salomão. Além de símbolo da identidade de Israel, para os judeus, o templo representava a certeza da presença de Deus no meio deles. Por isso, era o maior motivo do orgulho nacional deles. Quem passava por Jerusalém se admirava com a beleza e o esplendor do templo, por isso, eram muito comuns os elogios como esse dos interlocutores de Jesus. Por sua vez, Jesus via o templo sob outra perspectiva. Ele sabia que o principal entrave para o advento do mundo novo que ele almejava – o Reino de Deus – era exatamente a manipulação religiosa com todas as injustiças que dela derivavam, como a conivência e até conluio com o sistema político e econômico. E era isso o que acontecia em Israel. O esplendor do templo era consequência direta da exploração ideológica e econômica. Além dos altos impostos cobrados pelo império romano, o povo era obrigado a pagar taxas também ao templo. “As belas pedras” que o enfeitavam eram consequência de grande exploração, inclusive das pessoas mais necessitadas, como as viúvas pobres (Lc 21,1-4). E, além dos adornos do templo, a exploração e manipulação religiosa mantinha também todos os privilégios das classes dirigentes de Israel, como os sacerdotes. Por isso, o templo de Jerusalém, para Jesus, era a primeira instituição a ser destruída, para aparecerem os primeiros sinais do mundo novo. Daí, a sua resposta objetiva e clara: «não restará pedra sobre pedra» (v. 6b). Com essa expressão, ele externa seu total descontentamento com aquela instituição, dizendo que não há nada a se aproveitar dela: deve ser exterminada o quanto antes. Com toda certeza, o anúncio da destruição do templo revela a necessidade de uma nova concepção de culto e de relação com Deus.

É claro que o anúncio da destruição do templo causou espanto e desconforto nos interlocutores de Jesus. Para quem usufruía daquela estrutura, esse anúncio significava ameaça e perda de privilégios; para quem era vítima da estrutura, significava esperança de libertação. Para os judeus mais devotos, era uma grande blasfêmia, pois, sendo o templo a morada de Deus na terra, sua destruição significava o distanciamento de Deus. Para Jesus, pode ter sido uma causa a mais para a sua iminente condenação à morte na cruz. Por isso, os questionamentos dos seus interlocutores são compreensíveis e inevitáveis: «Quando acontecerá isso? Qual o sinal de que estas coisas estão para acontecer?» (v. 7). A perguntas desse gênero, Jesus responde com muita cautela e precisão, embora não diga quando, pois não é competência sua, nem se trata de algo relevante. O que ele pede, na verdade, é que seus discípulos não se apavorem com os acontecimentos que refletem os antigos sinais do fim dos tempos, preditos ao longo da história de Israel pelos profetas: guerras, revoluções e catástrofes naturais, como terremotos e pestes (vv. 9, 10, 11). A estes fenômenos e acontecimentos, ele aponta outro perigo, mais grave, até: a manipulação de seu nome por falsos pregadores e espertalhões que predizem, sem fundamentação alguma, o final dos tempos e apresentam-se como conhecedores das realidades futuras: «Cuidado para não serdes enganados, porque muitos virão em meu nome dizendo: “Sou eu!” e ainda: “O tempo está próximo”. Não sigais essa gente» (v. 8). Como se vê, ele pede para a comunidade não se deixar enganar por esse tipo de gente que continua presente nos tempos atuais, talvez até com mais astúcia. E essa é a primeira advertência de Jesus: é preciso ter cuidado com as pessoas que usam o seu nome, apresentando-se como ele mesmo ou como seus mensageiros mais autorizados! As pessoas mais perigosas, para Jesus, são aquelas que provocam medo nas pessoas em seu nome, são aquelas que se apresentam como seus representantes, para fazer o mal, para explorar os outros e distorcer sua mensagem.

Na sequência, Jesus chama ainda mais a atenção dos seus discípulos para as consequências da fidelidade ao seu projeto de construção de um mundo novo: uma sociedade alternativa baseada em novos valores e princípios. Obviamente, o advento de um mundo novo requer a superação de um mundo antigo, o que exige a substituição dos valores tradicionais, cultivados pela sociedade e a religião do tempo de Jesus, pelos valores que compõem o seu Evangelho. Eis porque os conflitos se tornam inevitáveis: quem aceitar o Evangelho com seus valores, rejeitará os princípios da antiga ordem estabelecida, mantida pela aparelhagem ideológica da religião e do estado. Tais consequências culminam com as perseguições nos mais diversos âmbitos: religioso, político e até familiar. Quanto às perseguições, que muitos viam como o fim dos tempos, Jesus as apresenta como meios que conduzirão o mundo ao seu verdadeiro fim (finalidade): são sinais de que o Reino de Deus se aproxima. De fato, a fidelidade de seus discípulos será medida pela reação de três instituições a eles: a religião, o poder político e a família. Por isso, Jesus diz que os seguidores do seu Evangelho serão perseguidos e entregues às sinagogas (v. 12), prova de que sua mensagem desmascarava a religião institucional de seu tempo; serão conduzidos diante de reis e governadores (v. 12), sinal da oposição radical entre o Reino de Deus e os poderes políticos vigentes; e serão entregues e mortos até mesmo pelos próprios familiares (v. 16), o sinal de que até mesmo a instituição familiar tradicional é abalada pela mensagem renovadora e libertadora de Jesus.

Diante de uma proposta tão exigente e ousada, Jesus faz um forte apelo à fidelidade e à perseverança dos seus discípulos, encorajando-os a não desanimarem diante das adversidades. Antes de tudo, Ele garante que, quando estas coisas começarem a acontecer, os discípulos terão a oportunidade de dar testemunho da fé nele (v. 13). Ora, testemunho, em grego “martyrion” (μαρτύριον), significa testemunhar e assumir as consequências desse testemunho, dando a vida se for preciso, como Jesus mesmo prevê (v. 16b). Ele aconselha os discípulos também a confiarem plenamente nele, sem preocupações com o que dizer e o jeito de se defenderem diante das perseguições (vv. 14-15). Basta confiar e testemunhar. E é inevitável que, testemunhando Jesus, os discípulos estarão alimentando o ódio daqueles que querem permanecer ligados às antigas instituições e fechados à novidade do Evangelho. Porém, Jesus garante que o mais importante – a vida – será preservada em sua plenitude: «não perdereis um só fio de cabelo de vossa cabeça» (v. 18). Ora, o fio de cabelo significava a menor parte da vida de uma pessoa na mentalidade hebraica; assim, Jesus diz que a vida do discípulo e discípula que perseverar no testemunho corajoso do seu Evangelho será ganha em sua totalidade e abundância. Por isso, a palavra-chave de todo o texto é “perseverança”, embora a tradução litúrgica a tenha substituído pela expressão “permanecendo firmes” (v. 19). Mas, “perseverança” (em grego: ὑπομονῇ - hipomonê), além de traduzir mais adequadamente o termo grego, expressa melhor a atitude que Jesus espera dos discípulos: uma espera com esperança e luta, que não comporta comodismo, nem desânimo; uma espera com disposição e esforço, transformando a pessoa que espera em agente de transformação e libertação.

É, portanto, urgente e necessário conceber a adesão ao ensinamento de Jesus como ruptura com as estruturas e instituições tradicionais para, de fato, testemunhar, de modo livre e novo, os valores que seu Evangelho comporta. É urgente que abracemos seu projeto de mundo novo, caracterizado por novas relações em todos os âmbitos da vida, motivadas única e exclusivamente pelo amor, deixando para trás todas as experiências ultrapassadas, mesmo que usem o nome de Deus, como usava o esplêndido templo de Jerusalém, o qual não merecia outro destino, senão a destruição completa. Por isso, temos a certeza de que Jesus pregava o fim de um mundo antigo insustentável, tendo como finalidade a construção de um mundo novo, humanizado baseado nos valores do seu Evangelho. E, recordando a jornada mundial dos pobres, instituída pelo Papa Francisco, é importante que o primeiro fruto da transformação desejada por Jesus seja um mundo inclusivo, justo e fraterno.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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