Neste domingo em que celebramos a
solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo, a liturgia nos oferece Mateus 16,13-19
para o Evangelho, texto que contém a famosa confissão de fé de Pedro na região
de Cesaréia de Filipe. Esse é um relato comum aos três Evangelhos Sinóticos
(cf. Mt 16,13-19; Mc 8,27-30; Lc 9,18-21), embora a versão mateana apresente
certos elementos próprios, o que lhe rendeu uma supervalorização na reflexão
teológica ao longo dos séculos, sobretudo, no cristianismo católico.
Antes de entrarmos na reflexão do
texto em si, é necessário fazer algumas considerações a respeito do contexto do
relato no conjunto do Evangelho. Esse trecho abre uma série de acontecimentos
importantes da vida de Jesus e dos seus seguidores, como a transfiguração (cf.
17,1-7) e os dois primeiros anúncios da paixão (cf. 16,21-23; 17,22). Na
verdade, podemos dizer que tais acontecimentos são consequência do episódio
narrado no Evangelho de hoje, pois tanto a transfiguração quanto os anúncios da
paixão são tentativas de Jesus revelar a sua verdadeira identidade, tendo em
vista que os discípulos ainda não tinham tanta clareza.
Recordamos o que sucede o nosso
texto no conjunto do Evangelho, mas também não podemos deixar de recordar o que o antecede: uma controvérsia com os fariseus, os quais pediam
sinais a Jesus (cf. 16,1-4), e uma séria advertência aos discípulos para não se
deixarem contaminar pelo fermento dos fariseus e saduceus (cf. 16,5-12). Esse
fermento era a mentalidade equivocada sobre Deus e o futuro messias e,
principalmente, a hipocrisia em que viviam.
Mateus recorda tudo isso porque,
certamente, a sua comunidade passava por uma crise de identidade: por falta de
clareza da identidade de Jesus e falta de experiência autêntica com o
Crucificado-Ressuscitado, o “fermento dos fariseus”, quer dizer a influência da
sinagoga, estava atrapalhando a vivência das bem-aventuranças, e impedindo a
realização do Reino dos céus naquela comunidade. É claro que esse cuidado
continua válido ainda para os dias atuais, uma vez que são cada mais perigosos
os fermentos farisaicos de hoje: retorno ao ritualismo, indiferença às
necessidades do próximo, fundamentalismo, espiritualismos vazios e tantos
outros. Isso se dá por falta de clareza da identidade de Jesus e carência de
experiência verdadeira com Ele.
Agora podemos, portanto,
direcionar nosso olhar para o texto que liturgia nos oferece: “Jesus foi à
região de Cesaréia de Filipe e ali perguntou aos seus discípulos: ‘Quem dizem
os homens ser o Filho do homem?’” (v. 13). O texto começa com um indicativo
geográfico de grande importância: Cesaréia de Filipe estava localizada no
extremo norte de Israel, portanto, muito longe de Jerusalém. Como o próprio
nome indica, era um centro do poder imperial e, portanto, lugar de culto ao
imperador romano. Certamente o evangelista e sua comunidade tinham um propósito
muito claro ao narrar esse episódio e recordar a sua localização.
Longe de Jerusalém, os discípulos
estariam isentos de qualquer influência da tradição religiosa judaica, ou seja,
livres do fermento dos fariseus e, portanto, aptos a confessarem e professarem
livremente a fé em Jesus, fora dos esquemas tradicionais da religião. Ao mesmo
tempo, estando em uma região de culto ao imperador, a confissão da fé em Jesus
seria um sinal de convicção e adesão ao projeto do Reino dos céus e uma
demonstração da coragem que deve marcar a vida da comunidade cristã, chamada a
testemunhar a Boa Nova e continuar a obra de Jesus, mesmo em meio às
hostilidades impostas pelo poder imperial. Podemos dizer que professar a fé em
Jesus é distanciar-se dos esquemas religiosos do judaísmo e, ao mesmo tempo,
desafiar qualquer sistema que não coloque a vida e o bem do ser humano em
primeiro lugar, como o império romano. Em outras palavras, é optar por uma
sociedade alternativa, como é o Reino de Deus.
A pergunta de Jesus sobre o que
dizem a respeito de si, ou seja, do Filho do Homem, não é demonstração de
preocupação com sua imagem pessoal, mas com a eficácia do anúncio da
comunidade. Até então, Jesus já tinha realizado muitos sinais entre o povo e
ensinado bastante, mas pouca gente o conhecia sua verdadeiramente. Muitos o seguiam
pela novidade que Ele trazia, uns pelo seu jeito diferente de acolher os mais
necessitados e excluídos, outros para aproveitarem-se dos sinais que Ele
realizava. Ele percebia isso, por isso fez essa pergunta: “Que dizem os homens
ser o Filho do Homem?” (v. 13b).
A resposta dos discípulos à
pergunta de Jesus revela a falta de clareza que se tinha a respeito da sua
identidade e, ao mesmo tempo, a boa reputação da qual Jesus já gozava entre o
povo, certamente o povo simples, com quem Ele interagia e por quem lutava. Eis
a resposta: “alguns dizem que é João Batista; outros, que é Elias, outros,
ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas” (v. 14). Sem dúvidas, Jesus estava
bem-conceituado pelo povo, pois era reconhecido como um grande profeta. De
fato, os personagens citados foram grandes profetas, homens que acenderam a
esperança de libertação, anunciando, denunciando e testemunhando. Mas Jesus é
muito mais. Embora continuem sempre atuais, os profetas de Israel são
personagens do passado. A comunidade cristã não pode ver Jesus como um
personagem do passado que deixou um grande legado a ser lembrado. Isso impede a
comunidade de fazer sua experiência com o Ressuscitado, presente e atuante na
história. Foi esse risco que Mateus quis combater ao recordar esse episódio da
vida de Jesus.
A pergunta sobre o que as outras
pessoas diziam a seu respeito foi apenas um pretexto. Na verdade, Jesus queria
saber mesmo era o que seus discípulos pensavam de si. Por isso, lhes perguntou:
“E vós, quem dizeis que eu sou?” (v. 15), uma vez que longe do “fermento dos
fariseus”, os discípulos poderiam dar uma resposta sincera, isenta e livre. O
texto afirma que “Simão Pedro resp0ndeu: “Tu és o Messias, o Filho do Deus
vivo” (v. 16). Não resta dúvida que também os demais discípulos componentes do
grupo dos doze também responderam. O evangelista enfatiza a resposta de Pedro
por ser uma síntese do pensamento dos doze. Essa é a resposta do grupo e,
portanto, da comunidade.
A resposta é complexa e profunda:
Jesus é Messias e Filho e do Deus vivo. É muito significativo que Ele seja reconhecido
e acolhido como o Messias esperado, ou seja, o Cristo, o enviado de Deus para
libertar o seu povo e a humanidade inteira. Como circulavam muitas imagens de
messias entre o povo, principalmente a de um messias guerreiro e glorioso, o
segundo elemento da resposta de Pedro é de extrema profundidade e importância:
o Filho do Deus vivo (em grego o` ui`o.j tou/ qeou/ tou/
zw/ntoj – hó hiós tú Theú tú zontos). Além de definir a
qualidade e especificidade do messianismo de Jesus, essa expressão serve também
para denunciar a falsidade do culto ao imperador romano, o qual exigia ser
reverenciado como filho de uma divindade.
Com a
resposta de Pedro, a comunidade cristã é chamada a proclamar que Jesus é, de
fato, o Cristo (termo mais fiel ao texto grego que Messias), é o Filho do Deus
vivo, ou seja, seu Deus é o Deus da vida, enquanto os deuses pagãos cultuados
no império romano e até mesmo o Deus oferecido pelo templo de Jerusalém eram
privados de vida e agentes de morte, sobretudo para o povo simples e excluído.
A convicção de que Jesus é o Filho do Deus vivo compromete a comunidade a
denunciar e desafiar todos os sistemas, religiosos e políticos, que não
favoreçam a promoção da liberdade e da vida plena e abundante para todos.
Jesus
se alegra com a resposta de Pedro e o proclama bem-aventurado: “Feliz és tu,
Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o
meu Pai que está no céu” (v. 17). Não se
trata de um elogio por um mérito particular de Pedro, até porque o conhecimento
não é dele, mas do Pai que lhe revelou. O que Jesus faz é uma constatação: as
coisas parecem começar a funcionar na comunidade, pois a voz do Pai está sendo
ouvida; como o Pai só revela seus desígnios aos pequeninos (cf. 10,21), e Pedro
está falando a partir do que o Pai lhe sugere, ele está demonstrando adesão
plena ao projeto do Reino! O Reino de Deus ou dos céus, como Mateus prefere, é
um projeto alternativo de mundo que só tem espaço para quem aceita a condição
pertencer ao mundo dos pequeninos.
Na
continuidade, Jesus declara: “Por isso eu te digo que tu és Pedro e sobre esta
pedra edificarei a minha Igreja” (v. 18a). Jesus está declarando que Pedro está
apto a participar da construção da sua comunidade, por estar aberto às
intuições do Pai. Ao contrário da antiga religião judaica que precisava de um
templo de pedras, a comunidade cristã é uma construção sim, mas pela sua coesão
e unidade, por isso, na sua construção são necessárias pedras vivas. Pedro é
uma destas pedras escolhidas por Jesus. A pedra fundamental da construção é a
fé da comunidade. A força, o equilíbrio e a perseverança da comunidade dependem
da solidez da sua fé. Por isso, é necessário que essa fé seja forte como uma
rocha, comparável a fé que Pedro tinha acabado de professar.
Muita
controvérsia já foi gerada a partir desse versículo. É importante esclarecer
que Mateus usa duas palavras gregas muito parecidas para designar Pedro e
pedra: Pe,troj – Petros
e pe,tra| - petra.
Embora muito próximas, é possível distingui-las: Petros, transformado no
nome próprio Pedro, designa pedra, pedregulho ou tijolo, uma pedra pequena e
removível; petra designa a superfície rochosa, base ideal para os
fundamentos de uma construção sólida. São estas as bases necessárias para a
edificação da Igreja enquanto comunidade do Reino. Vale lembrar que essa é a
primeira ocorrência da palavra Igreja no Evangelho (em grego evkklhsi,a – eclesía), cujo
significado é assembléia convocada.
Ao
contrário do templo de Jerusalém e dos templos pagãos que haviam na região de
Cesaréia de Filipe, construídos com pedras concretas e visíveis e, portanto,
passíveis de destruição, a comunidade cristã não correrá esse risco se for
edificada conforme Jesus pensou, ou seja, tendo a fé por fundamento. Por isso,
Ele declara: “e o poder do inferno nunca poderá vencê-la” (v. 18b). Aqui Ele se
refere às hostilidades que a comunidade irá enfrentar em seu longo percurso até
a realização plena do Reino aqui na terra. São as forças de morte manifestadas
nos diversos sistemas de dominação, tanto políticos quanto religiosos. A
comunidade precisa de uma fé muito consistente para resistir a tudo isso.
No
último versículo temos mais uma declaração significativa de Jesus a Pedro e à
comunidade dos discípulos: “Eu te darei as chaves do Reino dos céus: tudo o que
ligares na terra será desligado nos céus; tudo o que desligares na terra será
desligado nos céus” (v. 19). Não se trata de uma delegação de superpoderes à
Igreja como muitos propagam. Mais que conferindo poderes, Jesus está
responsabilizando a comunidade para fazer o Reino dos céus acontecer já aqui na
terra. A comunidade recebe “as chaves do Reino dos céus” porque é nela que se
faz a experiência da fé e da comunhão profunda com Deus através da prática das
bem-aventuranças (cf. 5,1-12) e é isso que torna alguém apto para entrar nos
céus. Qualquer um que professa convictamente a fé em Jesus e vive seu programa
de vida expresso nas bem-aventuranças tem a chave de acesso ao Reino. “Ligar e
desligar” é, portanto, responsabilidade e não poder: se a comunidade cristã
viver profundamente o que Jesus ensinou, não haverá diferença entre o céu e a
terra!
Infelizmente,
ao longo história, muitos abusos já foram praticados devido as más
interpretações aplicadas a esse texto. Jesus não instituiu nenhum poder
monárquico. Com essas imagens tão fortes (chaves – ligar – desligar) Jesus
convida a sua Igreja, comunidade do Reino, a viver sempre em perfeita sintonia
com Ele mesmo e com o Pai, de modo que o que a comunidade experimentar será
referendado pelos céus! Ele dá as chaves para a sua comunidade abrir para todos
o Reino que os escribas e fariseus tinham trancado (cf. 23,13).
Pe.
Francisco Cornelio F. Rodrigues