sábado, setembro 26, 2020

REFLEXÃO PARA 26º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 21,28-32 (ANO A)

 


A partir deste domingo, o vigésimo sexto domingo do tempo comum, até a conclusão do ano litúrgico, o evangelho da liturgia dominical passa a ser tirado da seção que Mateus dedica ao ministério de Jesus em Jerusalém (Mt 21–25). Foi em Jerusalém que Jesus viveu a fase mais tensa de seu ministério, confrontando-se diretamente com as autoridades religiosas e políticas da época. Tanto é que o desfecho desse confronto foi a condenação à morte de cruz. E o trecho lido hoje – 21,28-32 – relata um dos momentos desse acirrado confronto, especificamente com os sacerdotes e anciãos, ou seja, as principais lideranças de Jerusalém. O texto de hoje contém uma rica parábola, apesar de curta, do ponto de vista narrativo. Trata-se de uma parábola exclusiva do evangelista Mateus, sendo mais uma que contém a imagem da vinha como objeto de comparação, a exemplo daquela que fora lida no domingo passado (20,1-16a).

O cenário do episódio é o templo de Jerusalém, um espaço que se tornou sinônimo de conflito e hostilidade para Jesus. Inclusive, o seu primeiro gesto em Jerusalém, logo após uma entrada triunfante (Mt 21,11), foi denunciar a situação deplorável do templo, transformado em “antro de ladrões”, quando deveria ser uma casa de oração (Mt 21,12-17). Ora, Jesus não se conformou em ver o templo transformado em comércio e o nome de Deus, o seu Pai, transformado em mercadoria e instrumento de exploração. Por isso, denunciou corajosamente aquela situação, desmascarando a classe dirigente, especialmente os sacerdotes, que exploravam o povo em nome de Deus. A denúncia do templo foi o estopim para o conflito de Jesus com as classes dirigentes, que passaram a vigiar cuidadosamente os seus passos e os seus ensinamentos. E o ensinamento de Jesus divergia completamente do magistério oficial da época. Sua mensagem libertadora visava a construção do Reino de Deus como sociedade alternativa à ordem vigente. Isso exigia uma transformação total, com a supressão de todas as estruturas de poder e exploração, começando pela religião que explorava e até matava em nome de Deus.

Apesar da hostilidade, Jesus ensinava no templo e sua mensagem era insuportável para os dirigentes. Por isso, foi questionado: “Jesus voltou ao Templo. Enquanto ensinava, os chefes dos sacerdotes e os anciãos do povo se aproximaram e perguntaram: ‘Com que autoridade fazes tais coisas? Quem foi que te deu essa autoridade?” (Mt 21,23). O trecho lido hoje faz parte deste confronto específico, quando Jesus teve a sua autoridade questionada pelos sacerdotes e anciãos. Jesus responde a esse questionamento denunciando a hipocrisia e a falsa autoridade que eles exerciam, o que serve de advertência aos seus discípulos e discípulas de todos os tempos sobre o risco de reproduzir o modelo de religião que ele denunciou. Como de costume, Jesus não dá uma resposta pronta, mas provoca em seus interlocutores a reflexão. Ele parte do exemplo de João Batista, deixando os sacerdotes e anciãos embaraçados (Mt 21,24-24), até chegar na parábola lida na liturgia de hoje.

Como o início do próprio texto indica, através da pergunta “Que vos parece?”, o que vem a seguir visa reforçar algo já introduzido na discussão anterior. Essa introdução interrogativa é uma chamada de atenção para o que vem a seguir; significa que se trata de um ensinamento de fundamental importância, como de fato é a parábola contada: “Um homem tinha dois filhos. Dirigindo-se ao primeiro, ele disse: ‘Filho, vai trabalhar hoje na vinha” (v. 28). A vinha é uma imagem clássica na tradição bíblica para designar o povo de Deus (Is Is 5,1-7), e adaptada por Jesus como imagem do Reino de Deus (Mt 20,1-16) por ele inaugurado. Os personagens da parábola – um pai e dois filhos – são imagens bem significativas, muito valorizadas pelas tradições das primeiras comunidades. Inclusive, essa parábola se aproxima daquela que em Lucas é chamada de “parábola do filho pródigo” ou do “pai misericordioso” (Lc 15,11-32).

Ao pedir que o filho trabalhe na sua vinha, o pai pede que ele seja colaborador direto da sua obra. O pai dirigiu-se também ao outro filho e fez a mesma proposta (v. 30a), ou seja, também pediu para ir trabalhar na sua vinha. Assim, fica claro, desde o início, que Jesus quer apresentar um pai que compartilha o que é seu com os filhos e pede que esses sejam seus colaboradores. Considerando que esse pai é imagem de Deus, Jesus está deslegitimando a autoridade dos sacerdotes e anciãos, considerados na época como os únicos responsáveis pelas “coisas de Deus” na terra. O pai fez a mesma proposta aos dois filhos, ou seja, convidou-os para trabalhar na vinha, e recebeu respostas diferentes. Eis a reação do primeiro destinatário da ordem/convite do pai: “Não quero”. Apesar de brusca, é uma resposta sincera, sem nenhum formalismo. Porém, depois o filho “mudou de opinião e foi” (v. 29). Aqui, é necessário fazer uma pequena observação em relação à tradução litúrgica do texto: ao invés de “mudou de opinião”, o evangelista diz, na língua original, que ele “arrependeu-se” (verbo grego metamelómai). Em outras palavras, podemos dizer que aquele filho “converteu-se e foi trabalhar na vinha”. Eis, agora, a resposta-reação do segundo filho: “Sim, Senhor, eu vou’. Mas não foi” (v. 30). Dessa vez, a resposta é respeitosa, carregada de respeito e formalismo. O pai é tratado como “senhor”. Porém, a postura do filho não foi coerente com a resposta.

Como se vê, tanto foram diferentes as respostas quanto as atitudes de cada um deles. O centro do ensinamento de Jesus com essa parábola está exatamente aqui, no contraste entre as respostas e os comportamentos dos dois filhos. Historicamente, Israel, como povo da aliança, disse sim a Deus com palavras, embora seu comportamento tenha se distanciado tanto da verdadeira vontade de Deus. Com esse contraste entre os dois filhos, Jesus provoca seus interlocutores e os convida a uma reflexão. Por isso, lhes pede um juízo, uma opinião sobre os dois filhos: “Qual dos dois fez a vontade do pai?” Os sumos sacerdotes e os anciãos do povo responderam: “O primeiro” (v. 31a). E a resposta não poderia ser outra. De fato, quem fez a vontade do pai foi o primeiro filho, aquele que disse “não” inicialmente, mas converteu-se e foi trabalhar na vinha. Ao ir trabalhar, esse primeiro filho fez verdadeiramente a vontade do pai, mesmo tendo respondido negativamente, uma vez que o importante para Deus não são as palavras, mas sim as atitudes. O segundo, pelo contrário, não fez a vontade do pai porque ficou apenas no discurso, não levou a solene resposta “Sim, Senhor” para a prática. Com isso, Mateus chama a atenção da sua comunidade e dos cristãos de todos os tempos para também não caírem nos mesmos erros das lideranças religiosas de Israel. Por sinal, Mateus já havia introduzido esse tema no discurso da montanha, ao recordar as palavras de Jesus: “Não é aquele que diz: ‘Senhor! Senhor!’ que entrará no Reino dos céus, mas aquele que realiza a vontade do meu Pai que está nos céus” (Mt 7,21), e em uma discussão com os escribas e fariseus, ao citar diretamente o profeta Isaías: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (Mt 15,8 = Is 29,13).

Com certeza os chefes religiosos de Jerusalém já tinham percebido a complexidade da situação em que tinham se envolvido ao questionar a autoridade de Jesus. Sem dúvidas, o clima piorou ainda mais com a continuação da resposta de Jesus a eles: “Então Jesus lhes disse: “Em verdade vos digo que os cobradores de impostos e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus” (v. 31b). Dessa vez, Jesus passou dos limites, pensaram eles, certamente. Enquanto Jesus os acusava com uma linguagem simbólica, eles poderiam ignorar ou mudar o foco. Mas assim, de modo tão claro e objetivo, não era possível. Os cobradores de impostos e as prostitutas eram, de acordo com a mentalidade da época, as piores categorias de pessoas, a verdadeira escória da sociedade, e Jesus ousou dizer que elas herdam primeiro o Reino de Deus do que as pessoas religiosas de Israel. O verbo preceder no presente indica a realização imediata ou, pelo menos, o começo do Reino de Deus na história. Jesus inaugura o Reino em sua vida e tem clareza de quem estava aderindo primeiro.

A rejeição dos chefes à mensagem de Jesus é comparável à rejeição sofrida por João (v. 31). De fato, também o precursor viera “num caminho de justiça”, mas fora rejeitado pelos conhecedores da lei e dos profetas, ou seja, pelas pessoas religiosas como os sacerdotes e anciãos, fechados ao arrependimento devido à autossuficiência de suas convicções religiosas. Já “os cobradores de impostos e as prostitutas” (v. 31b), rejeitados pela religião e abertos à conversão, sedentos de compreensão e acolhimento, acreditaram no Batista e em Jesus, tornando-se, assim, herdeiros do Reino de Deus, a nova vinha do Pai, que é o próprio Deus. Desse modo, a máxima proverbial que emoldurava a parábola do domingo passado, é atualizada na parábola de hoje: “Os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos” (Mt 20,16). É importante que, assim como a comunidade de Mateus soube atualizar essa mensagem, também as nossas comunidades de hoje saibam. Os primeiros de sempre, transformados em últimos na dinâmica do Reino serão sempre as pessoas autossuficientes, arrogantes, conhecedoras dos mínimos detalhes das leis religiosas, como eram os sacerdotes, anciãos e escribas da época de Jesus. Hoje, embora em outras modalidades, essas pessoas continuam presentes em nossas comunidades, com a mesma autossuficiência, julgando, excluindo e determinando como o outro deve agir.

É preciso identificar quem são os últimos de hoje para os reconhecermos como primeiros no Reino. Na época, Jesus identificou os cobradores de impostos e as prostitutas, exemplos máximos de perversão para a época. Hoje, certamente há uma relação muito maior de categorias de pessoas excluídas pelas religiões e comunidades eclesiais que Jesus as colocaria como primeiras no Reino de Deus. Todos os que sofrem discriminações, vítimas de preconceitos, e excluídos por quem controla e impõem as normas de comportamento, estariam na lista de Jesus, precedendo aqueles que louvam com os lábios, mas pouco fazem para o Reino de fato acontecer, ou seja, não fazem a vontade do pai.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, setembro 19, 2020

REFLEXÃO PARA O 25º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 20,1-16 (ANO A)

 


O evangelho proposto pela liturgia do vigésimo quinto domingo do tempo comum (ano a) é Mt 20,1-16, texto que compreende a parábola que pode ser chamada de “parábola dos trabalhadores da vinha” ou do “proprietário da vinha” ou, ainda, do “patrão generoso”. É uma parábola exclusiva do evangelista Mateus e, por ser tão rica de conteúdo, é difícil atribuir-lhe um título adequado. O mais importante, no entanto, não é a atribuição de um título, mas a assimilação da sua rica mensagem. Essa é mais uma “parábola do Reino dos Céus”. Porém, é importante recordar que uma parábola é sempre uma comparação, e não propriamente a descrição de uma realidade. 

Antes de adentrarmos diretamente no texto, é importante conhecer o seu contexto, tendo em vista uma compreensão mais adequada. O contexto geral é o da viagem de Jesus com seus discípulos para Jerusalém (Mt 19–20). Olhando para o Evangelho em seu conjunto, percebe-se que quanto mais Jesus se aproximava de Jerusalém, mais necessidade tinha de instruir seus discípulos sobre a natureza do Reino que ele estava propondo. Ora, os discípulos e as multidões que seguiam Jesus continuavam sonhando com a restauração do reino davídico-salomônico e, por isso, tinham dificuldades de compreender e aceitar o Reino que ele proponha. Diante da incompreensão e resistência dos discípulos, sobretudo, Jesus procurava cada vez mais apresentar as particularidades do Reino dos Céus e a mudança de mentalidade que esse exigia para ser assimilado e construído. Por isso, a catequese de Jesus aos discípulos é praticamente toda voltada para a dinâmica do Reino.

Considerando o conteúdo e a posição da parábola de hoje na dinâmica narrativa do Evangelho segundo Mateus, podemos concluir que ela se constitui como o ápice do ensinamento de Jesus aos discípulos sobre o Reino dos Céus. Ele continuará ensinando em Jerusalém, mas ali os destinatários e interlocutores primeiros já não serão exclusivamente os discípulos, e sim os fariseus, saduceus, doutores da lei e sacerdotes, ou seja, as lideranças e os principais movimentos religiosos da época. Portanto, o ensinamento exclusivo aos discípulos é praticamente concluído com esta parábola. Recordemos, então, o que antecede à parábola, para melhor compreendê-la: o encontro de Jesus com o jovem rico (19,16-22) e a reação dos discípulos ao desfecho desse encontro (19,23-30). A parábola que lemos hoje é, portanto, a resposta de Jesus a essas duas situações, principalmente à pergunta de Pedro: “E nós que deixamos tudo e te seguimos, que recompensa teremos?” (19,27).

Percebendo a falta de coragem do jovem rico para o despojamento e seguimento, Pedro quis tirar vantagem da situação, insinuando serem os primeiros discípulos merecedores de privilégios. Jesus lhe assegurou que não ficará sem recompensa quem deixar tudo para segui-lo, mas não promete privilégios, uma vez que “Muitos dos primeiros serão últimos, e muitos dos últimos serão primeiros” (19,30). Ora, essa expressão proverbial corresponde ao último versículo do capítulo 19 e a parábola começa no primeiro versículo do capítulo 20. Ao concluir a parábola, Jesus repete essa mesma máxima, embora modificando a ordem: “Os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos” (20,16). A parábola é, portanto, uma explicação ilustrada desse pensamento que propõe uma reviravolta na história, uma inversão total da ordem vigente, começando pela maneira de conceber as relações com Deus. E os primeiros necessitados dessa explicação são os próprios discípulos.

Feita a contextualização, podemos voltar a atenção diretamente para o texto, recordando que, pela extensão, não comentamos cada versículo, mas procuramos colher a mensagem central. Assim começa o texto: “O Reino dos Céus é como a história de um patrão que saiu de madrugada para contratar trabalhadores para a sua vinha” (v. 1). Como se vê, Jesus está introduzindo uma parábola do Reino dos Céus, e isso confere ao texto um grau de importância considerável, tendo em vista a centralidade do Reino em sua pregação. As parábolas apresentam imagens comparativas do Reino, e não descritivas. Como o Reino consiste em um mundo novo, uma sociedade alternativa, completamente diferente das sociedades humanas até então experimentadas, ele não pode ser descrito, uma vez que ainda não fora experimentado. Em relação ao protagonista da parábola, ao invés do termo patrão, como traz o texto do lecionário, é mais adequada a expressão “dono da casa” ou “pai de família”, uma imagem mais suave e mais fiel ao termo empregado pelo evangelista na língua original (em grego: οκοδεσπτ oikodéspote).

Desde o Antigo Testamento, Deus é apresentado como o dono de uma vinha (Is 5,1-7). Logo, a vinha uma imagem clássica do povo de Deus, Israel, e passa a ser imagem também da comunidade cristã. Chama a atenção o fato de ser o próprio proprietário a sair em busca de operários para a vinha. Ele não manda um encarregado, mas vai pessoalmente. Com esse detalhe, Jesus acena para a ilegitimidade da mediação dos líderes religiosos do seu tempo, principalmente o sacerdócio do templo. Os chefes religiosos do seu tempo não tinham legitimidade para falar em nome de Deus, até porque tinham distorcido a sua imagem, transformando o Deus Pai que ama e cuida num patrão vingativo e castigador. A imagem do “dono da casa” da parábola, portanto, se aproxima do “Deus Conosco” que Jesus veio revelar (Mt 1,23; 18,20; 28,20). É uma imagem que se aproxima também daquela do “Pai misericordioso” da chamada “parábola do filho pródigo” de Lucas (Lc 15,11-32), pois não recompensa conforme os méritos, mas age por pura bondade e gratuitamente.

O proprietário demonstra um zelo ímpar para com a sua vinha: sai diversas vezes durante o dia em busca de trabalhadores: pela madrugada (v. 1), às nove da manhã (v. 3), ao meio dia (v. 5), às três (v. 5) e às cinco da tarde (v. 6). O contato interpessoal do proprietário com os operários contratados deixa ainda mais clara as novas relações entre a humanidade e o Deus da vida que Jesus revelou. Um Deus presente, realmente “Conosco”, como apresenta Mateus ao longo de todo o seu Evangelho (1,23; 18,20; 28,20). Um Deus que chama porque ama, que confia a construção do seu Reino a todos os que encontra parados nas praças, calçadas, estradas, porque nunca foram reconhecidos por ninguém. E, ao chamar, esse Deus não pede currículo algum, porque sua intenção é a inclusão: ele não quer que ninguém fique fora do seu Reino, ao contrário da religião que segregava e excluía, ao classificar as pessoas entre justos e pecadores.

Ao contrário do sistema vigente na época de Jesus e no período da redação do Evangelho segundo Mateus, no Reino por ele anunciado, não há lugar para a competitividade, nem para a meritocracia. É claro que nem todos conseguiam assimilar com facilidade essa nova mentalidade inclusiva: a passagem da religião da lei para a da misericórdia, da bondade. Essa dificuldade é demonstrada na parábola pela reação dos primeiros contratados no momento do pagamento. Ora, ao pagar primeiro aos últimos contratados, e dar-lhes o mesmo valor dado aos contratados ainda na madrugada, o patrão inverteu completamente a lógica da economia, fez uma reviravolta total nas relações: ao invés de agir conforme a lei, ele agiu com misericórdia e bondade. E isso deixou furiosos aqueles que tinham sido contratados primeiro, como diz o texto: “ao receberem o pagamento, começaram a resmungar contra o patrão: ‘Estes últimos, trabalharam uma hora só, e tu os igualaste a nós, que suportamos o cansaço e o calor o dia inteiro’” (vv. 11-12). O patrão tinha duas opções: agir conforme a lei e, assim, perpetuar a desigualdade, ou agir pela bondade e, assim, promover a igualdade. Como preferiu a segunda opção, foi contestado.

Com a reação dos primeiros contratados, Jesus denuncia a mentalidade competitiva entre os discípulos e, ao recordar isso, Mateus também denuncia a situação da sua comunidade, composta predominantemente por cristãos provindos do judaísmo. Esses, reivindicavam vantagens e privilégios sobre os cristãos convertidos do paganismo. Como os primeiros contratados da parábola que alegavam ter suportado cansaço e calor, os cristãos de origem judaica alegavam conhecer e observar a lei e os profetas, imaginando que isso lhes daria privilégios dentro da comunidade, por serem os verdadeiros herdeiros das antigas promessas. Esse comportamento se assemelha ao do filho mais velho na parábola do “Pai misericordioso” ou “Filho pródigo” de Lucas (Lc 15,11-31), de modo que podemos equipará-las na ênfase à misericórdia do Pai revelada por Jesus, como já acenamos anteriormente.

A reação do patrão ao murmúrio dos primeiros contratados é a clara denúncia de Jesus e de Mateus às pessoas religiosas que queriam controlar o agir de Deus, prendendo-o a doutrinas e normas: “Por acaso não tenho o direito de fazer o que quero com aquilo que me pertence? Ou estás com inveja porque estou sendo bom?” (v. 15). O desconforto de uma religião sustentada pela mentalidade meritocrática, retributiva e legalista é grande quando se descobre que o Deus verdadeiro é um Pai que ama, perdoa, vai pessoalmente ao encontro das pessoas afastadas e promove a igualdade. Jesus contesta radicalmente a religião que se propõe a determinar a maneira de Deus agir. Para ele, isso é inadmissível, é um verdadeiro atentado contra Deus.

Certamente, a denúncia de Jesus e do evangelista continua válida também para os dias atuais. Pois, como sabemos, ainda hoje, muitas pessoas religiosas ainda têm dificuldade de aceitar um Deus misericordioso que age com liberdade e doa seu amor a todos, sem distinção. Na verdade, esse Deus continua sendo negado por essas pessoas. É inadmissível um Deus que não premia os bons e castiga os malvados. Para essas pessoas, a salvação é um prêmio, e não um dom; Deus é um soberano, e não um Pai; o outro é um concorrente, e não um irmão; a Igreja é um tribunal, e não uma família. A maneira de agir do “dono da casa” desmente completamente essa concepção errada de Deus.

Assim, chegamos à conclusão e síntese da parábola: “Os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos” (v. 16). Como tínhamos afirmado na introdução, a parábola em si é a explicação para essa máxima proverbial. Não se trata de uma exclusão aos que chegaram primeiro no grupo de discípulos ou na comunidade, mas uma demonstração de que, o fato de chegarem primeiro não lhes dá privilégios nem supremacia sobre os que vieram e virão depois. Essa expressão é apenas um modo de enfatizar que aqueles que forem chamados por último terão acesso ao mesmo amor, à mesma bondade de Deus que os primeiros. O Reino, apresentado como vinha, é também casa, família, é fraternidade e igualdade.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

sábado, setembro 12, 2020

REFLEXÃO PARA 24º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 18,21-35 (ANO A)

 


Com o evangelho deste vigésimo quarto domingo do tempo comum – Mt 18,21-35 – continuamos a leitura do “discurso comunitário”, o quarto dos cinco discursos de Jesus no Evangelho segundo Mateus. Esse discurso recebe esse nome porque trata de questões relativas à vida interna da comunidade cristã, especialmente das relações entre os seus membros. No domingo passado, foi evidenciado o tema da correção fraterna. No texto lido hoje, predomina o tema do perdão, com ênfase na certeza do perdão de Deus a todos os seus filhos e filhas, e a responsabilidade dos membros da comunidade praticarem o perdão entre si de modo ilimitado. Como no domingo passado (vigésimo terceiro domingo), cujo texto evangélico proposto pela liturgia foi Mt 18,15-20, já fizemos a contextualização de todo o capítulo dezoito, hoje podemos nos isentar dessa tarefa.

Como esse discurso foi dirigido exclusivamente aos discípulos, é deles que vem as reações. Por isso, diz o texto que “Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou: ‘Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?” (v. 21). Como vemos, é Pedro o primeiro a se manifestar, não por exercer uma atividade de proeminência sobre os demais, mas por refletir a voz de todo o grupo e ser ele o que melhor sintetiza as características do grupo, incluindo as contradições e incoerências. Para os evangelistas, e principalmente para Mateus, Pedro é a cara dos doze: professa solenemente a fé em Jesus como o Cristo e Filho de Deus (Mt 16,16), mas também o nega no momento mais difícil (Mt 26,69-75), ora fala conforme a vontade do Pai, ora conforme satanás (Mt 16,17.23). Portanto, a figura de Pedro funciona como uma síntese do grupo dos doze, sobretudo, em Mateus.

Jesus tinha apresentado a necessidade da reconciliação como uma busca irrenunciável para a comunidade (18,15-20). Como não há reconciliação sem perdão, ele vai apresentar a necessidade do perdão permanente e contínuo na vida da comunidade. Aqui, Pedro encontra a oportunidade de interagir, através de uma pergunta. Nessa pergunta de Pedro há, mais do que uma dúvida, uma convicção: se deve perdoar, mas com prudência e limite. Esse limite seria sete vezes, afinal, o número sete evoca perfeição e completude. O perdão sempre fez parte das tradições de Israel, porém, com certas restrições. Na época de Jesus, por exemplo, predominava um costume de aconselhar o perdão até três vezes para uma mesma pessoa. A pergunta propositiva de Pedro, com a possibilidade de conceder o perdão até sete vezes à mesma pessoa compreendia mais do que o dobro do que os costumes da época. Sem dúvidas, percebe-se um significativo avanço na mentalidade de Pedro e dos discípulos que ele representa. Aos poucos, a lógica calculista da antiga religião estava sendo superada entre os discípulos. O que continuava negativo na mentalidade deles era a insistência em querer medir quantitativamente aquilo que deve ser ilimitado.

Certamente, Pedro imaginava receber um elogio de Jesus, pois tinha demonstrado uma “justiça superior à dos escribas e fariseus” (Mt 5,20), como Jesus tinha exigido ainda no seu primeiro discurso, aquele chamado de “discurso da montanha” (Mt 5– 7). No entanto, Jesus vai muito além, com a sua resposta: “Não te digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete” (v. 22). Sem dúvidas, Pedro e os demais ficaram desconcertados com essa resposta. A pergunta de Pedro já refletia uma abertura na comunidade para ir além dos costumes da época, mas com certos limites. A resposta de Jesus ensina a romper com todos os limites. Não se trata de um convite ou ordem para os discípulos fazerem uma multiplicação e chegarem a uma cifra elevada, porém, contável (70 x 7 =490), mas simplesmente um sinal de que não há espaço para números no que diz respeito às relações com o próximo na comunidade cristã, até porque as relações com o próximo e com Deus são inseparáveis. Essa expressão numérica não indica uma quantidade, mas a qualidade: o perdão é ilimitado e incontável; deve ser concedido conforme a necessidade, e não conforme cálculos.

Para deixar ainda mais clara a necessidade do perdão entre os irmãos, Jesus apresenta uma parábola, que funciona como explicação do seu ensinamento. Nesse mesmo discurso Ele já tinha contado uma primeira parábola, aquela da ovelha perdida (18,10-14), ao enfatizar que as relações na comunidade devem refletir o amor e a misericórdia do Pai. Agora, com essa segunda parábola, ele reforça esse ensinamento: “O Reinos dos Céus é como um rei que resolveu acertar as contas com seus empregados” (v. 23). Antes de tudo, convém recordar que uma parábola é apenas uma comparação, e não uma descrição. É importante fazer esse esclarecimento para não distorcermos a imagem do Pai misericordioso, convertendo-o em um soberano vingativo. Por isso, o primeiro objetivo dessa parábola é mostrar a abundância do perdão ilimitado de Deus e alertar para a dificuldade que a comunidade tem de praticar o perdão. O segundo objetivo é levar a comunidade a superar essa dificuldade, denunciando a frequente incoerência em invocar o perdão do Pai quando não há disposição de perdoar ao próximo também de modo ilimitado.

De modo simplificado, podemos compreender a parábola da seguinte maneira: tudo o que se recebe de Deus é dom, e tudo o que é dom deve ser partilhado. O primeiro empregado ou servo devia uma quantidade incalculável (v. 24), ou seja, possuía uma dívida milionária, a ponto de ser impossível quitá-la. O rei, o patrão, manda vendê-lo como escravo, juntamente com toda a família (v. 25). Certamente, esse não era apenas um empregado, mas alguém que participava diretamente da administração, o qual deve ter desviado ilicitamente muito dinheiro para ficar tão endividado para com o rei, após ser descoberto. Sabendo da impossibilidade de pagar, não lhe resta outra coisa senão suplicar o perdão da dívida, como o fez, pedindo um prazo como pretexto (v. 26). O patrão teve compaixão e perdoou a dívida (v. 27), representando o agir de Deus diante da incapacidade humana de corresponder aos seus propósitos.

O servo, perdoado de maneira absoluta e ilimitada, se mostra incapaz de partilhar o perdão recebido (vv. 28-32); e isso é intolerável para aquele que lhe havia perdoado (v. 33-34). O centro da parábola está exatamente aqui: advertir e prevenir a comunidade, principalmente as lideranças, da hipocrisia, covardia e mesquinhez de não partilhar o perdão, de não ser instrumento e sinal de reconciliação. O servo foi condenado porque reteve o perdão somente para si, não partilhou o perdão recebido. Jesus quer evitar esse perigo na(s) sua(s) comunidade(s). Assim, a comunidade contradiz o projeto de Jesus e do Pai quando classifica o pecado, determinando se é “perdoável” ou não, e quando impõe limites ao aplicar o perdão.

Longe de descrever Deus como um soberano vingativo, o que Jesus quer com essa parábola é reforçar um ensinamento necessário e urgente para o bem da comunidade, que insistia em negligenciar. Enfim, Jesus apenas reforça o que já tinha sido dito no seu primeiro discurso, o da montanha: “Pois, se perdoardes aos homens os seus delitos, também o vosso Pai celeste vos perdoará; mas se não perdoardes aos homens, o vosso Pai também não perdoará os vossos delitos” (cf. Mt 6,14-15). Quando um evangelista mostra Jesus insistindo com um mesmo ensinamento, tornando-se até repetitivo, significa a importância de tal ensinamento e a dificuldade de assimilação entre os seus discípulos. Por isso, ele insiste com o perdão: por mais difícil que seja praticá-lo de modo ilimitado, ele é indispensável. Sem o perdão ilimitado e generoso não há seguimento de Jesus, não há comunidade cristã e tampouco há relação autêntica com Deus.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, setembro 05, 2020

REFLEXÃO PARA O 23º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 18,15-20 (ANO A)

 


Neste vigésimo terceiro domingo do tempo comum, o evangelho oferecido pela liturgia é Mt 18,15-20. Todo o capítulo dezoito do Evangelho segundo Mateus é ocupado pelo quarto dos cinco grandes discursos de Jesus apresentados nesse evangelho. Esse discurso é dirigido especialmente aos discípulos, e trata das relações entre os membros da comunidade, por isso é comumente chamado de “discurso comunitário” ou “discurso eclesial”. O ensinamento de Jesus nesse discurso tem como primeiro objetivo apresentar a comunidade cristã como uma comunidade de iguais, marcada pelo amor, humildade e perdão recíprocos.

Como o texto que a liturgia oferece não compreende o início do discurso, convém retornarmos ao início para contextualizá-lo e, assim, compreendermos melhor o evangelho de hoje e o discurso inteiro. Ora, o discurso é a resposta de Jesus a uma pergunta absurda dos discípulos, conforme o primeiro versículo do capítulo: “Os discípulos aproximaram-se de Jesus e perguntaram-lhe: ‘Quem é o maior no Reino dos céus?” (18,1). A pergunta é absurda para Jesus porque ela revela que os discípulos ainda não haviam compreendido quase nada do Reino dos céus. Desde o início da sua pregação, Jesus tinha apresentado o Reino dos céus como uma sociedade alternativa ao sistema vigente, sem relações de poder, nem hierarquia entre os seus membros. Se os discípulos ainda perguntavam quem era o maior, é porque ainda não haviam compreendido nem aceitado essa proposta.

Além da introdução ao discurso, é importante recordar também que, pouco antes, Jesus havia feito o segundo anúncio da paixão (Mt 17,22-23). Por incrível que pareça, quanto mais Jesus falava em cruz, perseguição e sofrimento, mais os discípulos alimentavam seus sonhos de grandeza e poder (Mt 20,20-28), demonstrando que não estavam ainda vivendo segundo as bem-aventuranças (Mt 5,1-12). Sem dúvidas, essa era também a crise da comunidade de Mateus, cerca de quatro décadas após a morte de Jesus. A tendência hierarquizante era cada vez mais forte, por isso o evangelista faz questão de recordar as palavras de Jesus contrárias a essa tendência.

Voltando para o discurso em si, convém ainda recordar que o trecho proposto pela liturgia é precedido pela parábola da ovelha perdida (Mt 18,10-14). Assim, podemos dizer que o nosso texto é uma espécie de explicação da parábola, uma vez que, ao tratar da correção fraterna, o texto evidencia o esforço da comunidade para que o perdão e a reconciliação aconteçam. Os membros da comunidade devem esforçar-se ao máximo para refletirem em suas vidas o esforço do Pai: “Vosso Pai, que está nos céus, não quer que se perca nenhum destes pequeninos” (18,14). Ora, para que nenhum dos pequeninos se perca, a comunidade não pode medir esforços; deve empenhar-se com todos os meios disponíveis para que prevaleça o amor, o perdão e haja a reconciliação.

Feita a devida contextualização, voltamos a nossa atenção para o nosso texto específico (18,15-20), o qual funciona como uma espécie de explicação da parábola que o precede, como afirmamos antes. Eis o primeiro versículo: “Se o teu irmão pecar contra ti, vai corrigi-lo, mas em particular, a sós contigo! Se ele te ouvir, tu ganhaste o teu irmão” (v. 15). A possibilidade do pecado e da ofensa já deixa muito claro que a comunidade não é perfeita, pois seus membros também não são perfeitos. Não obstante as imperfeições, a comunidade é, antes de tudo, um espaço fraterno, pois seus membros são todos irmãos. De fato, uma das informações e ensinamentos mais importantes desse versículo é o uso da palavra irmão (em grego: δελφς adelfós). Independentemente da falta cometida, a fraternidade, como regra básica da comunidade cristã, deve ser buscada em todas as circunstâncias. A correção em particular é o primeiro recurso: nada de exposição e humilhação; entre irmãos, deve haver liberdade para perceber juntos o erro e a necessidade de correção para o bem da comunidade. Não é a posição de um superior para com um subalterno, mas de um irmão que busca outro irmão para recompor a unidade da comunidade. Ganhar o irmão significa recuperá-lo para a comunidade, ou seja, reatar com ele os laços de fraternidade.

Caso essa primeira tentativa não funcione, novos meios devem ser buscados: “Se ele não te ouvir, toma contigo mais uma ou duas testemunhas para que a questão seja decidida sob a palavra de duas ou três testemunhas” (v. 16). O cuidado com o irmão continua muito evidente: nada de expô-lo publicamente. Contudo, para que não se perca, é necessário continuar buscando a sua reconciliação e seu retorno à fraternidade. Tendo falhado a primeira tentativa, busca-se uma segunda. Nessa, recorre-se ao princípio judaico do testemunho, ao aconselhar que se tome uma ou mais testemunhas, para que o testemunho seja válido (Dt 19,15). Aqui, no entanto, não se trata de um recurso jurídico, mas sim da ajuda mútua. Mais do que mostrar o erro, o esforço da comunidade deve ser um convencimento para que o irmão não se aparte dela.

Mesmo que a segunda tentativa funcione, ainda há outros recursos e meios, como sugere Jesus: “Se ele não vos der ouvidos, dize-o à Igreja” (v. 17a). A terceira tentativa para que o irmão não se perca da comunhão fraterna é levá-lo à comunidade, ou seja, à Igreja. Essa, não como instância jurídico-institucional, mas como espaço de comunhão e fraternidade, deve ser comunicada e ficar a par de todas as situações que envolvam seus membros. A Igreja aqui, como já falamos, não é uma instituição jurídica ou hierárquica, mas a comunidade reunida, a assembleia (κκλησίᾳ ekklesia). Esse conselho de Jesus é mais um sinal da sinceridade e transparência com que os irmãos e irmãs da comunidade cristã devem viver. Como um corpo que é a comunidade, seus membros têm direito de saber como andam as relações entre os demais membros, afinal, o bom funcionamento do corpo depende da saúde e do bem de todos os membros. A comunidade reunida, como espaço de comunhão e oração, deve também fazer da celebração uma oportunidade de crescimento com a reconciliação de seus membros.

É possível que até mesmo a comunidade reunida não seja suficiente para convencer o irmão da necessidade da reconciliação. Assim como é espontâneo o ingresso na comunidade, também deve ser o afastamento, o que muitas vezes ocorre até por falta de compreensão e acolhida. Por isso, Jesus previne: pode ser que nem mesmo o conselho da assembleia reunida seja suficiente para o retorno do irmão: “Se nem mesmo à Igreja ele ouvir, seja tratado como se fosse um pagão ou um pecador público” (v. 17b). Frequentemente, essa passagem é interpretada como uma espécie de excomunhão, e até utilizada para justificar esse procedimento. Porém, essa interpretação distorce completamente o sentido do texto. Contradiz, inclusive, a parábola que antecede o nosso texto, aquela da ovelha perdida. O real significado dessa expressão é: se aquele irmão não se convenceu da necessidade de viver em paz com outro, se ele não se deixou mais convencer pela beleza da vida fraterna e comunitária e, por isso, depois de várias tentativas, ele precisa refazer o caminho.

Ser tratado como pagão ou publicano é ser, de novo, destinatário do evangelho. Embora o texto litúrgico use a expressão “pecador público”, é mais adequado usar “publicano” ou “cobrador de impostos”, pois corresponde melhor ao termo empregado pelo autor, na língua original (em grego: τελνης telónes). Ora, ao longo de todo o evangelho, os cobradores de impostos e os pagãos são destinatários do interesse de Jesus e, portanto, do evangelho. Essas duas categorias de pessoas eram desprezíveis para os fariseus, mas jamais para Jesus. A comunidade cristã não pode ser pautada pelos mesmos princípios dos fariseus, e sim pelo amor de Jesus e do Pai, por Ele revelado. Por isso, deve ter coragem de voltar atrás e recomeçar seu caminho formativo para o discipulado, quantas vezes for necessário, indo ao encontro daqueles e daquelas que se afastaram. Portanto, como comunidade inclusiva, a Igreja deve buscar todos os meios para que nenhum pequenino se perca.

O que já dissera aos discípulos no episódio de Cesaréia de Felipe, Jesus agora reforça: “Tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu” (v. 18). É claro que não se trata de uma delegação de poderes, mas de responsabilidade. A comunidade que vive, de fato, as bem-aventuranças é reflexo do céu. As relações fraternas de amor e perdão são os distintivos da comunidade cristã. Não é necessário ter poder para que as coisas da terra sejam confirmadas pelo céu; basta coerência, testemunho e, sobretudo, amor! Ao Pai, importa apenas amor, concórdia e fé (v. 19). São esses os requisitos para tornar válida a oração. Antes de dobrar os joelhos e abrir os lábios para dirigir uma prece ao Pai, a comunidade deve viver a concórdia interna, respeitando as diferenças, obviamente.

A autêntica comunidade cristã, reconciliadora e orante, é o lugar privilegiado da presença de Jesus: “onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou ali, no meio deles” (v. 20). Aqui, o evangelista retoma um dos temas principais de todo o seu evangelho: a presença do Senhor no meio da comunidade (Mt 1,23; 18,20; 28,20). Ou seja, do começo ao fim do seu evangelho, Mateus apresenta Jesus como o “Deus conosco”. Aqui está também a justificativa para que a comunidade nunca se canse de buscar o retorno daqueles que se afastam: é a presença do irmão que gera comunhão, e essa comunhão garante a presença de Jesus. Na época da redação do evangelho, como o templo já havia sido destruído, os judeus afirmavam que Deus estava presente onde dois ou mais estivessem reunidos para estudar a Lei. Com essas palavras, Jesus diz que não é o estudo da lei que garante a presença divina, mas é o seu nome. O evangelista entende que reunir-se no nome de Jesus não é apenas pronunciar palavras juntos, mas viver de acordo com o seu ensinamento. Com isso, ele combate as tendências individualistas que começavam a aparecer na sua comunidade.

Uma comunidade só é autenticamente cristã quando é possível perceber e sentir nela a presença de Jesus. Essa presença só se manifesta quando há amor, perdão, reconciliação e compreensão. Havendo esses elementos, independentemente do número de membros, mesmo que sejam só dois ou três, o Senhor estará presente. Por isso, a comunidade deve empenhar-se ao máximo possível para recuperar um irmão ou irmã afastado; mesmo que seja somente um, a sua ausência pode comprometer a presença do Senhor!

Pe. Francisco Cornélio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA QUARESMA – LUCAS 15,1-3.11-32 ANO C

A liturgia do quarto domingo do tempo da Quaresma, deste ano C, nos dá a oportunidade de ler mais uma passagem exclusiva do Terceiro Evangel...