sexta-feira, outubro 31, 2025

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE TODOS OS SANTOS – MATEUS 5,1-12a


Neste ano, a Igreja no Brasil celebra a solenidade de todos os santos no próprio dia – primeiro de novembro –, o que pode ser considerado um fenômeno raro no calendário litúrgico do nosso país, uma vez que se costuma transferi-la para o domingo seguinte, o que neste ano coincide com a comemoração de todos os fiéis defuntos – dia dois de novembro , a qual terá prioridade. O evangelho proposto para essa solenidade de todos os santos é um texto fixo, lido todos os anos, certamente porque nenhuma outra passagem bíblica expressa tão bem o sentido da santidade como este: Mt 5,1-12a. Trata-se da introdução do primeiro dos cinco discursos de Jesus no Evangelho de Mateus, conhecido como “discurso ou sermão da montanha”. Essa introdução ficou conhecida como “bem-aventuranças”, devido à repetição constante do termo grego makárioi (μακάριοι), cujo significado é benditos, felizes ou bem-aventurados. Esse é, certamente, um dos trechos mais lidos e conhecidos de todo o Novo Testamento, apreciado por cristãos e não cristãos, pois contém o mais completo programa de humanização que o mundo já conheceu. Gandhi, por exemplo, definiu as bem-aventuranças como «as palavras mais altas que a humanidade já escutou».

As bem-aventuranças compreendem a síntese do programa de vida de Jesus e, consequentemente, daquilo que seus discípulos e discípulas de todos os tempos devem viver. É um texto belo, mas muito fácil de ter seu sentido deformado, se interpretado de modo equivocado, como geralmente tem acontecido. Ora, falar em todos os santos e santas tem tudo a ver com o autêntico seguimento de Jesus de Nazaré. Por isso, é importante refletir cada vez mais sobre as palavras de Jesus que o Evangelho apresenta. Na verdade, todo o discurso da montanha é um indicador de direção para o discipulado de Jesus e, portanto, para a santidade. Devemos, pois, concentrar nossa reflexão na mensagem evangélica, evitando que esta solenidade se transforme em mera apologia ao devocionismo fundamentalista que tanto tem se difundido nos últimos anos. Por isso, é preciso ter clareza do programa de vida de Jesus com seu projeto de sociedade e, consequentemente, das suas exigências.

De todas as palavras atribuídas a Jesus que encontramos ao longo dos evangelhos, as bem-aventuranças são as mais interpelantes e revolucionárias, embora sejam as mais fáceis de serem deturpadas, passando de uma mensagem de transformação a uma de resignação. Infelizmente, isso tem acontecido com muita frequência. Por isso, é necessário compreendê-las bem, para que sua mensagem seja sempre de encorajamento e transformação. Na versão mateana, encontramos oito bem-aventuranças, embora alguns comentadores considerem nove, devido à ocorrência do termo grego makárioi (μακάριοι) por nove vezes. Não consideramos a nona ocorrência do termo (v. 11) como uma nova bem-aventurança, mas como uma recapitulação e síntese das oito para os discípulos, reforçando a exigência para que eles de fato vivessem intensamente todas elas.

Para compreendermos as bem-aventuranças em seu sentido original, é necessário fazer mais uma consideração semântica. Como já afirmamos anteriormente, o termo grego empregado no Evangelho é makárioi (μακάριοι), o qual pode ser traduzido por benditos, felizes ou bem-aventurados; é uma fórmula que introduz uma mensagem de felicitação. É importante recordar que, embora escritos em grego, os evangelhos foram construídos segundo uma mentalidade semítica, sobretudo o de Mateus. Por isso, é importante recordar o sentido da palavra na língua original de Jesus, o hebraico. Ora, o termo correspondente ao grego μακαριοι – makárioi, em hebraico é (אשרי) “ashrei”, o qual significa uma felicitação, mas é, ao mesmo tempo, uma forma imperativa do verbo caminhar, seguir em frente, avançar ou pôr-se em marcha. Expressivas correntes da exegese atual propõem que o evangelista pensou nos dois sentidos ao formular o seu texto. De fato, sem esse segundo sentido, as bem-aventuranças podem facilmente ser transformadas em discurso de conformismo ou resignação; com ele, passam a ser uma mensagem de transformação.

Olhemos, pois, para cada uma das situações contempladas por Jesus como necessitadas de transformação. Eis a primeira bem-aventurança: «Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus» (v. 3). De todas, tem sido essa a bem-aventurança que tem recebido as interpretações mais equivocadas ao longo da história, infelizmente. Longe de ser um convite ao conformismo, é um impulso à transformação. Na língua grega a palavra pobre (πτωχός – ptokós) deriva do verbo acocorar-se de medo, dobrar-se, abaixar-se, encurvar-se; designa, portanto, uma condição de humilhação extrema. O convite de Jesus é para que não desanimem, mas sigam em frente, não desistam, coloquem-se em marcha para alcançarem o Reino que foi criado para eles, o Reino dos Céus, mas não no céu, aqui mesmo na terra, como sinônimo de vida digna e plena. Aqui o termo espírito (em grego: πνεύμα – pneuma) é empregado como sinônimo de consciência da situação em que se encontram os pobres, encurvados de medo pela opressão do império romano e pela religião oficial da época. A esses, Jesus convida a perder o medo e, conscientemente, seguir em frente lutando pelo Reino. O pobre que se encontra encurvado pelo sistema, deve tomar consciência da sua situação insuportável e lutar, seguindo em busca de seus direitos de herdeiro do Reino.

A segunda bem-aventurança diz: «Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados» (v. 4). De todas as bem-aventuranças, certamente, essa é a mais paradoxal. Numa tradução mais literal, o termo aflitos seria substituído por “os que choram”, e essa bem-aventurança mistura felicidade com lágrimas e lágrimas com a consolação. É um paradoxo que escapa a qualquer lógica humana. É claro que Deus não compactua com as causas das aflições, mas ele está sempre do lado dos aflitos, daqueles que choram. Ora, jamais será consolado o aflito que se fecha em suas aflições, mas sim aquele que consegue mover-se, apesar do sofrimento. Ser consolado na mentalidade bíblica é ter o sofrimento eliminado por completo. A implantação do Reino dos Céus em um mundo tão hostil traz muitas aflições para os discípulos de Jesus. Mesmo assim, eles devem avançar, jamais recuar, para encontrar a consolação.

Na terceira bem-aventurança, Jesus diz: «Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra» (v. 5). O termo manso equivale a humilde, e significa a pessoa que reivindica alguma coisa sem violência. Nesse caso particular, equivale às pessoas que lutam pela terra sem fazer uso da violência. A luta sem violência se torna mais lenta e, aparentemente, mais difícil de conseguir o objetivo. Por isso, Jesus encoraja, pede paciência, determinação e ação; em outras palavras, é como se ele dissesse: «não parem, continuem caminhando e lutando». Era muito comum os pequenos camponeses perderem suas terras por dívidas, com possibilidade de resgate. À medida que o tempo passava, as esperanças de resgate diminuíam e muitos desanimavam. Por isso, Jesus os consola e os encoraja.

Como não poderia deixar de ser, Jesus coloca para os discípulos, conforme ele mesmo o fizera, a justiça como uma busca incessante. Por isso, a quarta bem-aventurança é tão forte: «Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados» (v. 6). A fome e a sede são as necessidades que mais incomodam o ser humano. Assim como o alimento e a bebida são essenciais para a vida, também deve ser a luta por justiça entre seus discípulos. A comunidade cristã não tem vida quando não se alimenta cotidianamente de justiça. Onde não há justiça, não há dignidade, não há paz. É preciso seguir em frente na luta por justiça.

Na quinta bem-aventurança, temos: «Bem-aventurados os misericordiosos, porque encontrarão misericórdia» (v. 7). É importante recordar que misericórdia, na Bíblia, não é um sentimento, mas uma ação em favor dos necessitados. Com isso, Jesus pede que seus discípulos prossigam sempre no caminho do bem, pois é do bem que o bem é gerado. Quando mais se ama mais possibilidades se tem de ser amado também. Isso faz parte da pedagogia divina e da própria essência do Deus revelado por Jesus, que é todo amor e misericórdia. De fato, a misericórdia é uma das principais características do Deus de Jesus, por isso, deve ser também para os seus seguidores. Seguir fazendo o bem ao próximo, sem distinção, é uma das principais exigências do discipulado.

Com a sexta bem-aventurança, Jesus se contrapõe claramente aos ritos de purificação da religião judaica: «Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus» (v. 8). Os antigos ritos de purificação do judaísmo tinham escondido o rosto verdadeiro de Deus. Jesus proclama a nulidade daqueles ritos e pede para seus discípulos caminharem em outra direção, avançarem por outro caminho que não seja o da religião que divide, exclui e até mata. Só há um tipo de pureza: aquela interior, e essa não é proporcionada por nenhum rito, mas somente pela disposição do ser humano em seguir os propósitos de Deus. Vê a Deus quem olha para o próximo com os olhos de Deus. É nessa direção que o discípulo de Jesus deve marchar, avançar.

A sétima bem-aventurança diz: «Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus» (v. 9). Na marcha da comunidade formada por discípulos e discípulas de Jesus, a promoção da paz é requisito básico e essencial. Não se trata de uma falsa paz como aquela imposta por Roma, intitulada “pax romana”. A paz que Jesus propõe não é uma mera ausência de conflitos, mas um retorno ao ideal hebraico expresso pela palavra (שלום) shalom: paz como bem-estar total do ser humano, harmonia com Deus, com o próximo e consigo mesmo. É por essa paz que a comunidade de discípulos e discípulas deve lutar enquanto caminha, fazendo dessa paz o rumo da caminhada. Não há prêmio para quem caminha promovendo a paz, mas há consequências: ser chamados filhos de Deus. Na tradição bíblica, ser filho é ser parecido com o pai. Quando alguém caminha promovendo a paz, se torna parecido com Deus, por isso, será chamado seu filho.

A oitava bem-aventurança funciona como uma espécie de credencial para o reconhecimento do discípulo e sua pertença ao Reino: «Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus» (v. 10). A justiça, por excelência, é a prática de todas as bem-aventuranças anteriores. A quem adere plenamente à lógica do Reino, não há outra consequência a não ser a perseguição. Mas, mesmo diante da perseguição, a palavra de Jesus continua sendo de ânimo e encorajamento: continuai caminhando, avançando, marchando em busca do Reino que é vosso!

Viver as bem-aventuranças é, portanto, abraçar um projeto de sociedade alternativa que, inevitavelmente, entra em conflito com os sistemas dominantes baseados na exploração, no lucro, na sobreposição de uns sobre os demais e pela violência. Mas é diante de tudo isso, ou seja, no conflito, que a comunidade cristã deve avançar, seguir em frente sem jamais desanimar. Por isso, Jesus reforçou todo o ensinamento anterior, direcionando diretamente para os discípulos a conclusão com as consequências do abraçar o seu projeto: «Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus» (vv. 11-12a). Alguns estudiosos vêem essa afirmação como uma nova bem-aventurança, enquanto outros, a maioria, a vêem como um reforço e síntese conclusiva das oito anteriormente apresentadas. Aquelas oito são inseparáveis. Jesus não as apresenta como sugestões para os discípulos escolherem uma ou outra. É preciso viver todas elas para ser discípulo e discípula de Jesus, pois nelas ele traça o seu próprio retrato, diz como ele mesmo viveu, caminhou ou avançou; e o discípulo deve, inevitavelmente, viver como ele.

Assim, recordando que Paulo e os demais cristãos de suas comunidades chamavam-se mutuamente de santos, e eram cristãos porque levavam a sério as bem-aventuranças, podemos compreender que celebrar todos os santos é recordar todos os que não aceitam as coisas como são impostas, mas sabem mover-se, avançar e seguir um outro caminho, não para fugir da realidade, mas para transformá-la à maneira de Jesus.

Para seguir Jesus é preciso estar em estado permanente de marcha, caminhando contra tudo o que impede a realização do Reino já aqui na terra. A comunidade cristã não pode mais aceitar que uma mensagem tão encorajante e transformadora se transforme em sinal de resignação e aceitação passiva diante de tudo o que impede o advento do Reino. A mensagem das bem-aventuranças é libertadora porque convida o discípulo e a discípula a sair de si, colocar-se em movimento rumo a um mundo melhor, mais justo e mais fraterno. Enfim, as bem-aventuranças constituem o mais completo programa de humanização que esse mundo já conheceu.

 Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, outubro 25, 2025

REFLEXÃO PARA O 30º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 18,9-14 (ANO C)



A liturgia do trigésimo domingo do tempo comum propõe a leitura de mais uma parábola exclusiva do Evangelho de Lucas, que é também uma das mais conhecidas de todo o Novo Testamento: a parábola do fariseu e o publicano – Lc 18,9-14. O contexto desta passagem continua sendo o caminho de Jesus com seus discípulos para Jerusalém, cuja chegada já se aproxima. Como temos frequentemente recordado, o caminho possui uma importância ímpar no Evangelho de Lucas, ocupando dez capítulos (Lc 9,51–19,27), constituindo, assim, a seção narrativa mais longa de toda a obra, tornando-se, assim, um traço distintivo dela. Mais do que um percurso físico e geográfico, para Lucas o caminho é imagem da catequese e da identidade missionária da Igreja; é um verdadeiro programa formativo, um itinerário pedagógico no qual ele distribuiu os principais ensinamentos de Jesus, tendo em vista a formação do discipulado de todos os tempos. Se, entre os três evangelhos sinóticos – Mt, Mc e Lc –, Lucas pode ser considerado o mais original, é graças à seção do caminho. De fato, é no caminho que ele distribui mais ensinamentos exclusivos do seu evangelho, principalmente as parábolas.

No ano litúrgico corrente, este é o penúltimo domingo em que o evangelho é tirado da seção do caminho. Isso quer dizer que o texto lido neste dia já pertence à parte final da respectiva seção narrativa e faz parte dos ensinamentos conclusivos. Logo, possui muita importância para a comunidade, além de grande riqueza teológica e estética, apesar de ser uma parábola simples, do ponto de vista narrativo. Por sinal, o tema desta parábola chega a dividir opiniões entre os exegetas. Alguns afirmam categoricamente que a temática tratada é a oração, simplesmente. Outros a vêem sob uma perspectiva mais ampla, identificando nela uma diversidade de temas além da oração, tais como: a justificação; a relação entre judeus e pagãos; a relação com Deus, com o próximo e consigo mesmo na vida cristã; a ética cristã; a humildade e o orgulho, etc. A segunda posição parece mais convincente. A parábola trata de praticamente todas as dimensões da vida cristã, dentre as quais está a oração, obviamente. Isso a torna ainda mais rica. Ao recordá-la, o evangelista visava corrigir problemas da sua comunidade e prevenir comunidades futuras sobre o comportamento cristão.

O texto possui dois versículos introdutórios (vv. 9-10), que reproduzem falas do narrador e de Jesus, respectivamente. Da compreensão dos dois, depende a compreensão do inteiro texto. Eis o primeiro versículo: «Jesus contou esta parábola para alguns que confiavam na sua própria justiça e desprezavam os outros:» (v. 9). Esse versículo é extremamente importante, sobretudo no que diz respeito aos destinatários da parábola. Ora, é muito comum lermos nos evangelhos, incluindo o de Lucas, fórmulas introdutórias aos ensinamentos de Jesus como “Jesus contou aos discípulos”, “Jesus disse às multidões”, “Jesus contou aos fariseus”, etc. Diante disso, percebe-se o quanto a maneira como Lucas introduz a parábola de hoje chega a ser surpreendente, sobretudo pela abrangência. Como se vê, ela não é dirigida a um grupo específico, mas a todas as pessoas que se comportam da maneira descrita, ou seja, «a quem confia na própria justiça e despreza os outros», independentemente do grupo religioso e da condição social de pertença. Isso indica também a perenidade do seu ensinamento: aplica-se a todas as épocas, pois pessoas assim sempre existirão.

Confiar na própria justiça e desprezar os outros são duas atitudes incompatíveis com o seguimento de Jesus, por isso, inaceitáveis na comunidade cristã. São atitudes que devem ser combatidas e denunciadas. Obviamente, o evangelista se preocupava com o presente das suas comunidades e o futuro de todo o cristianismo. Mais do que o desânimo, consequência das perseguições externas, tendência combatida pelo evangelista com a parábola do juiz injusto e a viúva insistente (Lc 18,1-8), lida no domingo passado, o que mais ameaçava a vida interna das comunidades era a arrogância de alguns membros que se consideravam justos e irrepreensíveis, pessoas que se achavam perfeitas e santas, reproduzindo um dos comportamentos que Jesus mais tinha denunciado em seu ministério. E a primeira tendência de quem se considera perfeito é desprezar quem não se comporta da mesma maneira. O desprezo pelos outros, portanto, é consequência do sentir-se justo e, obviamente, de uma imagem errada de Deus. Com certeza, ainda hoje, há muitas pessoas nas comunidades e movimentos cristãos com essa tendência, e é exatamente isso que faz desta parábola uma das mais atuais de todo o Novo Testamento.

O segundo versículo introdutório também é muito importante, pois já nos insere no conteúdo mesmo da parábola, com a apresentação dos personagens e do cenário: «Dois homens subiram ao Templo para rezar: um era fariseu, o outro cobrador de impostos» (v. 10). Considerando a primeira parte do versículo (v. 10a), não vemos nada de surpreendente: sendo o templo a casa de oração, por excelência, era normal que dois homens fossem até lá para rezar. Aqui, o verbo subir (em grego: άναβαίνω – anabaíno) tem o mesmo sentido que dirigir-se ou entrar; é o verbo que os judeus empregavam com orgulho para expressar a ida ou a entrada, tanto no Templo quanto na cidade de Jerusalém. Ora, estando Deus nos céus, ou seja, nas alturas, como imaginavam os judeus, o encontro com ele exigia do ser humano um movimento para cima, e a localização elevada da cidade de Jerusalém e do templo, sobretudo, favoreciam esse movimento. A surpresa surge na apresentação dos personagens. Um fariseu e um cobrador de impostos constituíam os dois polos opostos da sociedade palestinense da época de Jesus, principalmente no âmbito religioso. Como se sabe, é típico de Lucas apresentar dois personagens juntos, mas com características diferentes e até antagônicas, fazendo uso da técnica retórica do paralelismo antitético. Ele faz isso tanto com personagens reais quanto fictícios. Eis alguns exemplos: Zacarias e Maria (1,5-38), Marta e Maria (10,38-42), o filho mais novo e o filho mais velho (15,11-32), Lázaro e o rico avarento (16,19-31), a viúva insistente e o juiz injusto (18,1-8), e o fariseu e o cobrador de impostos.

Os fariseus eram símbolo de religiosidade e vida impecável. Embora os evangelhos apresentem eles com traços bastante negativos, a ponto de os associarem de imediato à hipocrisia, na verdade eles constituíam a classe das pessoas mais respeitadas na época. Pela observância minuciosa da Lei e pelas boas obras que cumpriam, eles gozavam da simpatia popular, principalmente pela vida exemplar que levavam. Já os cobradores de impostos, pelo contrário, gozavam de péssima reputação, apesar do bem-estar econômico que a profissão lhes proporcionava. Conhecidos também como publicanos, eles eram colaboradores diretos do poder opressor, na época, o império romano. Além das altas taxas exigidas pelo império, eles ainda cobravam grandes proporções a mais, enriquecendo ilicitamente às custas do povo mais pobre, principalmente; além do salário, ainda retinham para si o que cobravam em excesso. Por isso, eram odiados pelo povo e totalmente excluídos da religião, pois a condição de servidores do poder dominante não permitia que observassem a Lei de Deus. A oração do fariseu, no versículo seguinte, deixa bastante clara a má reputação do cobrador de impostos: é o último dos últimos, em termos de prestígio social e religioso, considerado pior até do que «os ladrões, desonestos e adúlteros» (v. 11), mesmo bem posicionados economicamente. Portanto, Jesus escolheu, aqui, um personagem símbolo de religiosidade (o fariseu) e outro símbolo de degradação moral (o cobrador de impostos) para contrapô-los e alertar os seus discípulos de todos os tempos sobre o perigo da soberba, orgulho e prepotência, sobretudo quando estas posturas são motivadas pela religião.

A parábola não se limita a dizer que os dois homens foram ao templo para rezar, mas mostra também o conteúdo da oração deles e a maneira de rezar de cada um. E é esse conteúdo o que vai determinar o desfecho da história. Primeiro, é descrita a oração do fariseu: «O fariseu, de pé, rezava assim em seu íntimo: “Ó Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros homens, ladrões, desonestos, adúlteros, nem como este cobrador de impostos» (v. 11). Como se vê, a oração do fariseu é toda voltada a si mesmo; ele não agradece pelo que Deus faz em sua vida, mas pelo que ele mesmo é e faz, considerando-se superior e demonstrando total desprezo pelas demais pessoas. Sua oração é um louvor a si próprio. Ao invés de confrontar sua vida com o projeto de Deus, ele a compara à vida dos outros. Na verdade, ele considera Deus um mero contador, a quem apresenta as boas obras e, por isso, deve receber créditos em troca. Para provar que era um homem “acima da média”, ele elenca suas vantagens: «Eu jejuo duas vezes por semana, e dou o dízimo de toda a minha renda» (v. 12). Ora, a Lei exigia o jejum apenas uma vez ao ano, no chamado “dia da expiação” (Lv 16,29); os judeus mais devotos, no entanto, como muitos fariseus, jejuavam duas vezes por semana, nas segundas e quintas-feiras, em alusão à subida e à descida de Moisés ao monte para receber a Lei, imaginando que, com esta prática, teriam mais vantagens diante de Deus. Quanto ao dízimo, a Lei exigia apenas dos produtos principais: do trigo, do vinho, do azeite e das primeiras crias do rebanho (Dt 14,22-27), enquanto este fariseu dava o dízimo de tudo. Em suma, a oração do fariseu não passa de uma prestação de contas a Deus.

A descrição da oração do cobrador de impostos, pelo contrário, revela a postura de uma pessoa sincera, que tem consciência da sua condição de pecador: «O cobrador de impostos, porém, ficou à distância e nem se atrevia a levantar os olhos para o céu; mas batia no peito dizendo: “Meu Deus, tem piedade de mim que sou pecador!”» (v. 13). Antes de tudo, vale ressaltar a coragem deste cobrador de impostos; ora, como pecador público, ele foi ousado ao entrar no templo, pois sabia que seria observado pelas pessoas e até julgado e escarnecido, como foi pelo fariseu em sua oração: «não sou como este cobrador de impostos» (v. 11). O reconhecimento da condição de pecador é evidenciado pela postura e as palavras do cobrador de impostos. Ele ficou à distância e sem coragem de levantar os olhos para o céu, e batia no peito, em sinal de penitência e arrependimento; suas as palavras expressam a oração dos humildes de Deus – «Meu Deus, tem piedade de mim que sou pecador!» –, uma fórmula bastante repetida nos salmos penitenciais (Sl 25,11; 51,13; etc). Somente quem é humilde reconhece a necessidade de Deus em sua vida. Ao reconhecer essa necessidade, o publicano abre espaço para Deus agir em sua e vida e faz experiência da sua misericórdia.

A parábola é concluída com uma declaração solene e surpreendente de Jesus: “Eu vos digo: este último voltou para casa justificado, o outro não. Pois quem se eleva será humilhado, e que se humilha será elevado” (v. 14). A fórmula solene “eu vos digo” (em grego: λέγω ύμιν – lêgô himin) é sempre a introduz ou conclusão de um ensinamento importante e definitivo, algo irrevogável, como é o desfecho desta parábola. Isso significa que se trata de algo essencial para a comunidade cristã. A surpresa é que o cobrador de impostos foi justificado e o fariseu não. Ser justificado significa ser reconciliado por Deus e admitido à sua convivência, ao seu Reino e à salvação; e isso não se dá por méritos pessoais, mas pela gratuidade do amor de Deus. Voltado para si e para os seus próprios méritos, o fariseu não se abriu à misericórdia de Deus, por isso, não recebeu justiça, ou seja, não foi justificado. O cobrador de impostos, pelo contrário, reconhecendo sua condição de pecador, suplicou o perdão de Deus e recebeu justiça. E a justiça de Deus, que não é retributiva, está à disposição de quem necessita e a busca de coração sincero. O fariseu considerava essa justiça um direito seu, diante das boas obras que cumpria. A frase final é um provérbio, já usado por Lucas em outras duas ocasiões (Lc 14,11; 18,14), que revela a lógica contraditória do Reino e do Evangelho; expressa uma visão de mundo tratada por Lucas desde o início do seu evangelho, ainda no Magnificat: «dispersou os orgulhosos, aos humildes exaltou» (Lc 1,51b.52b). É a lógica do Reino de Deus, que prevê uma reviravolta na história.

Para concluir, é importante recordar alguns elementos. Jesus não declarou que o fariseu é uma má pessoa, tampouco reprovou sua fidelidade à Lei; porém, condenou sua postura egoísta, a sua autossuficiência e o seu desprezo pelos demais como consequência de uma visão distorcida de Deus. Sendo o fariseu a imagem mais expressiva de uma pessoa religiosa na época, Jesus quis alertar os seus seguidores, de outrora e de sempre, que as pessoas religiosas demais são as que mais tendem a distorcer a imagem de Deus. E a distorção da imagem de Deus pode levar as pessoas ao autoritarismo fundamentalista, sentindo-se autorizadas até a praticarem violência em nome de Deus. Jesus também não apresentou o cobrador de impostos como um exemplo de comportamento para os seus discípulos imitarem; não resta dúvidas, inclusive, de que Jesus condenava a exploração dos cobradores de impostos e a contribuição que davam ao sistema opressor, o império romano; Jesus apenas mostrou que a sua atitude humilde, reconhecendo seus limites e sua condição de pecador, foi determinante para ele receber a justiça de Deus.

O ensinamento geral da parábola, portanto, é uma denúncia clara a qualquer pessoa que se sente justa e despreza os demais. Há pessoas prepotentes em todos os lugares; porém, o lugar mais inadequado para estas pessoas estarem é a comunidade cristã. Enfim, o texto ensina que o excesso de religião pode fazer mal. A situação atual do Brasil e do mundo demonstra isso.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, outubro 18, 2025

REFLEXÃO PARA O 29º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 18,1-8 (ANO C)


Na liturgia deste vigésimo nono domingo do tempo comum, retoma-se a leitura semi-contínua do Evangelho de Lucas, interrompida domingo passado, por ocasião da Solenidade da Bem-aventurada Virgem Maria da Conceição Aparecida. Saltou-se, portanto, a liturgia do vigésimo oitavo domingo, interrompendo-se a leitura do evangelho vigente, retomada neste dia, cuja passagem proposta é Lc 18,1-8. Trata-se da parábola do juiz iníquo e a viúva insistente ou simplesmente do juiz e da viúva. Essa é mais uma parábola exclusiva de Lucas, ou seja, que não se encontra em outros evangelhos. O contexto literário do referido texto continua sendo o caminho de Jesus com seus discípulos em direção à cidade de Jerusalém, cujo ápice será a paixão, morte e ressurreição. Com tem sido afirmado ao longo dos últimos domingos, o caminho constitui a seção narrativa mais longa do Evangelho de Lucas, sendo considerada também a mais importante, pois é a seção na qual o evangelista distribuiu seus conteúdos mais originais, tendo em vista a formação dos discípulos e discípulas de todos os tempos. Por isso, é importante recordar que, mais do que um percurso físico, o caminho no Evangelho de Lucas é um programa formativo, um itinerário teológico e catequético, ao mesmo tempo em que funciona como imagem ideal da Igreja: uma comunidade dinâmica, aberta e missionária, disposta a levar o Evangelho do Reino a todos os lugares, mesmo correndo riscos.

É durante o caminho que o evangelista apresenta os principais ensinamentos de Jesus aos discípulos e discípulas, sendo até mesmo repetitivo e insistente, conforme a necessidade e a importância da mensagem. E a parábola lida hoje apresenta temas que parecem mesmo repetitivos no conjunto da catequese lucana: a necessidade da oração contínua, juntamente com a busca pela justiça e a perseverança na fé. Ela está localizada numa posição estratégica, entre um pequeno discurso escatológico (Lc 17,20-37) e a parábola do fariseu e o publicano (Lc 18,9-14). É inegável, portanto, que esta parábola de hoje possui uma riqueza extraordinária, mas carrega algumas dificuldades de interpretação, por isso ela tem sido pouco considerada nos estudos e reflexões, passando quase despercebida no amplo conjunto das parábolas exclusivas de Lucas. Inclusive, há estudiosos que, equivocadamente, a vêem como mera introdução à conhecida parábola do fariseu e o publicano, que também trata da oração, e que será lida na liturgia do próximo domingo. O certo é que a beleza e a clareza dessa última têm contribuído para o quase ofuscamento da parábola de hoje, tão rica de sentido, mas de difícil interpretação. O primeiro passo para compreendê-la bem é considerar o contexto histórico das comunidades do evangelista, as primeiras destinatárias deste ensinamento.

Ora, entre os anos 80 e 90 do primeiro século, período da redação do Evangelho segundo Lucas, quando Domiciano era o imperador romano, as perseguições aos cristãos já estavam em plena evidência, o que gerava um clima de desânimo nas comunidades. Daí, a necessidade de uma palavra de encorajamento e estímulo à perseverança diante das hostilidades. Além da violência, os cristãos eram vítimas de preconceitos e marginalização. Sendo rejeitados pela sinagoga e sem espaço oficial de culto, eles se reuniam apenas nas casas, dando ainda mais a impressão de marginalidade. Continuavam sendo tratados como judeus, mas como dissidentes, adeptos de uma nova seita. Por isso, eram vistos com desconfiança e todo o aparato administrativo do império conspirava contra eles; inclusive, nos tribunais as causas sempre eram julgadas e resolvidas em desfavor deles. E tudo isso gerava desânimo nas comunidades. Soma-se a isso, ainda, o fato de grande parte dos membros das comunidades ligadas ao evangelista Lucas serem de origem pagã e, por isso, não tinham hábitos de oração. Em suas práticas religiosas anteriores, a relação com o divino se dava basicamente por meio de ritos e sacrifícios, por isso tinham dificuldade de assimilar a necessidade da oração constante. E esse foi um motivo a mais para o evangelista Lucas insistir tanto com esse tema. Na verdade, também entre os judeus o ritualismo se tinha sobreposto à verdadeira espiritualidade, o que não passou despercebido por Jesus.

Feita a devida contextualização, olhemos para o texto, cujo primeiro versículo funciona como introdução e síntese, ao mesmo tempo: «Jesus contou aos discípulos uma parábola, para mostrar-lhes a necessidade de rezar sempre, e nunca desistir, dizendo:» (v. 1). Quando o evangelista introduz um ensinamento de Jesus dizendo que é dirigido aos discípulos, é sinal de grande importância e valor; significa que se trata de algo essencial para o discipulado de todos os tempos, como é a mensagem esta parábola de hoje. De fato, a prática da oração contínua, juntamente com a luta por justiça e a perseverança na fé são dimensões que não podem ser esquecidas na comunidade. Obviamente, o evangelista não trata de uma oração ininterrupta com a repetição contínua de uma fórmula, mas de uma oração que caracterize a própria existência. de fato, “rezar sempre” não significa simplesmente dizer orações. É, acima de tudo, um convite para os cristãos ritmarem as suas vidas pela oração, ou seja, pela intimidade com Deus. A oração contínua dos cristãos visa sempre a chegada do Reino, como Jesus ensinou no Pai nosso (Lc 11,2), que é essencialmente um reino de justiça. Por isso, o convite à oração é completado pela demonstração da sua finalidade: “nunca desistir”, o que poderia ser mais bem traduzido por “não desanimar” ou “não baixar a cabeça”, considerando o significado do verbo empregado na língua original do texto (em grego: ἐγκακέω – enkakêo). Por isso, podemos compreender estas primeiras palavras de Jesus como um convite à oração associado à não resignação diante das injustiças, como vai mostrar a sequência do texto.

Do versículo introdutório, passamos ao conteúdo da parábola, propriamente. Embora o tema anunciado pelo narrador tenha sido apenas a oração, logo se percebe que esse compreende também a busca por justiça. Como se vê, é uma parábola tipicamente lucana, a começar pela construção dos personagens: um juiz injusto e uma viúva insistente. É característica de Lucas apresentar dois personagens em paralelo com grandes diferenças entre si, sobretudo nas parábolas, com o objetivo de levar o leitor a tomar partido por um lado, identificando-se com um dos personagens, como por exemplo: o pobre Lázaro e o rico avarento (Lc 16,19-31), o fariseu e o publicano (cf. Lc 18,9-14), e tantas outras. Eis, portanto, o primeiro personagem: «Numa cidade havia um juiz que não temia a Deus, e não respeitava homem algum» (v. 2). A tradição bíblica, desde o Antigo Testamento, apresenta a classe da magistratura com traços bastante negativos, de modo que essa descrição do juiz da parábola é uma verdadeira síntese: a falta de temor a Deus e de respeito ao próximo; isso representa o máximo de prepotência e injustiça. Ora, toda a Lei, os Profetas e até o ensinamento de Jesus visam ajudar cada pessoa a viver bem com Deus e com o próximo; logo, ao ser descrito dessa maneira, esse juiz representa um contraexemplo em todos os sentidos.

A experiência de Israel em sua história mostra a atuação de juízes corruptos e adeptos ao suborno. Por isso, um dos alvos constantes das denúncias dos profetas foi a figura do juiz ou “administrador da justiça” (Is 10,1; Am 5,7; etc). Além de ser uma crítica à magistratura, essa descrição também sintetiza o oposto de como deve ser a pessoa cristã. Temor a Deus não significa medo, mas reverência, é o reconhecimento da sua grandeza e do seu amor; o respeito ao próximo é o reconhecimento da dignidade do outro, do valor que cada pessoa possui por ser imagem e semelhança do Criador, independentemente das características individuais de cada um. Os traços descritivos do juiz, portanto, são de quem não está aberto ao advento do Reino de Deus e, consequentemente, não pode fazer parte da comunidade cristã, por mais inclusiva que essa comunidade seja.

Paralelo ao juiz, o evangelista apresenta o segundo personagem da parábola, com características completamente opostas ao primeiro: «Na mesma cidade havia uma viúva, que vinha à procura do juiz, pedindo: “Fazei-me justiça contra o meu adversário!”» (v. 3). Se o primeiro personagem é um homem poderoso e prepotente, um juiz, o segundo é uma mulher indefesa e injustiçada. Daí o paradoxo entre os dois personagens. A imagem da viúva, na tradição bíblica, é uma das expressões de pessoa indefesa, necessitada e vulnerável; por consequência, se torna imagem da pessoa predileta por Deus. Inclusive, a Lei hebraica previa proteção especial às viúvas (Ex 22,21-23), mas nem sempre isso era bem observado. Entre o Antigo e o Novo Testamento, não faltam críticas e lamentos pelos direitos usurpados das viúvas. Do Novo Testamento, Lucas é o autor que mais dá atenção a essa categoria social, inclusive, essa atenção às viúvas contribuiu para o seu Evangelho ser considerado o “evangelho das mulheres e dos pobres”.

Das 26 vezes em que aparece a palavra viúva (em grego: χήρα – kêra) no Novo Testamento, doze delas estão na obra lucana (Lc-At). Em Atos dos Apóstolos, por exemplo, ele apresenta o desprezo pelas viúvas como a primeira causa de divisão e desagregação da comunidade de Jerusalém. Logo, sem atenção à causa das viúvas, como síntese de todas as pessoas vulneráveis, não há vida cristã autêntica. Ora, o estado de viuvez em si já é motivo de cuidados e preocupação, o que exige bastante proteção; tudo isso aumenta ainda mais quando a viúva tem um adversário (em grego: αντίδικος – antídikos) que ameaça constantemente os seus poucos direitos. A cena descrita na parábola retrata bem uma situação muito comum no antigo Israel. Como as mulheres se casavam muito mais novas do que os homens, geralmente os maridos morriam antes; por isso, havia muitas viúvas em Israel. Isso explica a preocupação constante com essa categoria em toda a literatura bíblica. Geralmente, as viúvas tinham suas heranças roubadas e, ao recorrer aos tribunais, tinham sempre o desfecho da causa em seu desfavor. Mesmo que o evangelista não especifique a causa do pleito da viúva, os casos mais comuns tinham a ver com herança.

Como se trata de uma parábola, o que significa uma comparação, o objetivo do evangelista é descrever, de modo comparado, a situação dos cristãos e cristãs da sua época. Assim, o juiz da parábola é a imagem do império romano com todo o seu aparato ideológico e militar que nega vida e dignidade aos mais pobres, mas também os sistemas dominantes de todas as épocas. A viúva, por sua vez, é a imagem das comunidades cristãs da época do evangelista, especialmente, que eram vítimas de injustiças e perseguições, sem nenhum direito reconhecido, sem nenhum amparo, mesmo que tivessem uma Lei favorável a elas. Essa imagem se aplica também às comunidades de todos os tempos, bem como às pessoas pobres e marginalizadas em todas as épocas. Também as constituições modernas garantem direitos aos pobres, como acesso às necessidades básicas, como moradia, saúde, educação, trabalho, mas na prática esses direitos são negados, quase sempre. Por isso, é importante a luta, o “não baixar a cabeça”, “não desanimar”. Para haver transformação é imprescindível a luta perseverante, com a oração, obviamente. O Reino de Deus não será instaurado a partir dos sistemas de poder estabelecidos no mundo, mas a partir da luta insistente dos cristãos e cristãs que rezam e buscam a justiça constantemente.

E o desfecho da parábola mostra que vale a pena lutar, mesmo quando tudo parece conspirar contra: «Durante muito tempo, o juiz se recusou. Por fim, ele pensou: “Eu não temo a Deus, e não respeito homem algum. Mas esta viúva já me está aborrecendo. Vou fazer-lhe justiça, para que ela não venha a agredir-me!”» (vv. 4-5). A insistência da viúva é uma demonstração de que não pode haver espírito de conformismo e nem resignação na comunidade cristã; essa não pode assistir passivamente às injustiças e negação da vida. Porém, não pode recorrer à violência. A construção do Reino exige paciência e coragem para lutar sempre, sem desanimar. As situações adversas não são meras fatalidades do destino, e muito menos vontade de Deus. Tudo o que é injusto deve ser mudado e combatido pelos cristãos e cristãs. Porém, as mudanças não acontecem com a rapidez desejada. Por isso, é necessário perseverança e paciência. O medo de agressão do juiz, obviamente, deve-se à desmoralização pública. É praticamente inimaginável a agressão física da parte de uma pobre viúva a um juiz. Mas ele teme a força da perseverança dela, como todos os sistemas injustos temem o despertar e a organização do povo diante de suas atrocidades.

A explicação final que Jesus dá, de acordo com o evangelista, é o que dá margens a interpretações equivocadas da parábola, tornando-a difícil, com grandes riscos de distorção, como alertamos na introdução: «E o Senhor acrescentou: “Escutai o que diz este juiz injusto. E Deus, não fará justiça aos seus escolhidos, que dia e noite gritam por ele? Será que vai fazê-los esperar? Eu vos digo que Deus lhes fará justiça bem depressa”» (v. 6-8a). O equívoco que deve ser evitado é comparar o juiz a Deus. Ora, os atributos do juiz são o oposto de Deus, o qual é descrito por Lucas como um Pai cheio de amor e compaixão pela humanidade (Lc 15). De fato, sobretudo, a partir do Evangelho de Lucas, uma das poucas certezas que podemos ter na vida é a de que Deus é justo e a sua justiça nos é favorável, pois é transformada em amor humanizante e misericórdia. Porém, essa certeza não deve ser motivo de conformismo, e sim um incentivo para os cristãos lutarem sem cessar, rezando, trabalhando e denunciando, para que os sistemas injustos deste mundo sejam transformados. A palavra mais repetida no texto é justiça: aparece quatro vezes (vv. 3.5.7.8). Assim, Jesus ensina, através do evangelista, que a essência de ser cristão é empenhar-se por justiça.

Na conclusão, temos uma chamada de atenção sobre a necessidade da fé perseverante como algo imprescindível para as comunidades manterem viva a luta por justiça: «Mas o Filho do homem, quando vier, será que ainda vai encontrar fé sobre a terra?» (v. 8). Se trata de uma pergunta retórica que visa chamar a atenção dos discípulos de todos os tempos. A vinda do Filho do Homem é uma referência à parusia, quer dizer, ao final dos tempos, e significa que a fé é necessária durante todo o tempo, durante toda a vida. É necessário que, até lá, os cristãos permaneçam em oração sem cessar, lembrando, contudo, que a oração, para Jesus e para Lucas, não significa dizer palavras, mas estar em comunhão com Deus, fazendo no mundo aquilo que condiz com a sua vontade. E vontade de Deus é sempre o bem da humanidade, que todos vivam como seus filhos e filhas, ou seja, como irmãos e irmãs. A fé, aqui, portanto, é a consciência e a atitude dos cristãs e cristãs em manterem-se constantemente em oração e na busca por justiça.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, outubro 11, 2025

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA BEM-AVENTURADA VIRGEM MARIA DA CONCEIÇÃO APARECIDA – JOÃO 2,1-11


Neste ano, a liturgia do vigésimo oitavo domingo do tempo comum é substituto pela Solenidade da Bem-aventurada Virgem Maria da Conceição Aparecida, padroeira do Brasil, devido à coincidência com o dia doze de outubro. O evangelho desta solenidade é sempre o mesmo: Jo 2,1-11. Trata-se do episódio conhecido como as “bodas de Caná”, um relato exclusivo de João, colocado logo no início do seu Evangelho, como marco inaugural da missão de Jesus, quando ele realiza o primeiro sinal, tendo a sua mãe como testemunha privilegiada, além da presença dos discípulos. De todos os evangelhos, o de João é aquele que melhor introduz a vida pública. E o faz por meio de sequência narrativa denominada pelos estudiosos de “semana inaugural” (Jo 1,19–2,11). Essa semana começa com o envio de uma comitiva pelas autoridades religiosas de Jerusalém para fiscalizar a atividade de João, o batizador (Jo 1,19-28), e concluída com o episódio das bodas de Caná, texto empregado na liturgia de hoje. Sem dúvidas, esse episódio é um dos mais populares de toda a Bíblia. E deve ser sempre bem contextualizado, sobretudo quando empregado num festa mariana. Por isso, começamos a reflexão com a devida contextualização.

Embora simples do ponto de vista narrativo, pois trata-se de uma história com trama, cenário e personagens bem definidos, o texto apresenta uma grande complexidade teológica. Por isso, preferiu-se, ao longo dos séculos, uma interpretação quase literal, limitada a fundamentar uma suposta intercessão de Maria e, assim, fomentar a devoção mariana, sem explorar a riqueza teológica empregada pelo evangelista. Por sinal, o nome de Maria Sequer aparece no texto. A pessoa que interage com Jesus é designada apenas como sua mãe, por tratar-se de uma figura representativa ou personalidade corporativa. Tem sido grande, portanto, o esforço da exegese das últimas décadas para restituir ao texto o seu valor cristológico, praticamente ofuscado pela leitura devocionista aplicada ao longo dos séculos. O primeiro passo para isso é situar o texto no seu devido contexto, como já acenado acima. Ora, o evangelista João introduz a vida pública de Jesus com uma série de episódios distribuídos ao longo de uma semana, chamada pelos estudiosos de “semana inaugural”, como acenado anteriormente. E o ponto alto dessa semana é exatamente o episódio das bodas de Caná, que funciona como introdução e porta de entrada para todo o Evangelho. Tudo o que será desenvolvido ao longo do Quarto Evangelho, portanto, será desdobramento desse episódio. Inclusive, esse é o primeiro episódio que tem Jesus como o real protagonista. Até então, os protagonistas tinham sido João e alguns discípulos – André, que era discípulo de João, seu irmão Simão Pedro, Filipe e Natanael.

O texto começa com um dado importante, infelizmente, omitido pela tradução litúrgica: a expressão “No terceiro dia”, substituída pela genérica e desnecessária fórmula de introdução “Naquele tempo”. Embora já se trate do dia conclusivo da semana, o evangelista omite alguns dias de propósito, para que este episódio se realize no “terceiro dia”. Ora, o último episódio narrado tinha sido o encontro de Jesus com Filipe e Natanael (Jo 1,43-51), que correspondia ao quarto dia da semana; as bodas de Caná, portanto, acontecem no “terceiro dia” após esse episódio. Mais do que um dado cronológico, a expressão “terceiro dia” é um indicativo teológico: significa uma manifestação especial de Deus, uma intervenção divina. De imediato, esta expressão leva o leitor a pensar na ressurreição de Jesus, o maior dos fatos acontecidos no “terceiro dia”, conforme o conjunto das Escrituras. No entanto, há diversos episódios importantes da Bíblia que também aconteceram no “terceiro dia”. De fato, diz a Bíblia que foi no “terceiro dia” que Abraão subiu à montanha para sacrificar Isaac, provando a sua fé (Gn 22,4), e foi no “terceiro dia” que Deus manifestou a sua glória no Sinai e entregou a Lei a Moisés (Ex 19,11ss). O maior de todos, como acenado anteriormente, obviamente, é a ressurreição de Jesus, a intervenção definitiva de Deus. Ora, ao apresentar o primeiro sinal de Jesus ao “terceiro dia”, João sinaliza que toda a sua vida será manifestação e presença de Deus na história, cujo ápice será a ressurreição. Portanto, “terceiro dia” é uma expressão teológica que indica o agir de Deus. Tudo isso ajuda a compreender a importância do episódio das bodas de Caná para o conjunto do Quarto Evangelho.

Eis, então, que no “terceiro dia”: «houve um casamento em Caná da Galileia. A Mãe de Jesus estava presente» (v. 1). As festas de casamento, na cultura semita, eram esperadas com muita ansiedade. Era a festa dos sonhos; normalmente, duravam uma semana, mas a depender das condições dos noivos, poderia se estender por até duas semanas. Em Israel, Além do seu sentido social, o matrimônio servia como símbolo da relação entre Deus e o seu povo, desde os tempos do profeta Oséias (século VIII a.C.). Com essa festa, portanto, o evangelista quer mostrar a situação da aliança, como o povo de Israel estava se relacionando com o seu Deus, e a necessidade urgente de uma intervenção, com uma verdadeira mudança de rumo. Como se vê, a Mãe de Jesus não é mencionada pelo seu nome próprio nesse episódio, porque ela é uma personalidade corporativa, quer dizer, representa uma coletividade, ou seja, uma comunidade, e não apenas a pessoa individual de Maria, como já na introdução. Quando os profetas denunciavam as injustiças e a corrupção reinantes em Israel, mencionavam também um “resto” fiel que veria a realização das promessas de Deus. Portanto, a Mãe de Jesus é, nesse relato, a imagem do resto fiel de Israel que nunca se distanciou de Deus. Por isso, ela já “estava presente” no casamento, porque fazia parte daquela comunidade.

Ao contrário da Mãe que já “estava presente”, o evangelista diz que «Jesus e os discípulos foram convidados para o casamento» (v. 2). Embora sutilmente, o evangelista faz uma distinção: Jesus e os discípulos foram à festa como convidados, mas não faziam parte. Ao longo de todo o seu Evangelho, João mostrará como Israel não aceitou Jesus, tratando-o como um estranho e até como inimigo, inclusive no prólogo ele já tinha antecipado: «Veio para os seus, mas os seus não o acolheram» (Jo 1,11). Porém, para conhecer as reais necessidades e problemas de um povo, é necessário estar inserido e fazer parte da realidade; tampouco basta conhecer as necessidades e os problemas; é preciso tomar iniciativa e buscar soluções, como fez a Mãe: «Como o vinho veio a faltar, a Mãe de Jesus lhe disse: “Eles não têm mais vinho”» (v. 3). A Mãe de Jesus, como imagem do resto fiel de Israel, é a mais legítima conhecedora das carências e falhas na relação de seu povo com Deus, por isso, ela constata uma triste realidade: a falta de vinho. É importante recordar, como mostra claramente o texto, que ela não faz um pedido a Jesus, como insinuam as interpretações mais devocionistas. Ela constata uma situação e faz uma denúncia: a falta de vinho nessa festa de casamento é, na verdade, a falta de amor e de alegria na antiga aliança. A Mãe constata que Israel falhou em sua relação com Deus e, por isso, a aliança fracassou. O vinho era essencial numa festa e, na Bíblia, é sinal de alegria, amor e felicidade.

A Mãe de Jesus é a primeira a perceber a esterilidade e a superficialidade da relação de Israel com Deus. Ora, o povo de Israel imaginava que entrava em comunhão com Deus através de sacrifícios, ritos de purificação, jejuns e outros ritos, independentemente da prática da justiça e da conduta ética, sem qualquer compromisso nas relações com o próximo. Praticava-se a religião do mérito com muitas ofertas, sacrifícios e pouco amor. Foi isso que a Mãe de Jesus constatou ao lhe dizer que não havia mais vinho na festa. Não havia mais amor e alegria na maneira do povo relacionar-se com Deus. Ela percebeu também que somente Jesus poderia contornar aquela situação, por isso lhe comunicou a carência. Ela sabia que a proposta de vida que Jesus veio oferecer ao mundo, fundamentada no amor, era a única saída para Israel reencontrar-se consigo mesmo e com Deus, e continua sendo, para toda a humanidade. Como a Mãe, nesse episódio, representa toda a comunidade do resto fiel de Israel, a sua relação com Jesus carrega um certo formalismo, como se vê na resposta de Jesus: «Jesus respondeu-lhe: “Mulher, por que dizes isto a mim? Minha hora ainda não chegou”» (v. 4). Jesus não a chama de Mãe, mas apenas de mulher, e esclarece que não depende somente dele para contornar aquela situação; de fato, ao dizer que a sua hora ainda não chegou, ele confessa depender do Pai, sobretudo, pois foi aquele que o enviou. Na dinâmica do Quarto Evangelho, a hora de Jesus é preparada e aguardada com muita expectativa. Definitivamente, ela chegará na cruz. Mas, assim como a cruz não foi um ato isolado, e sim consequência de uma vida inteiramente doada, também a “hora” será construída paulatinamente, à medida em que serão encontradas situações necessitadas de transformação.

Mesmo sem receber uma resposta positiva, a Mãe confia na providência, como modelo de crente. Conhecedora da situação, ela vê como urgente a intervenção de Deus, através de Jesus; por isso, ordenou aos que estavam servindo: «Fazei o que ele vos disser» (v. 5). Ora, a antiga aliança foi concluída com uma resposta solene do povo a Moisés: «Sim, nós faremos tudo o que Iahweh disse!» (Ex 24,7). Porém, a história mostra que Israel falhou e não fez a vontade de Deus, ou seja, não fez o que “Iahweh disse”. Logo, a antiga aliança fracassou exatamente porque o povo não cumpriu essa promessa, e a Mãe de Jesus sabia disso; por isso a recomendação para fazer o que ele disser, de agora em diante, mediante Jesus, o revelador de Deus, por excelência. Com esta ordem – Fazei o que ele vos disser – a Mãe de Jesus reconhece não ser a dona da mensagem. De fato, ela reconhece que não tem o que dizer a não ser indicar a Boa Nova de Jesus como único caminho de vida. Implicitamente, ela confessa que não pode fazer nada. Não se trata de uma deficiência ou fraqueza dela; reconhecer que não tem o que dizer e nem o que fazer é, na verdade, a maior virtude da Mãe de Jesus. Essa deve ser a postura de todos os discípulos e discípulas em todos os tempos: apontar para o que Jesus diz, pois só ele tem palavras de vida, como também reconhecerá Pedro, mais tarde (Jo 6,68). Nesse caso, a Mãe se antecipa. Quando Jesus ainda não tinha manifestado qualquer sinal de glória e poder, ela acreditou que ele poderia fazer algo. Por isso, ela é modelo de crente e discípula.

A partir da constatação da Mãe e da sua ordem aos que estavam servindo, o evangelista prossegue denunciando ainda mais a esterilidade da religião de Israel: «Estavam seis talhas de pedra colocadas aí para a purificação que os judeus costumam fazer. Em cada uma delas cabiam mais ou menos cem litros» (v. 6). Essas talhas – jarros, potes – de pedra simbolizam a Lei; estavam vazias porque a Lei tinha chegado ao seu limite; através delas, os judeus faziam ritos de purificação, mas não se encontravam verdadeiramente com Deus. De fato, a expressão «a purificação que os judeus costumam fazer» indica toda a situação de carência em que Israel se encontrava. A necessidade de purificar-se indica que eles não se sentiam plenamente em comunhão com Deus, não bebiam do seu amor, que é o que realmente purifica o ser humano. A relação que a religião da Lei proporcionava era superficial e momentânea, não gerava laços de comunhão. A grande capacidade das talhas – cerca de cem litros cada uma – indica ainda mais a profundidade daquela decadência religiosa. Era necessária muita água para a purificação, e era uma purificação apenas exterior, não alcançava o coração. E mesmo assim as talhas estavam vazias. Isso quer dizer que nem mesmo aquela relação superficial estava garantida. Criava-se um abismo entre a religião ritualista e o Deus amoroso, que é Criador e Pai. A constatação desse abismo ficará mais evidente no episódio seguinte, quando o evangelista vai narrar a denúncia de Jesus ao templo de Jerusalém, com a expulsão dos cambistas e vendedores (Jo 2,13-22). Naquela ocasião, ao invés de purificar o templo, como apontam algumas interpretações, Jesus propõe a destruição completa. 

A continuação do episódio ressalta o quanto Jesus se solidariza com seu povo e intervém, após a constatação da Mãe. Ele percebe que nem tudo está perdido. Na figura da Mãe, ele vê um sinal de esperança no seu povo; por isso, toma a iniciativa, como conta o evangelista: «Jesus disse aos que estavam servindo: “Enchei as talhas de água”. Encheram-nas até a boca» (v. 7). Aqui, “Os que estavam servindo” (em grego: διάκονοι - diáconoi) são prefiguração da comunidade ideal de discípulos e discípulas que devem agir conforme “tudo o que Jesus disser”; são esses que devem preencher o vazio de amor em Israel e, posteriormente, em toda a humanidade, enchendo as talhas até a boca, quer dizer, servindo e amando sem medidas. O “encher as talhas até a boca” prefigura o amor até o fim de Jesus, que o evangelista vai recordar ao introduzir o lava-pés (Jo 13,1ss). Trata-se de um amor ilimitado, cuja prova é a doação da própria vida. E Jesus dá mais uma ordem: «“Agora tirai e levai ao mestre-sala”. E eles levaram» (v. 8). O mestre-sala era o mestre de cerimônias, responsável pela organização e coordenação da festa; era ele quem deveria vigiar e ficar atento se estava faltando alguma coisa. Porém, negligenciou completamente o seu papel, não percebeu que o vinho tinha acabado. Nesse episódio, ele representa os anciãos e sacerdotes – a classe dirigente de Israel – que tinham se distanciado de suas responsabilidades, não conheciam mais as reais necessidades do povo, estavam alheios à vida cotidiana das pessoas.

Distante da realidade, o mestre-sala não sabia sequer que o vinho tinha acabado, menos ainda de onde tinha surgido o vinho novo e bom: «O mestre-sala experimentou a água que se tinha transformado em vinho. Ele não sabia de onde vinha, mas os que estavam servindo sabiam, pois era eles que tinham tirado a água» (v. 9). Enquanto isso, os que estavam servindo, sabiam de tudo, pois fizeram o que Jesus ordenou, conforme aconselhou a Mãe. Isso mostra, mais uma vez, que eles e a Mãe são mesmo prefiguração da nova comunidade; a Mãe é o resto de Israel que encontra a nova humanidade disposta a pôr em prática as palavras de Jesus. Quanto ao mestre-sala, mesmo sem conhecer a origem do vinho novo, ele ficou surpreso com o sabor: «O mestre-sala chamou então o noivo e lhe disse: “Todo mundo serve primeiro o vinho melhor e, quando os convidados já estão embriagados, serve o vinho menos bom. Mas tu guardaste o vinho melhor até agora!”»(v. 10). Aqui, o evangelista ironiza e denuncia o distanciamento dos chefes de Israel em relação ao cotidiano das pessoas. Apesar de desconhecer a origem, o mestre-sala reconhece a qualidade do vinho, e se expressa até com surpresa, certamente por estar provando vinho bom pela primeira vez, tendo em vista que, enquanto representação das autoridades religiosas de Israel, nunca tinha experimentado vinho de verdade, mas apenas a água parada das talhas. O que ele tomava antes, imaginando ser vinho, não passava de água, pois sua relação com Deus não era movida pelo amor, e sim pelo medo. É por isso que ele se surpreende. Mais adiante, pela surpresa introduzida por Jesus no modo de se relacionar com Deus, as autoridades religiosas, aqui simbolizadas pelo mestre-sala, tramarão a sua morte. Acostumadas à água das talhas, elas não suportarão o vinho novo e abundante de Jesus. 

Pela primeira vez no relato, o evangelista faz referência ao noivo, quem deveria ser o verdadeiro protagonista da festa. Esse noivo é o próprio Deus; a missão de Jesus, fornecendo amor em abundância, representado pelo vinho novo, é reatar os laços entre o Deus, o noivo-esposo, e a humanidade inteira, a nova noiva-esposa. Como esse episódio é a verdadeira porta de entrada para todo o Evangelho de João, ele conclui-se afirmando que «este foi o início dos sinais de Jesus. Ele o realizou em Caná da Galileia e manifestou a sua glória e seus discípulos creram nele» (v. 11). Um sinal, como sabemos, não é um fim em si mesmo, mas aponta para uma realidade muito mais profunda. O sinal da mudança da água em vinho preconiza muitas transformações que Jesus irá fazer e propor ao longo de todo o evangelho. A principal transformação, a primeira e mais necessária, diz respeito à maneira de relacionar-se com Deus. De uma relação servil e ritualista, ele nos convida a uma relação de amor, cuja imagem mais visível e clara é a do matrimônio, pois pressupõe um amor recíproco, com liberdade e confiança. O vinho novo, de qualidade superior, representa essa nova relação. É nisso que a sua glória se manifesta, e o que fortalece a fé.

Para ser autenticamente discípulo e discípula é necessário ser como a Mãe e os servidores, ao mesmo tempo: perceber as reais necessidades do próximo, tomar iniciativas concretas e fazer tudo o que Jesus disser. A abundância do vinho, imagem do amor, depende unicamente da disposição de fazer o que Jesus disser. E fazer o que Jesus disser é o único caminho para o cristianismo recuperar sua originalidade e, consequentemente, sua força transformadora. Por isso, a recomendação da Mãe é sempre atual. E a Mãe sempre aparece em função do filho, o único que tem palavras de vida.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, outubro 04, 2025

REFLEXÃO PARA O 27º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 17,5-10 (ANO C)



O evangelho deste vigésimo sétimo domingo do Tempo Comum continua a nos situar no contexto do caminho de Jesus para Jerusalém, com os seus discípulos, que corresponde à seção narrativa mais longa do Evangelho de Lucas, compreendendo um total de dez capítulos (Lc 10–19). A exemplo do que acontece em todos os caminhos, também nesse, que é bastante longo, muitos obstáculos são encontrados, enfrentados e superados. Como esse caminho é, acima de tudo, um itinerário formativo para o discipulado de todos os tempos, os obstáculos se estendem também aos leitores e leitoras do Evangelho de Lucas ao longo da história, tanto no que diz respeito às exigências para o seguimento de Jesus, quanto à própria compreensão daquilo que o texto quer dizer. E o texto lido hoje – Lc 17,5-10 – pode ser considerado um destes obstáculos, tendo em vista as dificuldades de interpretação que o mesmo apresenta. Embora curto, pode ser divido claramente em duas partes: um ensinamento sobre a necessidade e importância da fé (vv. 5-6); e a pequena parábola do “servo inútil” (vv. 7-10).

Como sempre, a melhor maneira de começar a superar as dificuldades de compreensão de um texto é considerar o seu contexto. E começamos essa etapa da interpretação recordando que o capítulo dezessete de Lucas apresenta a retomada do ensinamento de Jesus sobre as exigências para o seu seguimento. Isso significa que os discípulos são os destinatários principais deste ensinamento. O caminho está se afunilando e, à medida em que avança e se aproxima de Jerusalém, Jesus vai deixando cada vez mais claro o que é necessário para os discípulos continuarem com ele. Muitas exigências já tinham sido apresentadas até então, como a renúncia a todos os bens (Lc 14,33), a coragem para enfrentar a cruz como consequência do discipulado (Lc 14,27) e até mesmo a ruptura com os laços familiares (Lc 14,26). Até então, parece que a fé dos discípulos estava sendo suficiente para suportar todas essas exigências. Pelo menos, eles não tinham reclamado ainda, embora nem tudo fosse claro, ainda. Diante disso, surge uma nova fase com obstáculos mais difíceis.

A situação parece se complicar mais quando Jesus exige dos discípulos a disponibilidade para perdoar constantemente e ilimitadamente a um irmão que lhes tiver ofendido (Lc 17,3-4). Portanto, para compreendermos bem o evangelho de hoje, é necessário partirmos do seu contexto imediato, recordando a mensagem apresentada nos versículos iniciais deste capítulo dezessete (vv. 1-4). A primeira recomendação feita por Jesus foi o cuidado com o “escândalo” (Lc 17,1-2), recomendando que seus discípulos não escandalizassem a nenhum dos pequeninos, os destinatários principais do Reino de Deus – os pobres; as mulheres; as pessoas marginalizadas de modo geral. É importante ressaltar que “escândalo” (em grego: σκάνδαλον – skandalon), na linguagem do Novo Testamento, não significa propriamente um comportamento moral inadequado, e sim um obstáculo para o Reino; tudo o que for capaz de atrapalhar uma adesão completa a Jesus ou que sirva de obstáculo a um encontro com ele, como o apego aos bens materiais, o orgulho, a inveja, a injustiça, a incapacidade de perdoar, a falta de amor, e tantos outros. Neste sentido, pode-se dizer que as omissões são mais escandalosas do que mesmo certas ações, na perspectiva dos evangelhos, principalmente do de Lucas.

No conjunto das advertências sobre os “escândalos”, Jesus apresentou aos discípulos a maior de todas as exigências até então: a necessidade e a disponibilidade para perdoar de modo ilimitado, até sete vezes num único dia – sinal de totalidade – ao irmão que tiver ofendido (vv. 3-4). Foi essa exigência que deixou os apóstolos em crise, completamente desconcertados, a ponto de perceberem que não tinham, ainda, uma fé suficiente para tal. Deixar a família, abrir mão dos bens, abraçar a cruz e romper com tantos laços tradicionais parecia mais fácil do que perdoar ilimitadamente. E, para Jesus, um dos maiores escândalos que pode existir entre os seus seguidores é a falta de perdão. Sem dúvidas, essa foi a maior exigência feita até aqui, para a mentalidade dos discípulos. Portanto, Jesus tinha acabado de apresentar exigências consideradas insuportáveis e inaceitáveis pelos discípulos, como a necessidade do perdão ilimitado e incondicional. É partindo deste fato que devemos ler o texto de hoje.

Desconcertados pela exigência de perdoar ilimitadamente, os discípulos se sentiram impotentes, incapazes de continuar no seguimento. Por isso, diz o evangelista que «Os apóstolos disseram ao Senhor: “Aumenta a nossa fé!”» (v. 5). O emprego do termo “apóstolos” aqui, ao invés de “discípulos” reflete a necessidade do evangelista mostrar às suas comunidades que até mesmo o grupo dos primeiros seguidores de Jesus tiveram a sinceridade de se reconhecerem necessitados da ajuda, ou seja, eles não foram autossuficientes. O pedido dos apóstolos é, portanto, uma reação ao que lhes fora anteriormente exigido: o perdão ilimitado e incondicional. Ora, na época da redação do Evangelho já não havia mais nenhum dos apóstolos vivos e, por terem convivido pessoalmente com Jesus, o que o evangelista transmitisse como palavras deles tinha muito peso para as comunidades. Logo, mostrá-los carentes de fé ou com fé impotente seria um importante convite à humildade e à permanente conversão. Ao pedido dos apóstolos, Jesus responde até de modo irônico, dizendo, antes de tudo, que a fé não se mede quantitativamente. Os apóstolos consideravam que já tinham fé, mas não em quantidade suficiente para abraçarem a exigência do perdão. Porém, essa exigência não era tão nova, pois já estava contida no Pai-nosso, ensinado ainda no início do caminho: «Perdoa os nossos pecados como também nós perdoamos aos nossos devedores» (Lc 11,4); assim, a oração ensinada por Jesus, também em resposta a um pedido deles – «Senhor, ensina-nos a orar» (Lc 11,1-4) – parecia não estar sendo levada tão a sério. Por isso, a resposta de Jesus soa irônica e provocativa.

Se os apóstolos concebiam a fé como algo mensurável quantitativamente, imaginavam que já a possuíam em pequena quantidade e, portanto, necessitavam de algumas “porções” a mais. Daí a ironia de Jesus com o exemplo parabólico do grão de mostarda: «O Senhor respondeu: “Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: “Arranca-te daqui e planta-te no mar”, e ela vos obedeceria» (v. 6). Em outras palavras, Jesus disse que ou se tem fé ou simplesmente não se tem, ou seja, basta que seja autêntica, que seja qualitativa e não quantitativa. O grão de mostarda era considerado o menor dos grãos conhecidos na época; nada poderia ser menor do que ele. Inclusive, já tinha sido utilizado pela tradição sinótica em uma parábola sobre o Reino de Deus (Mt 13,31-32; Mc 4,30-32; Lc 13,18-19). Para deixar os apóstolos ainda mais desconcertados, Jesus usa um exemplo oposto ao grão de mostarda, em termos de tamanho: a amoreira, a árvore conhecida na sua época como a possuidora das raízes mais profundas e de maior tempo de sobrevivência e, portanto, a mais difícil de ser arrancada. Ao invés de amoreira, algumas traduções trazem o sicômoro, que também era uma árvore de raízes bem profundas. Se o simples fato de uma amoreira ser arrancada já parecia impossível para a mentalidade da época, menos possível ainda seria a sua sobrevivência no mar. Por isso, a imagem é surpreendente e fortemente contrastante com o grão de mostarda.

É importante também recordar aqui a criatividade de Lucas, o qual modifica e enriquece a tradição recebida: em Mateus e Marcos essa demonstração da força da fé é feita com a imagem do mover-se de uma montanha (Mt 17,20; Mc 11,23), enquanto Lucas a substitui por uma árvore. A resposta é simbólica e irônica. Jesus não promete dar algumas porções a mais de fé aos apóstolos. A fé é a resposta incondicional ao seu amor, é a adesão plena ao Reino com seus valores, e isso é pessoal. O exemplo da fé com poder de fazer uma árvore arrancar-se sozinha e plantar-se no mar é apenas um modo de dizer que a fé transforma realidades, quando autêntica. Não significa que os discípulos serão capazes de cumprir obras mirabolantes ou fazer milagres. Na verdade, nem mesmo Jesus usou seu poder para fazer espetáculos; os seus milagres não tinham outro objetivo senão o bem das pessoas, jamais foram uma simples demonstração de força ou poder. O evangelista está apenas ensinando que é pela força da fé dos discípulos que Jesus espera que o mundo seja transformado, de realidade injusta no Reino de Deus. Portanto, mais do que poder, a fé deve imprimir convicção e coragem transformadora.

No caso específico dos apóstolos, e posteriormente dos membros da comunidade de Lucas, era a mentalidade deles que necessitava de uma transformação profunda. Aqui, portanto, Jesus não está prometendo o poder de fazer e ver milagres extraordinários a quem tem fé. Na verdade, ele está pedindo uma transformação interior e radical em cada pessoa, a começar pela vivência do perdão sem medidas. O grande milagre da fé é arrancar pela raiz tudo o que obstaculiza o advento pleno do Reino de Deus: o egoísmo, a injustiça, a falta de amor e de solidariedade, o apego aos bens materiais, a dureza de coração; é tudo isso que, movidos pela fé, os cristãos devem “jogar no mar”, recordando que, na mentalidade bíblica, o mar tem um sentido muito negativo, pois era considerado também o lugar onde habitavam as forças do mal. Inclusive, no início do capítulo em questão, como destino de quem escandalizar um pequenino, Jesus sugere “ser jogado no mar” (Lc 17,1-2).

Na continuação, Jesus conta uma pequena parábola aos discípulos (vv. 7-10), aparentemente sem nexo com a discussão sobre a fé, porém intrinsecamente relacionada: «Se algum de vós tem um empregado que trabalha a terra ou cuida dos animais, por acaso vai dizer-lhe, quando ele volta do campo: “Vem depressa para a mesa?” Pelo contrário, não vai dizer ao empregado: “Prepara-me o jantar, cinge-te e serve-me, enquanto eu como e bebo; depois disso tu poderás comer e bebe?”. Será que vai agradecer ao empregado, porque fez o que lhe havia mandado?» (vv. 7-9). Trata-se de mais uma parábola exclusiva de Lucas. Com ela, Jesus quer mostrar aos discípulos a melhor maneira de cultivar e viver uma fé autêntica e verdadeira: colocando-se como servidores, completamente disponíveis e despretensiosos. Ora, vigorava na época, sobretudo em ambientes farisaicos, uma mentalidade religiosa bastante retributiva e meritocrática.

Os fariseus observavam minuciosamente a Torá pensando na retribuição, vivendo uma relação contratual com Deus. Por causa do cumprimento detalhado dos preceitos da Lei, se consideravam pessoas mais justas e, por isso, se achavam mais merecedores dos favores de Deus. Infelizmente, essa mentalidade contaminava também os discípulos de Jesus e as comunidades de Lucas. Havia uma reivindicação de privilégios entre as lideranças das comunidades; por isso, ele quis mostrar que o verdadeiro discípulo é aquele que, movido por uma fé autêntica, não reivindica direitos nem privilégios para si, mas serve de modo livre e gratuito, porque o serviço desinteressado é uma das condições indispensáveis para a instauração do Reino. Tudo o que se faz deve ser voltado para a edificação do Reino, até porque, desde o início Jesus deixou muito claro o seu projeto, exigindo dos discípulos que fossem capazes de “renunciar a si mesmo” (Lc 9,23). Logo, era completamente descabida a tendência à exigência de reconhecimento da parte deles. Portanto, ou serve ou não é servo.

Obviamente, Jesus não pretende estabelecer uma relação servil na comunidade, nem na relação com as lideranças e nem mesmo com Deus. A imagem de Deus como pai, tão bem trabalhada por Lucas, impede que se pense nele como um patrão. O objetivo deste ensinamento, com as imagens do patrão e do servo é apenas imprimir na comunidade uma mentalidade de serviço, não de escravo. Quem serve, não deve servir imaginando Deus como um patrão, mas deve servir porque o serviço dá sentido à vida e é condição para a instauração do Reino. No último versículo, há um exagero na tradução. A expressão mais adequada, ao invés de “servos inúteis” seria “simples servos” ou “apenas servos”, pois o servo não é inútil, pelo contrário, é necessário para a edificação do Reino, embora isso não seja motivo para reivindicar privilégios. De fato, se não fossem úteis, Jesus não teria chamado discípulos para o seu seguimento. Porém, é necessário que o servo não esqueça a sua condição e, portanto, tudo o que venha fazer pelo Reino não pode ser motivo de mérito nem de reconhecimento, pois é essa a sua missão: servir de modo incondicional e movido pela fé.

Podemos dizer, então, que o Evangelho de hoje nos convida a viver e cultivar uma fé autêntica, que nos leve a cortar pela raiz tudo o que dentro de nós se opõe ao Reino, de modo incondicional e livre, e a assumirmos a nossa condição de simples servos, porque nossa missão é servir sempre!

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN


REFLEXÃO PARA O 33º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 21,5-19 (ANO C)

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