O evangelho
deste vigésimo sétimo domingo do Tempo Comum continua a nos situar no contexto
do caminho de Jesus para Jerusalém, com os seus discípulos, que corresponde à seção
narrativa mais longa do Evangelho de Lucas, compreendendo um total de dez
capítulos (Lc 10–19). A exemplo do que acontece em todos os caminhos, também
nesse, que é bastante longo, muitos obstáculos são encontrados, enfrentados e
superados. Como esse caminho é, acima de tudo, um itinerário formativo para o
discipulado de todos os tempos, os obstáculos se estendem também aos leitores e
leitoras do Evangelho de Lucas ao longo da história, tanto no que diz respeito
às exigências para o seguimento de Jesus, quanto à própria compreensão daquilo
que o texto quer dizer. E o texto lido hoje – Lc 17,5-10 – pode ser considerado
um destes obstáculos, tendo em vista as dificuldades de interpretação que o
mesmo apresenta. Embora curto, pode ser divido claramente em duas partes: um ensinamento
sobre a necessidade e importância da fé (vv. 5-6); e a pequena parábola do “servo
inútil” (vv. 7-10).
Como sempre, a
melhor maneira de começar a superar as dificuldades de compreensão de um texto
é considerar o seu contexto. E começamos essa etapa da interpretação recordando
que o capítulo dezessete de Lucas apresenta a retomada do ensinamento de Jesus
sobre as exigências para o seu seguimento. Isso significa que os discípulos são
os destinatários principais deste ensinamento. O caminho está se afunilando e,
à medida em que avança e se aproxima de Jerusalém, Jesus vai deixando cada vez
mais claro o que é necessário para os discípulos continuarem com ele. Muitas
exigências já tinham sido apresentadas até então, como a renúncia a todos os
bens (Lc 14,33), a coragem para enfrentar a cruz como consequência do
discipulado (Lc 14,27) e até mesmo a ruptura com os laços familiares (Lc
14,26). Até então, parece que a fé dos discípulos estava sendo suficiente para
suportar todas essas exigências. Pelo menos, eles não tinham reclamado ainda,
embora nem tudo fosse claro, ainda. Diante disso, surge uma nova fase com
obstáculos mais difíceis.
A situação
parece se complicar mais quando Jesus exige dos discípulos a disponibilidade
para perdoar constantemente e ilimitadamente a um irmão que lhes tiver ofendido
(Lc 17,3-4). Portanto, para compreendermos bem o evangelho de hoje, é
necessário partirmos do seu contexto imediato, recordando a mensagem
apresentada nos versículos iniciais deste capítulo dezessete (vv. 1-4). A
primeira recomendação feita por Jesus foi o cuidado com o “escândalo” (Lc
17,1-2), recomendando que seus discípulos não escandalizassem a nenhum dos
pequeninos, os destinatários principais do Reino de Deus – os pobres; as
mulheres; as pessoas marginalizadas de modo geral. É importante ressaltar
que “escândalo” (em grego: σκάνδαλον –
skandalon), na linguagem do Novo Testamento, não significa propriamente um
comportamento moral inadequado, e sim um obstáculo para o Reino; tudo o que for
capaz de atrapalhar uma adesão completa a Jesus ou que sirva de obstáculo a um
encontro com ele, como o apego aos bens materiais, o orgulho, a inveja, a injustiça,
a incapacidade de perdoar, a falta de amor, e tantos outros. Neste sentido,
pode-se dizer que as omissões são mais escandalosas do que mesmo certas ações,
na perspectiva dos evangelhos, principalmente do de Lucas.
No conjunto
das advertências sobre os “escândalos”, Jesus apresentou aos discípulos a maior
de todas as exigências até então: a necessidade e a disponibilidade para
perdoar de modo ilimitado, até sete vezes num único dia – sinal de totalidade –
ao irmão que tiver ofendido (vv. 3-4). Foi essa exigência que deixou os
apóstolos em crise, completamente desconcertados, a ponto de perceberem que não
tinham, ainda, uma fé suficiente para tal. Deixar a família, abrir mão dos
bens, abraçar a cruz e romper com tantos laços tradicionais parecia mais fácil
do que perdoar ilimitadamente. E, para Jesus, um dos maiores escândalos que
pode existir entre os seus seguidores é a falta de perdão. Sem dúvidas, essa
foi a maior exigência feita até aqui, para a mentalidade dos discípulos.
Portanto, Jesus tinha acabado de apresentar exigências consideradas
insuportáveis e inaceitáveis pelos discípulos, como a necessidade do perdão
ilimitado e incondicional. É partindo deste fato que devemos ler o texto de
hoje.
Desconcertados
pela exigência de perdoar ilimitadamente, os discípulos se sentiram impotentes,
incapazes de continuar no seguimento. Por isso, diz o evangelista que «Os
apóstolos disseram ao Senhor: “Aumenta a nossa fé!”» (v. 5). O emprego
do termo “apóstolos” aqui, ao invés de “discípulos” reflete a necessidade do
evangelista mostrar às suas comunidades que até mesmo o grupo dos primeiros
seguidores de Jesus tiveram a sinceridade de se reconhecerem necessitados da ajuda,
ou seja, eles não foram autossuficientes. O pedido dos apóstolos é, portanto,
uma reação ao que lhes fora anteriormente exigido: o perdão ilimitado e
incondicional. Ora, na época da redação do Evangelho já não havia mais nenhum
dos apóstolos vivos e, por terem convivido pessoalmente com Jesus, o que o
evangelista transmitisse como palavras deles tinha muito peso para as
comunidades. Logo, mostrá-los carentes de fé ou com fé impotente seria um
importante convite à humildade e à permanente conversão. Ao pedido dos
apóstolos, Jesus responde até de modo irônico, dizendo, antes de tudo, que a fé
não se mede quantitativamente. Os apóstolos consideravam que já tinham fé, mas
não em quantidade suficiente para abraçarem a exigência do perdão. Porém, essa
exigência não era tão nova, pois já estava contida no Pai-nosso, ensinado ainda
no início do caminho: «Perdoa os nossos pecados como também nós
perdoamos aos nossos devedores» (Lc 11,4); assim, a oração ensinada
por Jesus, também em resposta a um pedido deles – «Senhor, ensina-nos a
orar» (Lc 11,1-4) – parecia não estar sendo levada tão a sério. Por
isso, a resposta de Jesus soa irônica e provocativa.
Se os
apóstolos concebiam a fé como algo mensurável quantitativamente, imaginavam que
já a possuíam em pequena quantidade e, portanto, necessitavam de algumas
“porções” a mais. Daí a ironia de Jesus com o exemplo parabólico do grão de
mostarda: «O Senhor respondeu: “Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como
um grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: “Arranca-te daqui e
planta-te no mar”, e ela vos obedeceria» (v. 6). Em outras palavras,
Jesus disse que ou se tem fé ou simplesmente não se tem, ou seja, basta que
seja autêntica, que seja qualitativa e não quantitativa. O grão de mostarda era
considerado o menor dos grãos conhecidos na época; nada poderia ser menor do
que ele. Inclusive, já tinha sido utilizado pela tradição sinótica em uma
parábola sobre o Reino de Deus (Mt 13,31-32; Mc 4,30-32; Lc 13,18-19). Para
deixar os apóstolos ainda mais desconcertados, Jesus usa um exemplo oposto ao
grão de mostarda, em termos de tamanho: a amoreira, a árvore conhecida na sua
época como a possuidora das raízes mais profundas e de maior tempo de
sobrevivência e, portanto, a mais difícil de ser arrancada. Ao invés de
amoreira, algumas traduções trazem o sicômoro, que também era uma árvore de
raízes bem profundas. Se o simples fato de uma amoreira ser arrancada já
parecia impossível para a mentalidade da época, menos possível ainda seria a
sua sobrevivência no mar. Por isso, a imagem é surpreendente e fortemente
contrastante com o grão de mostarda.
É importante
também recordar aqui a criatividade de Lucas, o qual modifica e enriquece a
tradição recebida: em Mateus e Marcos essa demonstração da força da fé é feita
com a imagem do mover-se de uma montanha (Mt 17,20; Mc 11,23), enquanto Lucas a
substitui por uma árvore. A resposta é simbólica e irônica. Jesus não promete
dar algumas porções a mais de fé aos apóstolos. A fé é a resposta incondicional
ao seu amor, é a adesão plena ao Reino com seus valores, e isso é pessoal. O
exemplo da fé com poder de fazer uma árvore arrancar-se sozinha e plantar-se no
mar é apenas um modo de dizer que a fé transforma realidades, quando autêntica.
Não significa que os discípulos serão capazes de cumprir obras mirabolantes ou
fazer milagres. Na verdade, nem mesmo Jesus usou seu poder para fazer
espetáculos; os seus milagres não tinham outro objetivo senão o bem das pessoas,
jamais foram uma simples demonstração de força ou poder. O evangelista está
apenas ensinando que é pela força da fé dos discípulos que Jesus espera que o
mundo seja transformado, de realidade injusta no Reino de Deus. Portanto, mais
do que poder, a fé deve imprimir convicção e coragem transformadora.
No caso
específico dos apóstolos, e posteriormente dos membros da comunidade de Lucas,
era a mentalidade deles que necessitava de uma transformação profunda. Aqui,
portanto, Jesus não está prometendo o poder de fazer e ver milagres
extraordinários a quem tem fé. Na verdade, ele está pedindo uma transformação
interior e radical em cada pessoa, a começar pela vivência do perdão sem
medidas. O grande milagre da fé é arrancar pela raiz tudo o que obstaculiza o
advento pleno do Reino de Deus: o egoísmo, a injustiça, a falta de amor e de
solidariedade, o apego aos bens materiais, a dureza de coração; é tudo isso
que, movidos pela fé, os cristãos devem “jogar no mar”, recordando que, na
mentalidade bíblica, o mar tem um sentido muito negativo, pois era considerado
também o lugar onde habitavam as forças do mal. Inclusive, no início do
capítulo em questão, como destino de quem escandalizar um pequenino, Jesus
sugere “ser jogado no mar” (Lc 17,1-2).
Na
continuação, Jesus conta uma pequena parábola aos discípulos (vv. 7-10),
aparentemente sem nexo com a discussão sobre a fé, porém intrinsecamente
relacionada: «Se algum de vós tem um empregado que trabalha a terra ou
cuida dos animais, por acaso vai dizer-lhe, quando ele volta do campo: “Vem
depressa para a mesa?” Pelo contrário, não vai dizer ao empregado: “Prepara-me
o jantar, cinge-te e serve-me, enquanto eu como e bebo; depois disso tu poderás
comer e bebe?”. Será que vai agradecer ao empregado, porque fez o que lhe havia
mandado?» (vv. 7-9). Trata-se de mais uma parábola exclusiva de Lucas.
Com ela, Jesus quer mostrar aos discípulos a melhor maneira de cultivar e viver
uma fé autêntica e verdadeira: colocando-se como servidores, completamente
disponíveis e despretensiosos. Ora, vigorava na época, sobretudo em ambientes
farisaicos, uma mentalidade religiosa bastante retributiva e meritocrática.
Os fariseus
observavam minuciosamente a Torá pensando na retribuição, vivendo uma relação
contratual com Deus. Por causa do cumprimento detalhado dos preceitos da Lei,
se consideravam pessoas mais justas e, por isso, se achavam mais merecedores
dos favores de Deus. Infelizmente, essa mentalidade contaminava também os
discípulos de Jesus e as comunidades de Lucas. Havia uma reivindicação de
privilégios entre as lideranças das comunidades; por isso, ele quis mostrar que
o verdadeiro discípulo é aquele que, movido por uma fé autêntica, não
reivindica direitos nem privilégios para si, mas serve de modo livre e
gratuito, porque o serviço desinteressado é uma das condições indispensáveis
para a instauração do Reino. Tudo o que se faz deve ser voltado para a edificação
do Reino, até porque, desde o início Jesus deixou muito claro o seu projeto,
exigindo dos discípulos que fossem capazes de “renunciar a si mesmo” (Lc 9,23).
Logo, era completamente descabida a tendência à exigência de reconhecimento da
parte deles. Portanto, ou serve ou não é servo.
Obviamente,
Jesus não pretende estabelecer uma relação servil na comunidade, nem na relação
com as lideranças e nem mesmo com Deus. A imagem de Deus como pai, tão bem
trabalhada por Lucas, impede que se pense nele como um patrão. O objetivo deste
ensinamento, com as imagens do patrão e do servo é apenas imprimir na
comunidade uma mentalidade de serviço, não de escravo. Quem serve, não deve
servir imaginando Deus como um patrão, mas deve servir porque o serviço dá
sentido à vida e é condição para a instauração do Reino. No último versículo,
há um exagero na tradução. A expressão mais adequada, ao invés de “servos
inúteis” seria “simples servos” ou “apenas servos”, pois o servo não é inútil,
pelo contrário, é necessário para a edificação do Reino, embora isso não seja
motivo para reivindicar privilégios. De fato, se não fossem úteis, Jesus não
teria chamado discípulos para o seu seguimento. Porém, é necessário que o servo
não esqueça a sua condição e, portanto, tudo o que venha fazer pelo Reino não
pode ser motivo de mérito nem de reconhecimento, pois é essa a sua missão:
servir de modo incondicional e movido pela fé.
Podemos dizer,
então, que o Evangelho de hoje nos convida a viver e cultivar uma fé autêntica,
que nos leve a cortar pela raiz tudo o que dentro de nós se opõe ao Reino, de
modo incondicional e livre, e a assumirmos a nossa condição de simples servos,
porque nossa missão é servir sempre!
Pe. Francisco
Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN